Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt (Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ)
Alexandre Batista da Silva (Secretaria Municipal de Educação
- SME, Barra Mansa, RJ)
1. Introdução
Neste trabalho, propomo-nos, em termos gerais, a discutir
aspectos da produção de significados via linguagem dentro
de sala de aula. Em termos específicos, pretendemos observar as
condições de validação das noções
de certo e errado nas atividades de leitura, comparando-as ao comportamento
real dos alunos ao elaborarem suas respostas.
Quanto à nossa proposta, estamos cientes de que há aspectos
institucionais inerentes ao entorno ambiental que cerca professor e alunos,
e de que as relações entre eles se marcam pela assimetria
de poder, a qual decorrentemente gera a necessidade de conscientização
das formas de atitude em sala por parte dos alunos e também dos
professores. Relativamente a essa realidade, nossa hipótese é
a de que a instituição escolar, personificada na figura
do professor, alimenta sobre o aluno determinadas expectativas de comportamento
que acabam por embutir-se tanto na preparação das atividades
de leitura quanto na sua correção, muitas vezes travestindo-se
de avaliação de conteúdo.
Para discutir esta hipótese, valemo-nos de uma atividade de leitura
aplicada inicialmente durante a pesquisa realizada por Mansur (1999),
que investigou a capacidade de argumentação de crianças
de segunda série do Ensino Fundamental , e repetida por nós
em uma turma de quarta série da Escola Municipal Independência
e Luz, Em Barra Mansa, RJ.
A perspectiva teórica adotada em nosso estudo integra-se à
hipótese sócio-cognitiva sobre a linguagem e o pensamento
(Tomasello, 1999, 2003; Salomão, 1998, 1999; Gerhardt, 2002, 2003),
a qual, entre outras proposições, discute a produção
da semiose lingüística relacionada a processos cognitivos
finamente articulados a modelos construídos sócio-histórica
e interacionalmente. É justamente a interferência desses
modelos que estará em jogo, ao nosso ver, na avaliação
das atividades de leitura que pretendemos examinar.
Nossa visão de como se estabelecem as noções escolares
de certo e errado, bem como as justificativas da adoção
de um aporte sócio-cognitivo para o estudo que empreendemos, seguem-se
abaixo. Após isso, passamos a examinar os materiais oferecidos
por Mansur (op. cit.) de uma atividade de leitura de um texto de livro
didático, a fim de fundamentar os argumentos que apresentamos em
nossa própria aplicação de outra atividade de leitura
para o mesmo texto.
2. As noções escolares de certo e de errado
A definição das noções de
certo e errado na escola brasileira tem raízes antigas, mas que
podem ser observadas de maneira mais geral e sistemática a partir
do processo de fragmentação das informações
transmitidas na escola que foi intensificado com o advento do MOBRAL,
na década de 60. Geraldi (1991), sobre isso, descreve-nos os frutos
da iniciativa de “democratização” do ensino
promovida pelo regime militar, que implicava uma inserção
maciça de alunos nas salas de aula: turmas lotadas, professores
formados a toque de caixa, um ensino cuja eficiência se representava
por números; daí, por exemplo, o ensino de língua
portuguesa fundado na memorização de nomenclatura gramatical,
e no conseqüente abandono de práticas de ensino voltadas para
a escrita, leitura e discussão de textos dos livros didáticos
de todas as disciplinas.
Este processo deságua numa forma restrita de compreensão
do que é uma aula de português - definitivamente, uma aula
de nomenclatura gramatical. Aliás, muitos não entendem que
uma aula de leitura ou confecção de textos escritos também
é uma aula de português, muito embora não raro a pouca
prática de leitura das pessoas advenha sobretudo da escola, e seja
neste espaço moldada (como sugerem Zilberman & Silva, 1995:13
passim).
Tais práticas abriram horizontes para a consagração
da política dicotômica do certo X errado, entendendo-se aqui
que dar a resposta certa, entre algumas outras ações, é
responder as questões conforme o gabarito do livro didático
usado pelo professor, que passou a depender totalmente dele no seu cotidiano.
Dessa forma, sobrepondo-se à da natural negociação
de sentidos que caracteriza por excelência qualquer interação,
emerge o discurso escolar, que tem como interlocutores o aluno, exercendo
o papel de reconhecer o que é esperado dele em termos de discurso
e desempenho, e o professor, que assume por inteiro e função
de ser representante da escola como instituição (Brito,
1985) – vale dizer, aliás, reconhecido como o representante
imediato e primordial de todas as instituições que exercem
poder constitucional sobre o futuro cidadão: a Justiça,
a Polícia, o patrão.
Desse modo, podemos propor que, em grande medida, a visão sobre
a qualidade da leitura do aluno se fundamenta nas formas de relação
instauradas em sala de aula, cujos participantes têm papéis
fortemente pré-estabelecidos, e, nesse cenário, o aluno
tem de dar as respostas que são certas no entender do professor,
do livro didático e da instituição. Semelhantemente,
será possível também propor que, em grande medida,
as respostas erradas do aluno se mesclariam às situações
em que ele subverte o seu papel, por isso se pode facilmente hipotetizar
que, quando o aluno cumpre tarefas escolares, estar certo ou estar errado
em suas respostas de alguma forma diz respeito ao nível de incorporação
do seu papel dentro de sala de aula.
Em suma: no momento em que a escola, como instituição, define
quais são as respostas certas e as erradas, terão um grande
peso aí os preceitos institucionais das formas de relacionamento
e expectativas de comportamento escolar que ela, a escola (e a sociedade
também) criou ao longo dos anos, e que estão presentes em
cada minuto em que se defrontam/confrontam professor e aluno.
3. A investigação sócio-cognitiva
dos fenômenos de produção de significados na escola
A determinação sócio-cognitiva sobre
a linguagem e o significado na pesquisa que ora realizamos acarretará
a construção de hipóteses com base numa observação
do ser humano em variados enquadramentos, como sujeito apto tanto a padronizar
cognitivamente os significados à sua volta, como também
a checá-los contra as formas de relação que negocia
e estabelece com seus semelhantes. Com a adoção dessa visão
de mundo, capacitamo-nos a entender em amplitude inédita o fenômeno
do letramento conjuntamente à questão de a leitura ser uma
experiência relacionada a aspectos filogenéticos, ontogenéticos
e sociogenéticos, como proposto por Vygotsky e depois efetivado
por Tomasello (1999).
Abordagens que não consideram a natureza sócio-cognitiva
de qualquer processo e experiência humana, dicotomizando, de um
lado, o universo intelectual-cognitivo, e, de outro, o social, não
permitirão a percepção da leitura como, a um só
tempo, uma aquisição e uma socialização. Numa
pedagogia da leitura, tal visão não permite associar as
habilidades cognitivas do ser humano à dimensão pública
que toda informação convencionalizada intrinsecamente possui,
suscita e representa. Acreditamos, também, que assim se perde a
relação inevitável que há entre a transformação
lato sensu que o código escrito confere a uma sociedade (aquilo
que a literatura tem chamado letramento), e o que se replica, em nível
ontológico, na cognição humana - a reconfiguração
cognitiva trazida por cada aprendizado e a ressocialização
que ele necessariamente implica (Tomasello, op. cit.). Dessa forma, reconhecemos
que a aquisição e a prática da leitura não
apenas possibilitarão à pessoa recolocar seus papéis
dentro da sociedade – recolocar-se-á também a sua
cognição cumulativa (Gerhardt, 2003).
De nossa parte, numa abordagem sócio-cognitiva para a construção
de qualquer forma de conhecimento, sobretudo a experiência da leitura,
aqui em foco, estaremos potencializando nossa assunção sobre
a não-autonomia da sistematização lingüística
relativamente a qualquer produção de significado e processamento
cognitivo (cf. Bates & Goodman, 1997; Salomão, 1997, 1999),
o que nos leva a imaginar a leitura como resultado de aquisição
e socialização de processos e fenômenos que envolvem
a linguagem como representação, de forma tal que a sua apropriação
também pode reconfigurar o ser humano não apenas socialmente,
mas também cognitivamente. Diante disso, não consideramos
apenas a unidirecionalidade dos processos envolvidos na leitura, e também
não discutiremos um modelo interacional de construção
de significado em outros termos, porque assumimos como princípio
a ação transformadora do meio sobre a cognição,
e da cognição sobre o meio, igualmente.
A consideração desses fatos abre caminhos para a reformulação
da maneira de encarar qualquer fato de linguagem, já que a partir
daí se considera insuficiente o entendimento da leitura como sendo
tão-somente a mera decodificação de sinais escritos.
Igualmente, não basta avaliar a construção da leitura
como uma relação bilateral entre sujeitos cujas participações
têm mesmo valor, sendo cada um responsável, de um lado, pela
tarefa de construir significados franqueados pelas formas lingüísticas,
e, de outro lado, recuperar estes significados combinando-os a uma série
de conhecimentos adquiridos previamente. Agora teremos de reconhecer necessariamente
que as formas de relação entre esses sujeitos mediante o
ambiente em que se encontram serão guias importantes para a significação,
porque tais elementos são cruciais para definir quem são
os sujeitos a se relacionar através da linguagem em qualquer modalidade.
Os pressupostos colocados acima nos facultam supor que, na construção
do significado de qualquer natureza, os diferentes universos de construção
de mundo se interpenetram efetivamente, e a observação dessa
interpenetrabilidade pode ampliar a visão acerca de uma pedagogia
da leitura. Relativamente à pesquisa que nos propomos, uma angulação
teórico-epistemológica torna possível investigarmos
a avaliação da leitura levando em conta o entorno ambiental
da sala de aula como fator determinante da produção dos
alunos. Ora, sabemos que as orientações de sentido e premissas
interacionais da sala de aula são pertinentes somente a ela, e
a nenhum outro cenário (Bateson, 1998 [1972]); estamos certos de
que essas premissas interferirão no feedback oferecido pelos alunos
nas atividades de leitura em sala.
Do que foi dito acima, portanto, deve-se acrescentar que, para o entendimento
da perspectiva que estamos adotando aqui para observar as relações
aluno-professor e os seus efeitos na avaliação de leitura,
é essencial a noção de domínio cognitivo,
elemento básico em que estão circunscritas, organizadas
e relacionadas, de variadas formas, as experiências humanas. Em
nosso caso, particularmente, importa descrever a moldura comunicativa
como um saber provindo da recorrência de experiências de natureza
interacional. Supomos aqui que. A noção de moldura comunicativa
toma parte importante na nossa hipótese sobre a natureza sócio-cognitiva
dos “acertos” e “erros” praticados pelos alunos
em suas atividades de leitura.
As molduras comunicativas são alinhamentos de informações
disponíveis em cada evento cultural, e que o caracterizam: jogos,
cerimônias, aulas, brincadeiras etc. se organizam como conjuntos
de elementos e ações peculiares organizados de forma altamente
hierarquizada, esquematizada e atrelados às diferentes práticas
sociais que nos são tão necessárias em sociedade,
bem como à linguagem, que é negociada relativamente a cada
moldura em que marca presença. Tais conjuntos devem ser conhecidos
não apenas entre os seus participantes, mas também entre
os que os utilizam metacomunicativamente, para que saibam em que ambiente
devem enfocar os assuntos tratados nas interações, e não
corram o risco de mal-entendidos e constrangimentos. A noção
de moldura decorre do reconhecimento de que toda construção
de significado está investida de uma prescrição pública
e, portanto, deverá depender sempre de determinadas formas de negociação
entre os interlocutores para atingir sua meta de transmitir informações,
convencer, conduzir, persuadir, entre tantas outras ações
feitas com a linguagem. É importante notar que as molduras trazem
em seu bojo comportamentos lingüísticos, a par de todas as
outras formas de comportamento que também produzem significados
tão importantes quanto o que se diz, e muitas vezes determinam
o que se diz. A forte hierarquização dos elementos em jogo
na interação permite que eles sejam identificados com clareza,
o que nos faculta avaliar quais aspectos ambientais interferem na construção
do significado, e de que forma.
4. As noções de certo e errado na escola
como produto do estabelecimento da moldura comunicativa aula
A literatura que discute as relações entre
professores e alunos na escola e a sua interferência no processo
de ensino em suas práticas mais comezinhas, como efetuar o par
pergunta-resposta, já tem deixado claro que toda ação
neste ambiente está eivada, e muitas vezes acontece como decorrência
de, uma série de papéis e posturas tácitas, pré-estabelecidas
e bem conhecidas de ambas as partes (cf. por exemplo Brito, 1985; Geraldi,
1991; Kato, 1995). Ao perguntar, o professor o faz alimentando uma expectativa
de que o aluno elabore uma resposta, e apenas uma resposta, que não
raro não é a que ele supõe ser a certa (quando ele
se questiona se é certa ou não), mas sim a que está
no livro didático. Ao responder, o aluno também o faz procurando
satisfazer o que ele sabe que se espera dele, não apenas o professor,
mas todo um sistema representado pelo professor e que será replicado
em outros momentos de sua vida escolar, civil e profissional.
Esta forma de diálogo subjaz ao padrão que define as respostas
certas na escola, que por sinal sobrevive até quando é subvertido,
porque seus agentes atuam em circunstâncias claramente definidas.
O professor aceita padrões institucionais pré-estabelecidos
de avaliação e concretizados na moldura comunicativa aula
provavelmente porque aceita o papel que tem de assumir na instituição
escolar, e motiva o aluno a vê-lo assim; o mesmo faz o aluno, que
aceita que o professor o veja também pelo viés institucional.
Portanto, embutida na resposta “certa”, estará, travestida
muitas vezes em feedback de conteúdo, a satisfação
de uma determinada expectativa de comportamento escolar do aluno; de outro
lado, inclusa na resposta “errada”, estará uma subversão
do que é tácita e institucionalmente esperado.
Para exemplificar nossas afirmações, observemos o estudo
de Mansur (op. cit.), voltado para alunos da segunda série do Ensino
público Fundamental. Após terem recebido em aula informações
acerca da causa científica da chuva, as crianças leram o
texto abaixo.
A causa da chuva
Millôr Fernandes
Não chovia há muitos e muitos meses, de modo que os animais
ficaram inquietos. Uns diziam que ia chover logo, outros diziam que ainda
ia demorar. Mas não chegavam a uma conclusão.
- Chove só quando a ave cai do telhado de meu galinheiro - esclareceu
a galinha.
- Ora, que bobagem! - disse o sapo de dentro da lagoa. - chove quando
a água da lagoa começa a borbulhar suas gotinhas.
-como assim? - disse a lebre. - Está visto que só chove
quando as folhas das árvores começam a deixar cair as gotas
d'água que têm dentro.
Nesse momento começou a chover.
- viram? - gritou a galinha. - O telhado de meu galinheiro está
pingando. Isso é chuva!
- Ora, não vê que a chuva é a água da lagoa
borbulhando? - disse o sapo.
- Mas, como assim? - tornou a lebre - Parecem cegos! Não vêem
que a água cai das folhas das árvores?
Após a leitura do texto, as crianças receberam como tarefa
responder à seguinte pergunta: “Qual dos animais está
com a razão?” Enumeramos abaixo algumas das respostas colhidas
por Mansur (op.cit.), reproduzindo algumas das características
que as crianças conferiram aos próprios textos:
(1) (Thaís, 8 anos)
Nenhum deles está com a razão.
Porque a água vem do VAPOR.
Chove só quando á água cai do telhado porque ta escorregando.
Chove quando a água da lagoa começa a borbulhar! QUE ISSO!
Só chove quando as folhas das ârvores começam a cair
gotas D’ÁGUA!
(2) (Ramos, 9 anos)
Todos estão certos mais so que um mora em um lugar então
um tem uma rasão diferente como a galinha, sapo e a lebe.
(3) (Suanna, sem idade)
R: Lebre
Porque:
Porque quando scove a chuva molha as folhas.
(4) (Luiz Carlos, 9 anos)
A LEBRE
Porque quando esta chuvendo molha as folhas e depois cai nas pessoas e
fia molhadas.
Então poriço eu escolhi.
(5) (Renata, 8 anos)
A Lebre. Porque quando a chuva começa a cair, as folhas ficam molhadas
e ai eles percebem que a chuva está caindo.
(6) (Renata Aparecida, 10 anos)
Nenhum, porque pode cair um copo d’água ou qualquer outra
coisa sem ser chuva.
(7) (Raphael, 8 anos)
Nenhu deles porque a água evapora e fica carregada na nuvem e depois
chove.
(8) (Thiago, 8 anos)
E Lebre tem mais razão.
Porque eu acho que isso mesmo o que ela falou está certo. A conclusão
é que ela é a que está mais certa foi porisso que
eu escolhi a lebre.
(9) (Paulo, 9 anos)
Eu acho que a lebri esta certa porque que quando chove o pinguinhos dagua
cai das galinha.
(10)(Mônica, 8 anos)
Não
PORQUE a chuva cai em todos os lugares
Pelo que sei
(10) (sem nome)
Todos
Porque: Porque se o lago qando borbulhar está chovendo, se cai
água do telhado tambêm está chovendo, e quando cai
água das folhas também esta chovendo.
(11)(Phablo, 13 anos)
Nenhum deles tem razão.
Por quê quando chove a água não vem do telhado né
e né da lagoa e né da árvore chuva vem da nuves.
Um aspecto interessante observado nessas respostas, relativamente
às questões discutidas aqui, é que elas revelam um
gradiente de inserção dos alunos na moldura comunicativa
aula, onde eles agem diferentemente quanto à aproximação
do que é esperado deles. Observe-se que, em termos do conteúdo
arrolado, há textos que parecem fortemente atrelados às
expectativas institucionais que delimitam as respostas certas e as erradas,
aqui representadas pela repetição do conteúdo ministrado
anteriormente – a causa científica da chuva: alguns alunos
repetem o ensinamento sobre a chuva que receberam anteriormente, como
em (7) e (11) , discordando totalmente, como é de se esperar, das
afirmações dos bichos. Parece-nos que se insere também
neste conjunto o texto (8), que repete a mesma idéia três
vezes, não traz nenhuma referência ao conteúdo arrolado
nem pelo texto nem pela aula sobre a chuva, mas demonstra aproximação
com o tradicional preceito escolar de preencher o papel, não importa
com o que seja. Mas, por outro lado, há também a manifestação
pessoal mais pura, como em (1), em que a criança repete o que os
bichos disseram para salientar o absurdo, para ela, de suas opiniões,
o que, aliado à caixa alta, funciona para marcar ainda mais a sua
opinião pessoal; semelhante fato ocorre com o texto (6), que traz
a opinião particular da aluna sobre a chuva independentemente do
que foi exposto no texto; estas duas respostas revelam pouca conscientização
e preocupação em adequar-se ao universo escolar e reproduzir
modelos de expectativa.
Tais evidências nos levam a hipotetizar que, no ensino fundamental,
ainda estão em formação os padrões de comunicação
e da moldura comunicativa aula, o que favorece uma maior incidência
de respostas “erradas”, e portanto uma discussão mais
rica a respeito do que os alunos podem oferecer para uma descrição
fidedigna das suas ações e de como elas são avaliadas.
5. Um estudo de caso
Vejamos de que forma essas hipóteses se validam
no teste aplicado por nós em uma turma de quarta série de
Ensino Fundamental na Escola Municipal Independência e Luz, da rede
pública do município de Barra Mansa, em que se comparam
as respostas dos alunos às que são estabelecidas como certas
pelo livro didático que serviu de fonte à atividade. O texto
é o mesmo usado por Mansur (op. cit.) - A Causa da Chuva, e o teste
aplicado é idêntico às atividades de leitura requeridas
pelo livro didático que usou o texto como fonte (Passos & Silva,
2001: 215-17). As perguntas estão reproduzidas abaixo, e as respostas
do livro estão em itálico:
1) Para a galinha e a lebre, há chuva quando cai água. Para
o sapo, porém, a água da chuva não cai. Veja:
“-- Ora, que bobagem! – disse o sapo de dentro da lagoa. –
Chove quando a água da lagoa começa borbulhar suas gotinhas.”
O que é borbulhar?
Sair em bolhas (ou em gotas freqüentes)
2) Qual é o assunto principal do texto?
Os animais estavam inquietos porque não chovia há muitos
meses.
3) Como a galinha, o sapo e a lebre justificaram a presença da
chuva?
O lugar onde viviam, onde costumavam ficar (sob o telhado do galinheiro,
a lagoa, sob as árvores).
4) Para a galinha, quando chove?
Quando a água cai do telhado do seu galinheiro.
5) E para o sapo?
Quando a água da lagoa começa a borbulhar.
6) O que diz a lebre?
Quando as folhas das árvores começam a deixar cair gotas
d’água que têm dentro.
7) Qual foi a reação dos animais, quando começou
a chover?
Eles confirmaram a sua teoria anterior.
8) Explique com suas próprias palavras o que você entendeu
com a leitura dessa fábula.
Que ninguém abriu mão de sua opinião, sem nem ao
menos examinar o argumento dos outros.
Uma observação básica sobre as perguntas propostas
pelo livro é a de que elas tendem a obedecer a uma prática
corrente nos materiais didáticos de leitura, que é a de
apresentar perguntas que solicitem ao aluno a repetição
dos conteúdos arrolados nos textos (caso das perguntas 3 a 7).
Acreditamos que este tipo de prática faz parte da moldura comunicativa
aula, e já tacitamente leva o aluno a responder conforme o preceito
de que o que se quer dele é a reprodução dos conteúdos
. Entretanto, sabe-se que a repetição de informação
não é um critério interessante de verificação
de qualidade de leitura, porque ela não se relaciona de forma alguma
com os requisitos fundamentais para o leitor maduro, que são as
capacidades metacognitivas de levantamento de hipóteses e estabelecimento
de objetivos de leitura (Jou & Sperb, 2003), estas sim capazes de
levar o leitor a fazer, em relação ao texto que lê,
diferentes associações de conceitos e fatos, atrelados aos
diferentes objetivos que estabelece para si mesmo ao realizar a leitura
de um dado texto.
Assim, não é de surpreender que, dos 25 alunos da quarta
série da Escola Municipal Independência e Luz, de Barra Mansa,
RJ, todos responderam as perguntas 3, 4, 5 6 conforme o que foi estabelecido
pelo livro, reproduzindo às vezes literalmente o que está
escrito no texto. Temos aí, então, uma evidência de
que as respostas certas dos alunos para as atividades de leitura do pequeno
texto sobre o qual nos debruçamos seguem os preceitos determinados
pela moldura das atividades de leitura: as perguntas de 3 a 7 são
de reprodução dos fatos presentes no texto, e depois o aluno
é solicitado, na pergunta 8, a explicar o que entendeu do texto,
depois de apenas ter reproduzido seus acontecimentos. Não por acaso,
os critérios de reprodução de informações
e entendimento/reflexão sobre elas são os usados pelos indicativos
PISA, da OCDE, para definir os bons leitores, deixando-se de lado a capacidade
de articular informações do texto, esta uma ação
qualitativa e não quantitativa, e estreitamente relacionada às
estratégias metacognitivas de leitura, que são as que realmente
levam à captação interessante de informações
do texto.
Para o espaço deste trabalho, dedicar-nos-emos a examinar as respostas
oferecidas pelos 25 alunos já identificados acima, comparando-as
às respostas do livro transcritas acima. Em especial, interessam-nos
o que eles ofereceram para as perguntas 7 e 8 , porque foram justamente
as respostas que se distanciaram do que foi pedido pelo livro. Tentemos
compreender a natureza delas.
A pergunta 7 indaga como os animais reagiram quando começou a chover.
A resposta proposta pelo livro é a de repetição,
a saber, a de que todos confirmaram suas hipóteses. Entretanto,
interessantemente, alguns alunos não repetiram informações;
recorreram, sim, ao acesso à articulação entre seu
saber de mundo e os fatos e informações colocados no texto,
para afirmar que, diante do fato de que não chovia havia tempos:
oito alunos escreveram que os animais ficaram felizes com a chuva; três
alunos afirmaram que os animas tiveram uma reação surpreendente,
sem entretanto defini-la (supomos que esta resposta tenha sido motivada
pela frase “de repente, começou a chover”, no texto);
um aluno afirmou que os animais se esconderam. Estas respostas são
tomadas por nós como fruto de processos cognitivos associados a
bases de conhecimento de mundo para criar sobre a história, imaginando
o sentimento dos personagens, que, continuando a discutir ou não,
confirmando suas hipóteses ou não, podem ter ficado felizes
com a chuva, ou bem podem também ter se escondido, assustados com
ela.
Portanto, tais respostas são pertinentes a uma tarefa que busca
aferir se os alunos tiveram uma boa compreensão do texto, tanto
que eles puderam criar imaginativamente a partir dele. As respostas de
reprodução, evidentemente, não podem comprovar isso,
tampouco podem comprovar se o aluno fez uma boa leitura do texto, já
que, para respondê-las basta-lhe transcrever o que já está
explícito acima. Mas, com estas respostas, os alunos estarão
seguros de que permanecerão dentro da expectativa escolar de resposta
certa, e não correrão o risco de serem avaliados negativamente,
o que pode ocorrer com os doze alunos que responderam diferentemente do
livro.
A pergunta 8 solicita aos alunos que explicitem o que entenderam do texto.
Esta é uma pergunta padrão em livros didáticos de
leitura, e está de acordo com os indicativos de letramento que
buscam verificar o nível de reflexão do aluno sobre as leituras
feitas. É, por isso, o tipo de pergunta já sabido dos alunos,
fazendo parte da moldura comunicativa das atividades de aula.
E, provavelmente por ser uma pergunta padrão, sua resposta não
é livre – os alunos precisam ter um raciocínio específico
sobre o texto, que é o que está na resposta do livro: os
animais não abriram mão de sua opinião e ignoraram
os argumentos dos amigos. Mas esta resposta não se articula com
o raciocínio perspectival que é o pensamento fundamental
para compreender o texto – mais fundamental que a compreensão
de que os animais mantiveram suas opiniões. Por isso, das respostas
dos 25 alunos da Escola Independência e Luz, algumas delas, diferentes
do padrão, mas interessantes para a leitura, foram dadas para a
questão: que a chuva se justifica por vários fatos; que
cada um concebia a chuva de forma particular; que eles diziam a verdade
mas não eram capazes de ver que a água cai do céu;
que o texto mostra coisas diferentes que ocorrem quando chove; e que nenhum
animal iria chegar nunca a qualquer conclusão completa sobre a
chuva.
Há outras respostas também igualmente pertinentes à
leitura. Por exemplo, dois alunos enquadraram a noção de
entender, exposta na pergunta, como sendo a compreensão de um conceito:
um entendeu o que significava borbulhar, e outro entendeu que o texto
mostrava o que acontece quando chove. Duas respostas também foram
verdadeiras reflexões sobre os problemas decorrentes da falta de
chuva e das discussões que não chegam a termo, e algumas
outras foram simplesmente qualificações: a história
era engraçada, era “legal”.
Assim, das respostas oferecidas pelos 25 alunos, além de duas respostas
em branco, nenhuma afirmava que nenhum dos animais abriu mão de
seu argumento, embora tenha havido respostas problemáticas como
a mera reprodução da história (cinco alunos) e respostas
tipo “entendi tudo/nada” (três): Parece a nós
que estas respostas é que são verdadeiramente problemáticas,
porque não são fruto de qualquer raciocínio sobre
o texto, e meramente pretendem preencher um espaço em branco ou
seguir o padrão geral reprodutivo das informações
presentes no texto. Todas as outras respostas são pertinentes à
leitura do texto, e demonstram alguma reflexão sobre ele.
6. Reflexões breves
A observação rápida que realizamos
sobre as respostas para a atividade de leitura transcrita neste trabalho,
longe de nos levarem a qualquer conclusão sobre a forma como os
alunos respondem às atividades pedidas ou buscam se enquadrar na
moldura comunicativa aula através delas, suscitam investigações
acerca da incorporação dessa moldura por parte dos alunos.
No nosso caso, temos um pequeno universo de alunos de idades semelhantes,
e, não obstante, nem todos responderam de igual maneira ao que
foi pedido. Podemos, sobre isso, fazer duas conjeturas que, longe de serem
afirmações acabadas, apenas nos levam a buscas mais aprofundadas
sobre o problema que ora nos colocamos: (i) é preciso entrever
as lógicas sócio-cognitivas pertinentes aos comentários
e respostas que os alunos fazem sobre os textos que lêem; seguramente,
a sua busca de compreensão sempre partirá do acesso a conhecimentos
de mundo interferentes na leitura do texto, e também ao levantamento
de hipóteses e objetivos de leitura, que orientam a articulação
de idéias e conceitos que ele fará. (ii) Em contrapartida,
o padrão reprodutivo nas atividades de leitura nos livros didáticos
está de acordo com os parâmetros estabelecidos pelos indicativos
oficiais e extra-oficiais que têm apresentado resultados sobre a
qualidade de leitura do estudante brasileiro. A qualificação
de certa ou errada para uma dada resposta traria embutidos esses elementos,
e pode estar deixando um vácuo relativamente às reais capacidades
de leitura dos alunos, que passam despercebidas das avaliações.
Esta pesquisa, que ainda está em seu começo, buscará
encontrar questões relevantes para os fatos citados acima, sem
deixar, é claro, de avaliar junto ao professor, que é a
outra figura importante dento de sala de aula, a sua opinião sobre
as respostas do livro didático e as diferenças entre elas
e as respostas dos alunos. Este será nosso próximo passo.
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