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A
REFORMULAÇÃO DO ENSINO PRIMÁRIO NO ESTADO DE SÃO
PAULO NA DÉCADA DE SESSENTA: O QUE DIZEM OS PROFESSORES?
Ana Carolina Gazana - Programa de Pós-Graduação
em Educação - UNESP
A alfabetização tem sido alvo de estudos
e pesquisas, os quais refletem diferentes concepções e sentidos
que foram sendo atribuídos, no decorrer dos tempos, ao processo
de aprender e ensinar a ler e escrever.
Essas diferentes concepções contribuem para o surgimento
de controvérsias no campo da alfabetização. Observa-se
a existência de uma tensão constante entre as propostas consideradas
“modernas” e aquelas denominadas “antigas” ou
“tradicionais”. Isso porque tais propostas, geralmente, implicam
mudanças, sutis ou estruturais, que nem sempre são bem aceitas
por todos os professores alfabetizadores. Alguns se opõem às
proposições por não concordarem com as mesmas, por
não compreenderem-nas, por não conseguirem aplicá-las,
por medo de fracassarem... Outros, que discordam do modelo vigente, aderem
ao “novo” com muitas expectativas de melhorar o ensino. Destaca-se
que aderir às propostas não significa, entretanto, compreendê-las
e, por isso, nem sempre a prática condiz com a teoria.
Essa tensão entre propostas “modernas” e “antigas”
é explicada por Mortatti (2000, p.23) da seguinte maneira:
...visando à ruptura com seu passado, determinados sujeitos produziram,
em cada momento histórico, determinados sentidos que consideraram
modernos e fundadores do novo em relação ao ensino da leitura
e escrita. Entretanto, no momento seguinte, esses sentidos acabaram por
ser paradoxalmente configurados, pelos pósteros imediatos, como
um conjunto de semelhanças indicadoras da continuidade do antigo,
devendo ser combatido como tradicional e substituído por um novo
sentido para o moderno.
Observa-se, de acordo com essa afirmação,
que existe um movimento constante de renovação referente
à alfabetização. Essa busca por novos sentidos caracteriza
as tentativas, em cada período histórico, de resolver os
problemas escolares.
Micotti (1997, p.14-26), ao examinar algumas propostas pedagógicas
que fazem parte da história do ensino paulista, destaca que no
passado as oportunidades educacionais eram mais restritas. A autora revela
que no programa de 1949 a alfabetização era vista como tarefa
para o primeiro ano; havia exames no final da série que verificavam
se os alunos possuíam as competências básicas para
freqüentarem a série posterior. Os alunos passavam por uma
seleção rigorosa anualmente; os que tinham dificuldades
eram reprovados por anos consecutivos e, conseqüentemente, abandonavam
a escola. O grande problema enfrentado pelo sistema educacional daquela
época centrava-se nos altos índices de repetência
e evasão escolar, os quais contribuíam para aumentar as
taxas de analfabetismo do país. Excludente e elitista, esse modelo
educacional favorecia a permanência dos “bons” alunos
nas escolas, que em geral eram os de maior poder aquisitivo.
Reformulações foram feitas no currículo com o objetivo
de resolver os problemas existentes. No Estado de São Paulo, em
dezembro de 1968, é elaborada nova proposta para a escola primária,
que inovou ao introduzir a concepção de níveis. Caberia
ao nível I, formado pelas duas séries iniciais, a responsabilidade
pela alfabetização dos alunos. Outras mudanças ocorreram
no sistema educacional nos anos seguintes; todas visavam solucionar os
principais problemas enfrentados no âmbito escolar.
Essas constantes situações de mudança observadas
ao longo da história da educação brasileira geram
muitas indagações sobre a situação de alunos
e professores. Focalizando com maior atenção os docentes
e selecionando um determinado período da história do ensino
paulista, o qual refere-se à implantação do programa
para a escola primária do Estado de São Paulo de 1969, questiona-se:
O que as mudanças previstas neste documento representaram para
os professores? Como eles interpretaram as formulações teóricas
para colocá-las em prática? Quais foram as maiores dificuldades
enfrentadas no dia-a-dia escolar ? O que representaram essas medidas em
termos de democratização do ensino?
Frente a essas indagações, este estudo privilegia a descrição
das práticas de alguns professores alfabetizadores que vivenciaram
a época em que o programa de 69 foi implantado, na tentativa de
elucidar algumas das questões levantadas.
O programa da escola primária do estado de São
Paulo de 1969
Como e por quê surgiu?
Este programa foi elaborado a partir da alegação
de que era preciso combater as altas taxas de reprovação
e evasão escolar, além da má qualidade do ensino
primário e público. Há autores, entretanto, que vêem
nesta proposta de mudança uma jogada estratégica para resolver
problemas como a falta de vagas nas escolas, índices pouco favoráveis
nas estatísticas...
Almeida Jr. (1957) confirma o fato de que as altas taxas de reprovação
na escola primária já eram preocupantes desde muito antes,
pois acarretavam inúmeras desvantagens para o desenvolvimento educacional
brasileiro. De acordo com o autor, as aprovações nas primeira
e segunda séries das escolas primárias paulistas no ano
de 1954 não ultrapassaram o percentual de 58.1% e 71.9% respectivamente.
Entre os males ocasionados pelas reprovações destaca a evasão
escolar, que contribuía consideravelmente para os crescentes índices
de analfabetismo no país, e a estagnação do sistema
gerada pelos alunos repetentes, que resultava na falta de vagas nas escolas
para as novas gerações.
Frente a tantos problemas, a necessidade de mudança era crescente.
Mas como regularizar o fluxo de alunos ao longo da escolarização,
eliminando ou limitando a repetência?
Nesse contexto, é instituído o Ato 148, de 31 de maio de
1967, o qual constitui “Grupo de Trabalho com a incumbência
de elaboração de projeto para reorganização
do currículo e dos programas do curso primário do Estado”
(Diário Oficial de 1º de junho de 1967, p. 20).
Mas que mudanças no ensino primário previa esse projeto?
Quais eram as principais novidades que esse documento apresentava? Que
práticas pedagógicas eram mais adequadas para o sucesso
do mesmo? Conhecer e analisar com cautela algumas das mudanças
introduzidas pode ser útil para melhor compreender as implicações
que tal Programa representou para o ensino e aprendizagem.
Mudanças introduzidas
A principal inovação introduzida foi a estruturação
do ensino primário em níveis, os quais substituíram
as séries, do tradicional sistema seriado.
Caberia ao nível I, o qual compreendeu as duas séries iniciais,
a tarefa de alfabetizar. Ao nível II, terceira e quarta séries,
ficou atribuído o ensino sistemático das áreas de
estudo: língua pátria, matemática, estudos sociais,
ciências, saúde, educação física e educação
artística.
As orientações previam, ainda, que os exames de promoção
fossem realizados do primeiro para o segundo nível. Com essa medida,
pretendia-se que os alunos não repetissem a primeira série
e que continuassem sua alfabetização na segunda.
Entre as mudanças que caracterizaram a reforma de 1969, observa-se,
ainda, maior flexibilidade para que o professor decidisse qual método
utilizar em suas aulas. O Programa afastou-se de qualquer compromisso
metodológico e calou-se quanto ao “como ensinar”.
Em resumo, as reformulações priorizaram a alfabetização
como processo que deveria iniciar-se na primeira série e estender-se
na série seguinte, possibilitando adequar o ritmo do ensino ao
da aprendizagem dos alunos e redistribuindo os conteúdos programáticos
de maneira mais adequada.
O programa de 69, para atingir os objetivos a que se dispunha, implicava
em mudanças em todo sistema educacional, começando pela
reelaboração do currículo escolar, passando pela
reorganização das instituições de ensino,
atingindo as práticas pedagógicas e as concepções
dos professores sobre o sistema seriado e os ciclos escolares.
As mudanças podem, em muitos casos, parecer simples. Entretanto,
para os professores, a aceitação de mudanças não
costuma ser fácil, principalmente quando estas implicam na revisão
de suas práticas e na adoção de posturas diferenciadas.
Cordeiro (2002), ao discutir os processos de mudança e a aceitação
destes pelos professores, afirma que a tendência nessas situações
é ocorrer a aceitação apenas das inovações
que os ajudam a resolver seus problemas e que tornam mais eficiente seu
trabalho.
O problema, neste caso, é que cada julgamento costuma ser muito
particular e está ligado às concepções que
os professores têm sobre o ensino, os alunos, a escola e a profissão
e que compõem o que se pode chamar de saber docente.
Esse saber docente, construído ao longo dos anos pelos professores,
não é algo fácil de ser modificado. Acredita-se que
resida neste ponto um dos entraves à concretização
de novas propostas pedagógicas, pois os reformadores costumam classificar
de tradicional todo o conhecimento e a experiência docente, desconsiderando-os.
Esta experiência, formada por situações que abrangem
toda a trajetória escolar do professor, desde sua época
enquanto aluno, costuma ser muito singular e resulta, segundo Nóvoa
(1996, p.26), da mistura de vontades, de gostos, de acasos até,
que foram consolidando gestos, rotinas e comportamentos com os quais nos
identificamos como professores. Essa maneira própria característica
de cada docente é o que o autor afirma constituir quase que uma
segunda pele profissional. Pele essa que provoca um efeito de rigidez,
tornando o professor indisponível para mudança.
Micotti (1996) ao discutir algumas questões sobre os processos
de mudanças pedagógicas e a situação do professor
nesses contextos, destaca que a literatura referente às mudanças
e à implantação de inovações pedagógicas
mostra que estas somente se concretizam à medida que os professores
e seus chefes imediatos assumem as novas propostas.
Nóvoa (1996, p. 27) concorda com esta idéia ao concluir
que “a inovação só tem sentido se passar por
dentro de cada um, se for objeto de um processo de reflexão e de
apropriação pessoal”.
Compartilhando com esses autores, Dias-da-Silva (1994) considera que o
professor deve agir como ser que pensa e não como mero executor,
acreditando que reconhecer e respeitar o saber docente é pressuposto
indiscutível em qualquer tentativa de transformar a escola.
Metodologia
Esta pesquisa tem por objetivos: entender como professores
alfabetizadores colocaram em prática a proposta curricular do Programa
da Escola Primária do Estado de São Paulo em 1969, que previa
a organização do ensino em níveis e tinha como foco
a continuidade do processo de alfabetização; identificar
práticas que foram consideradas bem sucedidas.
Mediante os objetivos apresentados, são examinadas as informações
de sete professoras alfabetizadoras que trabalharam em escolas públicas
no interior do Estado de São Paulo na década de sessenta
e que vivenciaram a implantação do referido Programa. Essas
professoras residem atualmente nos municípios de Rio Claro e Santa
Gertrudes, mas também lecionaram em outras cidades durante a trajetória
profissional.
Não foram estabelecidos critérios para a seleção
dos participantes, tendo em vista a dificuldade de localizar as professoras,
aposentadas há tantos anos. Para tornar a pesquisa possível,
realizou-se um trabalho quase que de “garimpo”, o qual compreendeu
fases distintas, como: visita às escolas, consultas a documentos
antigos, como livros-ponto e atas, localização e estabelecimento
de contato com as professoras, entre as quais, muitas já haviam
falecido.
Após essas etapas, passou-se à coleta de dados com as professoras
localizadas. Os dados foram coletados mediante entrevistas gravadas que
duraram em média cento e vinte minutos e contaram com o auxílio
de roteiro pré-elaborado.
Resultados e Discussão
Com base no objetivo de averiguar como professores alfabetizadores
descrevem as suas práticas de implantação do Programa
da Escola Primária do Estado de São Paulo de 1969, constatou-se
que o relato dos mesmos comprova o que vários autores narram sobre
a época no que se refere aos altos índices de repetência
e evasão escolar:
“O pessoal da Delegacia de Ensino dizia que era
para tentar acabar com a reprovação, com a evasão
escolar (...) Aquelas crianças que não iam de jeito nenhum
acabavam desistindo depois de ficarem três, quatro anos na mesma
série.”(E. - 2ª série)
“Os alunos que abandonavam a escola geralmente eram aqueles que
já não tinham mais idade para estar na escola porque tinham
reprovado muitos anos já.” (D. - 1ª e 2ª séries)
Ao serem questionadas sobre os argumentos utilizados
pelas autoridades para justificar a mudança, confirmam a idéia
apresentada por Almeida Júnior (1957, p. 6) de que as altas taxas
de alunos reprovados e evadidos acarretavam diversos problemas, tanto
de ordem social, quanto econômica, destacando-se, entre eles, a
formação de classes heterogêneas quanto à idade,
o desgosto da família, a humilhação da criança,
e a pouca ou nenhuma vantagem para o aluno reprovado no que se refere
à aprendizagem.
Os objetivos apresentados na introdução do Programa de 69
permitem afirmar que, realmente, a proposta mostrava preocupação
maior com a criança e com seu processo de aprendizagem. Entretanto,
mediante a narrativa das professoras, pode-se dizer que a maneira como
foi introduzida, ou seja, imposta, dificultou a compreensão desses
objetivos e resultou em práticas pedagógicas inadequadas,
não condizentes com o que previa a teoria.
Percebe-se, nos relatos, que não havia espaço para discussões
e reflexões conjuntas entre os docentes:
“Nós tivemos algumas reuniões que
eu me lembre. É, é isso mesmo. Nessas reuniões a
Supervisora de Ensino explicou por cima, mais ou menos como ia ser a partir
do próximo ano. Ninguém teve muita noção,
no início, do que realmente iria mudar. Como tudo que vinha de
cima, a gente acatava, essa foi só mais uma ordem(...)” (D.
– 1ª e 2ª séries)
É
importante destacar, entretanto, que a adoção de determinada
proposta, por si só, não seria garantia de que a mesma provocaria
mudanças nas práticas pedagógicas, pois como salienta
Micotti (1996, p. 98), as modificações previstas nas propostas
passam pelo filtro da prática.
Os relatos sobre a prática pedagógica das professoras entrevistadas
confirmam esse dado e revelam as diferentes interpretações
que foram dadas à proposta.
A professora D., por exemplo, afirma que sua prática pedagógica
não sofreu nenhuma alteração, pois já era
considerada bem sucedida. Atribui o sucesso da mesma a seu esforço
pessoal e não considera a repetência um problema tão
vultoso como afirmavam educadores e governantes.
“Bem,
no meu caso não mudou quase nada. Eu já aprovava todos os
alunos de primeira, então não era problema pra mim as taxas
de repetência que tanto comentavam. Nas minhas classes de segundo
ano, eu podia seguir o programa normalmente e também conseguia
aprovar quase que 100% nesta série. Mas também tenho que
dizer que para isso eu trabalhava muito e muito. Ia de carteira em carteira,
aluno por aluno, tirando dúvidas, ensinando tudo de novo para os
que tinham mais dificuldades. Era desgastante.” (D. – 1ª
e 2ª séries)
O fato de ter ocorrido pouca ou nenhuma alteração das práticas
pedagógicas entre as professoras de 1ª série entrevistadas,
também foi observado na narrativa da professora de 2ª série.
Segundo ela, os alunos que deveriam ter sido reprovados na primeira série,
após a implantação do novo programa, chegavam às
classes de segunda série sem saberem ler e escrever, não
tendo, portanto, condições de acompanhar o ritmo desta série.
Para tentar amenizar o problema, E. menciona a retomada da Cartilha, tarefa
de difícil execução para ela, tendo em vista as diferenças
entre os alunos no que se refere ao aprendizado da leitura e da escrita.
Nesse aspecto há uma contradição entre o que é
afirmado pelas professoras de primeira e segunda série. Enquanto
as primeiras garantem que a maioria das crianças terminava o primeiro
ano escolar lendo e escrevendo, as de segunda negam a veracidade de tal
fato ao descreverem as dificuldades no trabalho com os alunos que pouco
ou nada sabiam sobre leitura e escrita.
A idéia de dar continuidade na segunda série ao trabalho
iniciado na primeira foi entendida pela maioria como retomada do trabalho
com a cartilha, a qual foi, muitas vezes, trabalhada por dois anos consecutivos.
“Eu não podia cumprir direito o meu programa porque tinha
que tentar alfabetizar as crianças. E aí já viu,
né! Tinha que começar a cartilha desde o início,
tudo de novo... Perdia um tempão e depois corria nas Ciências
e nos Estudos Sociais por causa dos exames de fim de ano.” (E. 2ª
série)
A entrevistada T., que vivenciou mais do que um período de mudança,
enfatiza a tendência que existe de se rejeitar o novo pelo fato
do mesmo ser, na maioria das vezes, desconhecido e contrário a
tudo o que os professores acreditam e têm certeza que pode dar certo:
“Quando
eu comecei a lecionar em 1949 o auge da alfabetização era
a cartilha Sodré, que era silábica: A pata nada... Alguns
anos depois... A Branca Alves de Lima lançou a Caminho Suave e
foi até a Delegacia de Ensino e disse que gostaria que os professores
começassem a experimentar, mas ninguém se dispunha porque
quem iria sair da Sodré e ir para a Caminho Suave, uma coisa completamente
diferente? Ninguém queria sair da Sodré porque todo mundo
achava que a Sodré era uma maravilha!” (T. – 1ª
série)
De acordo
com o relato de T., verifica-se num outro momento da história da
educação brasileira, quando a cartilha Caminho Suave, baseada
no método silábico, estava sendo divulgada, a resistência
dos professores em conhecerem e aplicarem o novo material. Para eles,
não havia necessidade de mudança, já que a Cartilha
Sodré atendia os objetivos que os docentes estabeleciam para o
ensino e a aprendizagem na primeira série. Além disso, era
conhecida por todos e fazia parte da experiência que possuíam
como alfabetizadores.
Esse apego ao que é conhecido e que faz parte da realidade dos
professores pode ser percebido em diversas épocas. Mediante a entrevista
com T., constatou-se que após a difusão e aceitação
da cartilha Caminho Suave, os professores ofereceram forte resistência
quando foram lançadas as cartilhas baseadas no método global.
“... aquele método novo (trata-se aqui do método global)
que tínhamos que usar também não ajudava. As crianças
tinham que começar a aprender a ler e escrever por frases. Mas
como se elas não conheciam as sílabas? Na minha opinião
nada é melhor, até hoje, do que a cartilha Caminho Suave.
Com ela as crianças realmente aprendiam.” (Mr. – 1ª
série)
Relatos
sobre a prática, como este apresentado acima, permitem constatar
a segurança com que as professoras descreveram suas atitudes em
sala de aula e a satisfação com o trabalho que realizavam.
Nenhuma das entrevistadas mencionou que sentia necessidade de mudar a
maneira como lecionava.
A maioria mostrou-se convicta ao falar do trabalho com a cartilha e apontou
que essa era a melhor forma de alfabetizar, tanto na primeira série
quanto na segunda, nos casos em que os alunos passavam de série
sem saber ler e escrever.
A cartilha Caminho Suave foi apontada como a mais adequada e a que melhores
resultados proporcionava dentre as cartilhas existentes na época.
Algumas relataram que a cartilha Sodré também era utilizada
em conjunto com a cartilha Caminho Suave, mostrando, mais uma vez, a influência
da identidade profissional de cada um na organização do
trabalho em classe.
Como se pode constatar, com relação às práticas
pedagógicas, pouca coisa mudou com a implantação
do novo programa para a escola primária do Estado de São
Paulo. Mediante os relatos das entrevistadas é possível
constatar que, na prática, o que se observou foi a transferência
das reprovações da primeira série para o término
da segunda série.
“As
reprovações aumentaram muito na segunda série, segundo
ano que a gente falava. Os alunos fracos não conseguiam acompanhar
o ritmo porque não tinham tido um bom primeiro ano, então
perdiam o ano. Sabe, sempre teve um salto muito grande do primeiro para
o segundo ano, por isso a professora do segundo ano tinha que ser boa
mesmo, gostar muito das crianças.” (L. 1ª série)
A análise dos relatos pode levar à conclusão de que
nenhuma experiência no que se refere à implantação
do Programa foi bem sucedida. Entretanto, o relato da professora Ma. mostra
a viabilidade prática da proposta de 69 e, a partir dele, é
possível tecer algumas considerações sobre a estruturação
das escolas em ciclos de aprendizagem.
Na escola em que Ma. trabalhava, houve, desde o início do processo
de mudança, interesse dos diretores e corpo docente em “assumir”
e “fazer funcionar” o sistema de níveis, pois, segundo
esta professora, a maioria de seus colegas de trabalho entendeu que o
Programa representava um avanço grande no que se refere ao respeito
e à preocupação com a aprendizagem dos alunos.
Essa aceitação por parte dos professores é muito
significativa no entender de Micotti (1996), pois conforme afirma esta
autora, a concretização das propostas de mudança
está relacionada à identificação dos docentes
com as mesmas.
Tal idéia auxilia na compreensão dos bons resultados conquistados
por Ma. e suas colegas de trabalho que lecionavam na mesma escola. Pode-se
dizer que, neste caso, ocorreu a identificação da equipe
pedagógica, entendida aqui como o conjunto de professores e diretores,
com os pressupostos do Programa de 69.
Ao descrever como ficou organizada a distribuição das classes,
Ma. relata que cada professora permanecia com a mesma turma por dois anos
consecutivos, ou seja, cada professora ficava durante o nível I
todo com os mesmos alunos. Isso possibilitava, segundo a entrevistada,
um melhor acompanhamento do processo de alfabetização, pois
quando as crianças passavam de ano (o que no sistema seriado equivaleria
a passar da primeira para a segunda série) a professora já
as conhecia e sabia em que estágio da construção
da escrita encontravam-se. Ao manifestar sua opinião sobre essa
experiência, Ma. diz o seguinte:
“Foi
muito bom. Eu gostei bastante. Sabe, o seu B. fazia a professora acompanhar
a classe no nível todo, então eu dava aula para a mesma
turma na primeira e na segunda série e só depois eu voltava
para o primeiro ano. Assim, a professora sempre sabia como estava a classe
na segunda série porque já tinha dado aula para ela na primeira.
A gente podia continuar o trabalho de onde tinha parado, era ótimo.”
(Ma. – 1ª e 2ª séries)
Como se
percebe mediante esse relato, a idéia de que os níveis constituem-se
em ciclos de aprendizagem e que aprender a ler e escrever constitui-se
num processo contínuo que não se encerra ao término
da primeira série foi assimilada e posta em prática por
Ma. e suas colegas de trabalho.
Ao descrever sua prática pedagógica, a entrevistada demonstra
interesse pelo desenvolvimento da aprendizagem de seus alunos mediante
a afirmação de que havia continuidade no trabalho com as
crianças de um ano para o outro, sendo respeitado o estágio
em que cada aluno encontrava-se. Apesar desse fato, não foram observadas
variações quanto ao método e material didático
utilizado. Ma. afirma que fazia uso da Cartilha Caminho Suave, acrescentando
atividades da Cartilha Sodré, pois, de acordo com ela, já
havia utilizado anteriormente esse material, que era considerado de grande
auxílio na alfabetização. O ensino da língua
escrita não resumia-se ao uso de um único método.
Ma. conta que o método mais utilizado era o silábico, ao
qual mesclavam-se outros tipos de abordagens, como o da correspondência
entre grafema e fonema, que aproxima-se do método fônico.
“Eu
usava a cartilha Caminho Suave, mas eu introduzia muitas coisas da Cartilha
Sodré que eu achava ótima, como gestos e desenhos. Eu acho
que isso ajudava a criança a gravar mais fácil o som das
letras. Nossa! Como eu usava desenho na minha classe. As crianças
adoravam. No final do ano estavam com a letra tão bonita. Todos
eles.” (Ma. – 1ª e 2ª séries)
A justificativa
por um trabalho composto de diferentes métodos centra-se, principalmente,
nos alunos que apresentavam dificuldades. Esse aspecto é muito
relevante e serve para ilustrar a idéia de que um profissional
comprometido com sua prática busca caminhos diversos para resolver
os problemas que ocorrem em seu cotidiano. No caso de Ma., o caminho encontrado
foi o de mesclar atividades de cartilhas com orientações
diferentes, tendo como base a concepção de que todas as
crianças eram capazes de aprender, mas nem todas conseguiam pelo
mesmo caminho, sendo preciso em algumas situações diversificar
o ensino.
Da forma como foi estruturado o ensino na escola descrita por Ma., não
havia espaço para alguns problemas apontados pelas outras entrevistadas,
como a falta de comprometimento de algumas alfabetizadoras que, por não
existirem mais os exames no final da primeira série, não
mais sentiam-se responsáveis pelo ensino da leitura e escrita.
Ao falar sobre a postura das outras professoras que trabalhavam na mesma
escola, Ma. destaca que:
“Elas
gostavam de ficar dois anos com a mesma classe porque mudavam de série
todo ano, então era menos cansativo.” (Ma. – 1ª
e 2ª séries)
E enfatiza
que para o sucesso desta experiência fez-se fundamental a atuação
firme da direção, que estava o tempo todo à disposição
dos professores para auxiliá-los e dar-lhes apoio quando necessário.
Nota-se mediante a fala de Ma. que havia uma relação muito
forte de confiança entre o corpo docente e a direção:
“Nós
tínhamos um diretor tão bom, o seu B. Ele era firme, por
isso ninguém discutia as ordens dele. Nós sabíamos
que ele era uma pessoa muito ponderada e que procurava sempre um jeito
de tornar a escola melhor. Se a gente tinha um problema, podia levar para
ele que com certeza ele iria tentar encontrar uma maneira de resolver.
Quando os alunos faltavam muito, o seu B. mandava buscá-las em
casa. Por isso não havia evasão de alunos. Isso era muito
difícil de acontecer.” (Ma. – 1ª e 2ª séries)
Conclusões
da investigação:
Mediante
os relatos apresentados e considerando os objetivos desta pesquisa, bem
como a opinião de diferentes autores sobre processos de mudança
e a situação dos professores, é possível apresentar
algumas reflexões sobre o assunto.
A descrição das práticas pedagógicas das professoras
entrevistadas permite afirmar que não houve entendimento suficiente
da proposta de 69, pois as mudanças que eram necessárias
para o sucesso deste programa não aconteceram. Verifica-se que
o ensino continuou centrado no professor e a alfabetização
permaneceu baseada em métodos sintéticos, principalmente
no método silábico, como já vinha acontecendo anteriormente.
A ampliação do tempo para a aprendizagem da leitura e da
escrita, prevista pela implantação do sistema de níveis,
foi entendida, em geral, como “promoção automática”.
Isso significou que a exigência de conteúdos na primeira
série diminuiu, mas o mesmo não aconteceu na segunda série,
na qual o currículo permaneceu inalterado. Os professores ainda
partiam do pressuposto que todos os alunos tinham que ler e escrever para
freqüentar essa série. Não houve continuidade na alfabetização
na passagem do primeiro para o segundo ano, nem a realização
de um trabalho diferenciado. Os professores apenas retomavam o trabalho
com a cartilha, repetindo todas as lições.
A própria idéia de níveis não foi bem compreendida,
pois no entender dos professores, primeira série era uma etapa
com um fim em si mesma e segunda série era outra etapa, não
interligadas entre si, como sugeriam os níveis.
As falas permitem constatar que os alunos foram muito prejudicados com
a implantação errônea deste programa. Aumentaram as
lacunas e as dificuldades escolares. Os altos índices de repetência
foram transferidos da primeira para a segunda série, mas não
diminuíram como era esperado.
De acordo com Micotti (1997, p.27) os acontecimentos relativos à
reforma educacional de 69 podem se atribuídos a fatores como o
autoritarismo vigente na época, incompatível com seus avanços
pedagógicos, ou à insuficiência de medidas para promover
a sua prática.
Ao avaliarem-se os aspectos englobados por esta pesquisa, pode-se concluir
que a maioria dos professores não aprovou tal programa porque não
estava preparada para colocá-lo em prática. Por outro lado,
nas escolas onde a implantação da proposta foi bem sucedida,
como relatou a professora Ma., verifica-se a presença de um corpo
docente unido e disponível para mudar, que buscou compreender e
aplicar a nova proposta.
Nesse processo, os professores e a direção viram-se obrigados
a elaborarem estratégias que viabilizassem o ensino estruturado
em níveis. Isso implicou na reestruturação de muitos
conceitos, entre os quais destaca-se a mudança de sistema seriado
para níveis e na aceitação de que não havia
mais o professor de primeira e o de segunda série, com funções
diferentes e específicas, mas existia sim, o professor do nível
I, responsável pela alfabetização do aluno durante
esse período.
Conclui-se, portanto, que a reorganização da escola em níveis
ou ciclos de aprendizagem não supõe apenas uma aceitação
ideológica seguida da execução de regras e determinações
teóricas. Essa mudança exige novas competências de
cada docente e, principalmente, uma representação diferente
sobre como se aprende e sobre o papel do professor nesse processo.
A descrição da experiência bem sucedida de Ma. serve
para ilustrar que é possível pensar em uma escola diferente,
organizada em ciclos de aprendizagem, que respeite o processo de construção
do aluno no que se refere à língua escrita e contribua para
a instauração de relações mais democráticas
entre todos os envolvidos no processo educacional.
Para isso, entretanto, fica evidente que sem a adesão dos educadores
e da sociedade de maneira geral, toda e qualquer tentativa de mudança
continuará fadada ao fracasso.
Seria, no mínimo, simplista, insistir em reformas educacionais
que exigem, de um momento para outro, o abandono das práticas pedagógicas
conhecidas, ignorando o que pensam e conhecem os professores.
Há que se considerar que, mesmo se os docentes realizassem tal
feito, isso não seria garantia de que as propostas seriam aplicadas
como prevêem as teorias, pois elas estão sempre sujeitas
ao olhar e à interpretação de cada professor.
Destaca-se, entretanto, que as tentativas de implantação
de ciclos que permeiam a história da educação brasileira
serviram para mostrar o que não deve ser feito.
Deve-se aproveitar as contribuições advindas dessas experiências
para estruturar uma proposta efetiva de mudança na escola, que
tenha como objetivo principal democratizar a educação e
torná-la mais inclusiva.
Referências:
ALMEIDA JR,
A. F. Repetência ou promoção automática? Revista
Brasileira de Estudos Pedagógicos. V. 27, n.º 65, p. 3-15,
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CORDEIRO, J.F.P. Falas do novo, figuras da tradição: o novo
e o tradicional na educação brasileira (anos 70 e 80). São
Paulo: Editora UNESP, 2002.
DIAS-DA-SILVA, M. H. G. F. Sabedoria Docente: repensando a prática
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maio 1994.
MICOTTI, M. C. de O. O professor e as propostas de mudanças didáticas.
In: SERBINO, R.V. (Org.) Formação de professores. São
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Documento Oficial:
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São Paulo. SE, 1969. |
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