Irene Jeanete Lemos Gilberto -Universidade Católica
de Santos
Resumo:
O trabalho põe em discussão uma experiência pedagógica
realizada com professores de literatura, no Projeto Teia do Saber, do
Programa de Formação Continuada, promovido pela Secretaria
de Estado da Educação, no município de Santos-SP.
Partindo do pressuposto de que a pesquisa sobre a imagem contribui para
o ensino da literatura, a atividade voltou-se para a correlação
entre a imagem cinematográfica e a imagem verbal, com objetivo
de analisar as informações produzidas pelo grupo de professores,
contrapondo-as às informações visuais contidas em
narrativas literárias. Os resultados revelaram diferentes graus
de significação do verbal e do não verbal, o que
oportunizou reflexões sobre a relevância do estudo da imagem
no ensino da literatura.
1.Introdução
Nos dias de hoje tornou-se quase um lugar comum ressaltar
a importância de a escola centrar seus esforços na leitura
do visual, com objetivo de desenvolver a sensibilidade do aluno e de inseri-lo
no universo das imagens, de modo a formar o cidadão consciente
e crítico. Contudo, apesar do debate intenso que, há algum
tempo, vem sendo travado sobre o assunto, confrontamo-nos com realidades
educacionais distintas, nas quais professores parecem estar totalmente
distanciados dessas discussões, expressando inclusive suas dificuldades
na leitura tanto de textos escritos quanto na leitura da imagem.
O presente trabalho retoma essas questões, partindo do pressuposto
de que o conhecimento sobre a produção da imagem, além
de ser fundamental no processo formativo do educador, contribui para o
desenvolvimento da percepção do sujeito em relação
à leitura do texto literário.
As escolas, atualmente, dispõem de um rico acervo visual, o qual,
ao ser utilizado de forma adequada, possibilita o conhecimento da cultura
visual e de seus mecanismos de produção, além de
aguçar a sensibilidade do sujeito, dando-lhe condições
de participar do universo da cultura. Além disso, não se
pode negar a importância que os meios de comunicação
exercem hoje sobre os leitores, não apenas no que refere às
relações sociais, mas também porque oportunizam a
reflexão sobre as formas de produção e sobre os efeitos
de sentido produzidos pela leitura dos diferentes gêneros discursivos
com os quais temos contato em nosso dia a dia.
Não se pretende, neste trabalho, abarcar todas as complexas questões
que envolvem os processos formativos da leitura dos diferentes gêneros
textuais, porém destacar alguns aspectos relativos aos modos de
ler a literatura como imagem, a partir da trajetória de leitura
dos sujeitos envolvidos na pesquisa realizada, a saber, 39 professores,
que atuam na área de língua portuguesa e de literatura,
em escolas da rede municipal de ensino da Baixada Santista.
Um breve perfil dos 39 professores pesquisados, extraído das respostas
elaboradas a partir de um questionário aplicado inicialmente aos
sujeitos, revela que 84% são formados em Letras; 8% em Pedagogia
e 8% declaram ter feito dois cursos, Letras e Pedagogia. Os docentes pesquisados
atuam nas escolas da rede municipal, sendo que 5% atuam há mais
de 21; 23% , há mais de 16 anos; 35% declararam atuar há
mais de 11 no magistério; 6% atuam há mais de 06 anos; 8%,
há mais de 03 anos, enquanto 3% atuam na rede municipal entre 1
e 2 anos. A maioria dos docentes dá aulas apenas na rede municipal
de ensino (72%), enquanto 28% declararam atuar também em escolas
particulares.
Quanto à faixa etária, o grupo pode ser assim descrito:
13% têm entre 20 e 30 anos; 41% situam-se na faixa etária
entre 31 a 40 anos; 38% declararam ter entre 41 a 50 anos e 8% afirmaram
estar com mais de 50 anos. A maioria (92%) é do sexo feminino e
8% ,do sexo masculino.
Em relação à naturalidade dos pesquisados, obteve-se
o seguinte resultado: 84% nasceram na região sudeste; 8% na região
nordeste; 5% na região norte; 2% na região sul e 1% no exterior
(Portugal).
Os pesquisados afirmaram morar nas cidades da Baixada Santista, especificamente:
41% declararam morar em São Vicente; 28%, na Praia Grande; 23%,
em Santos; 5%, em Peruíbe, 3% em Cubatão. Embora as cidades
sejam muito próximas, esse dado mostra que a maioria dos professores
reside na cidade em que atua profissionalmente.
Nas respostas obtidas, observou-se que a maioria dos professores considera
a educação continuada uma oportunidade de refletir sobre
sua prática docente e de ressignificar seu papel de educadores,
possibilitando-lhes melhor compreender a complexidade educacional do momento
presente.
2.Procedimentos metodológicos: investigando os
signos da escrita
Barthes (2004), ao referir-se à teoria da leitura
e sua relação com a interdisciplinaridade, mostra-nos como
a leitura é, na verdade, um ato contínuo.
Onde começa a leitura? Até onde ela vai?
Será possível atribuir uma estrutura, fronteiras a essa
produção? Nunca será demais ter várias disciplinas
para responder a essas perguntas: a leitura é um fenômeno
sobredeterminado, que implica níveis de descrição
diferentes. Leitura é aquilo que não pára. (BARTHES,
2004, p.171)
Embora a questão dos níveis de leitura seja
questionada por muitos educadores, é fundamental lembrar que não
se trata de mera classificação de leitores, mas de avanço
do conhecimento em relação aos saberes que o texto ou a
imagem nos proporcionam. Sob esse aspecto, a teoria de Barthes merece
algumas considerações.
Ao propor quatro níveis do ato de leitura, a saber, o nível
perceptivo, o denotativo, o associativo e o nível intertextual,
Barthes (2004, p. 172) pontua aspectos pertinentes ao modo como essas
etapas de leitura incorporam novos saberes, dado que cada um dos níveis
referidos corresponde ao desenvolvimento e à complexização
do ato de leitura. Segundo o autor, o nível perceptivo corresponde
a uma leitura que privilegia a percepção de entidades visuais,
enquanto o nível denotativo aponta para a intelecção
das mensagens. O terceiro nível, a que o autor denomina associativo
ou conotativo, envolve a interpretação do sujeito, enquanto
o nível intercontextual diz respeito a uma leitura mais complexa,
que envolve outros códigos e outras culturas. Esses níveis,
por sua vez, são acrescidos ao que Barthes (2004, p.172) denomina
´integradores´: “ o código social (níveis
de cultura, situação de classe, pressões ideológicas)
e o desejo, a fantasia (níveis e tipos de neurose)”.
As considerações acima sobre ato de leitura e a complexa
estratégia de interações que envolvem os receptores
de textos e de imagens levaram-me a investigar os procedimentos de desconstrução
do texto literário, a partir da construção de outro
gênero textual, o roteiro cinematográfico. A atividade foi
proposta aos professores durante o curso de educação continuada
para professores, intitulado Metodologias de Ensino de disciplinas de
Áreas de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias do ensino
médio: Língua Portuguesa e Literatura I, cujo enfoque centrou-se
na metodologia do ensino de literatura no ensino médio. Nas falas
iniciais dos docentes ficou clara a dificuldade que enfrentam, em suas
práticas docentes, em relação ao ensino de Literatura,
especificamente, em relação à leitura do texto literário
por parte do estudante.
Indagados sobre as dificuldades encontradas na prática docente,
os pesquisados elencaram uma série de questões que vão
desde a escolha do material para leitura, dado que os alunos têm
dificuldade de compreender os clássicos da literatura, até
como operacionalizar a leitura de textos populares, de modo a desenvolver
nesses alunos o gosto pela leitura dos clássicos. Essas questões
complexas e que dizem respeito à formação do estudante
para participação no mundo da cultura trazem consigo outro
agravante: o que os professores lêem atualmente? E como lêem?
Embora não seja objeto deste estudo discutir a situação
desses docentes em relação à atualização
da leitura do texto literário, dado que isso implica em questões
outras que dizem respeito à disponibilidade de tempo para leitura
e à falta de atualização das bibliotecas nas escolas,
é importante pontuar que, dentre os 39 professores pesquisados,
apenas 08 declararam ter lido obras de autores contemporâneos. Esse
resultado, tendo em vista a amostra, é insuficiente e revela que
a prática de leitura das novas produções literárias
está muito distante do ideal de leitura de um professor formador,
o que significa também que esses docentes não estão
participando das mudanças e dos debates que os novos textos literários
proporcionam. Caso seus alunos tenham conhecimento sobre novas produções
literárias e sobre o que elas trazem para o desenvolvimento do
senso crítico, isto poderá ser a porta de um diálogo,
desde que o docente também se disponha a informar-se a respeito
do assunto.
O mesmo se poderá dizer em relação à imagem,
pois seria uma ingenuidade negar que os meios de comunicação
também contribuem para formar o cidadão. Se o estudante
dispõe de mais tempo para assistir a TV ou para jogar vídeo
game, seu cabedal de informações sobre a imagem, certamente
será bastante representativo. Trazer questões pertinentes
à imagem para debate em sala de aula é uma forma de dialogar
com os valores implícitos nessas produções e educar
o cidadão para uma leitura crítica e consciente do que os
meios de comunicação nos oferecem. A esse respeito, Citelli
(1999) observa:
Sem ignorar a existência de outras questões
de natureza institucional e organizacional da escola, julgamos que há
dificuldades conceituais com respeito à própria natureza
complexa da linguagem televisiva. Afinal, como aproveitar melhor as sugestões
do filme publicitário, da telenovela, dos noticiários, das
entrevistas, dos programas – muitos deles levados ao ar pela TV\Cultura
de São Paulo e que possuem propostas estimulantes -, sem perder
de vista a totalidade significativa que os estrutura, em seus cruzamentos
sígnicos que envolvem palavras, gestos, luz, cor, movimento? (CITELLI,
1999, p. 29)
Com objetivo de investigar como os professores constroem
as múltiplas leituras do visual e quais as interconexões
que se estabelecem nesses processos, foi realizada uma pesquisa sobre
a leitura da imagem. Para tal foram utilizados vários tipos de
imagem, desde a fotografia à imagem em movimento, com vistas ao
aprofundamento de questões voltadas para a cultura da imagem e
os significados a ela atribuídos pelos docentes pesquisados.
Sob esse aspecto, a tese da leitura visual como uma rede de significados,
proposta por Hernandez (2000) ajuda-nos a compreender a relevância
da interpretação no ato da leitura: “O que se persegue
é o ensino do estabelecimento de conexões entre as produções
culturais e a compreensão que cada pessoa, os diferentes grupos
(culturais, sociais, etc.) elaboram.” (p.49)
A interpretação, portanto, possibilita ao receptor descobrir
as infinitas interconexões que a imagem lhe oferece, uma vez que
esta se configura como um universo permanentemente aberto. O aprendizado
da leitura da imagem, contudo, somente será possível, se
houver intensificação das leituras, desenvolvimento da observação
e da indagação em relação aos elementos integrantes
da imagem. Se ler imagens significa saber ler o seu sentido, o aprendizado
dessa leitura pressupõe a leitura crítica da trajetória
realizada pelo olhar, que registra as impressões visuais globais,
incorporando as rupturas ou contradições entre o que é
percebido e o que é compreendido.
A imagem não é um texto sem palavras, mas é a análise
do conjunto dos signos e de sua produção. Sob esse aspecto,
a tendência que incorpora a interpretação ao signo
visual acrescenta ao processo de leitura informações que
vão além dos objetos meramente descritos, dado que relaciona
esses objetos a outros produtos artísticos e culturais. O que está
em pauta, nesse processo de leitura, segundo nos afirma Hernandez (2000,
p.49), é o fato de “(...) em suma, ir além de “o
quê” (são as coisas, as experiências, as versões)
e começar-se a estabelecer os porquês dessas representações,
o que as tornou possíveis, aquilo que mostram e o que excluem,
os valores que consagram”.
O segundo momento da pesquisa realizada com os docentes priorizou a relação
palavra-imagem e a investigação voltou-se para as formas
de leitura do texto literário. O resultado revelou que a leitura
dos pesquisados foi, predominantemente, de nível perceptivo e denotativo,
dado que os docentes procederam a uma leitura interiorizada do texto literário.
No intuito de atingir o quarto nível de leitura proposto por Barthes
(2004), a saber, o nível intertextual, procedeu-se a uma atividade
de desconstrução do texto literário, partindo do
pressuposto de que, ao apreender a imagem e a forma como esta se apresenta
no texto, poderemos atingir o estágio de “leitura viva”
de que nos fala Barthes (2004, p.173) no mesmo estudo, definida pelo autor
como a leitura que produz “ um texto interior, homogêneo com
uma escrita virtual do leitor”.
O presente trabalho é o resultado dessa pesquisa e apresenta reflexões
sobre os procedimentos de desconstrução do texto literário
e a reconstrução de outro gênero textual, o roteiro
cinematográfico, no sentido de verificar a rede de significações
estabelecidas em relação à linguagem literária
e à construção da imagem. Para tal, foram selecionados
pequenos trechos de narrativas literárias, além de poesia,
pertencentes a diferentes autores e a diferentes períodos literários.
A escolha do corpus pressupôs que a leitura dos textos literários
poderia resultar em informações significativas sobre procedimentos
de leitura dos docentes.
Foram selecionados trechos de obras de Eça de Queiroz, Chordelos
de Laclos, Gustav Flaubert, José Saramago, Alan Robbe-Grillet,
Autran Dourado, Rubem Fonseca, Ana Miranda, Cecília Meirelles,
entre outros. O critério de seleção dos textos teve
como base o fato de essas obras serem conhecidas pelo público e
possibilitarem uma leitura que favorecesse os fenômenos da cultura
artística, dado que foram criadas em diferentes momentos históricos
e culturais.
Inicialmente, cada participante fez a leitura individual do trecho escolhido
e, a seguir, todos os componentes do grupo discutiram cada uma das leituras
individuais, e elaboraram um relatório, com a síntese dessas
leituras, síntese essa que foi apresentada ao grupo de professores.
No segundo momento, procederam à realização do roteiro
do texto, a partir da metodologia de elaboração do roteiro
cinematográfico e das leituras realizadas pelo grupo de professores.
3. A imagem literária e a imagem cinematográfica:
a produção do roteiro
Uma das questões postas pelo grupo de professores
voltou-se para os atos de leitura do texto literário, a partir
da concepção de Barthes anteriormente referida. Com objetivo
de ampliar o conceito de leitura e de aprendizagem, foi proposta uma atividade
de desconstrução dos textos anteriormente selecionados e
elaboração de um roteiro cinematográfico a partir
dos mesmos textos. Com base nas teorias eisenstenianas que têm como
suporte a literatura, pôde-se observar como eram compreendidos os
significados do texto literário na passagem para a linguagem visual.
As teorias de Eisenstein (1969) merecem algumas considerações.
O cineasta tornou-se conhecido pela criação da chamada “tesoura
poética”, um processo criativo da montagem cinematográfica
e, em seus escritos, mostra como a leitura da obra literária auxiliou-o
na compreensão da montagem. Seus textos estão pontuados
de exemplos literários, nos quais nos esclarece sobre sua forma
de ler a obra literária, a partir das imagens que o texto oferece.
Leitor atento dos clássicos, a literatura, para Eisenstein, tornou-se
fundamento para a elaboração da teoria sobre a montagem
cinematográfica, a qual, na concepção do autor, é
apenas um dos casos de montagem. Nos seus escritos, ficam evidenciados
os objetivos com que lê a literatura, nela buscando comprovar os
princípios da montagem.
A montagem, para Eisenstein, representa o princípio unificador
dos elementos que não se apresentam isolados ou fragmentados, mas,
no seu conjunto, revelam a representação particular do tema.
Em suas teorias, o cineasta faz distinção entre representação
e imagem. Segundo seu pensamento, a imagem é formada por vários
quadros, que são as representações, e esses quadros
se justapõem para formar o tema. E é através da montagem
que o conjunto torna-se perceptível ao leitor que revive o processo
de composição da imagem como se acompanhasse passo a passo
o trabalho do cineasta. Da mesma forma, o escritor compõe sua obra
através das imagens que justapõe, em busca de um movimento
interior do texto.
Como trabalhar com a multiplicidade de informações que o
texto nos oferece? Essa questão foi proposta aos docentes pesquisados,
tendo em vista a elaboração do roteiro cinematográfico
a partir dos textos selecionados.
4. Resultados: A linguagem cinematográfica na cena
literária
O primeiro aspecto diz respeito à forma como foram
lidos os textos literários pelo grupo de professores. Contextualizados
os textos oferecidos, cada um dos componentes procedeu à leitura
e à interpretação do texto. A seguir, passou-se ao
debate sobre essas leituras e cada grupo fez a síntese, a partir
da qual foi elaborado o roteiro da cena. De modo geral, a maioria dos
grupos conseguiu elaborar um roteiro, porém muito próximo
do texto literário, conforme se poderá observar no exemplo
do grupo que trabalhou sobre uma cena do texto de Saramago, O evangelho
segundo Jesus Cristo (1991).
A candeia de azeite alumiava como um espectro os quatro
habitantes da cova, o burro, imóvel como uma estátua, com
os beiços sobre a palha mas sem lhe tocar, o menino apenas dormindo,
enquanto o homem e a mulher enganavam a fome com uns poucos figos secos.
Maria dispôs as esteiras no chão, lançou sobre elas
o lençol e, como todos os dias, esperou que o marido se deitasse
(SARAMAGO, 19991, p.117)
O grupo deu prioridade à descrição,
ao escrever que “a cena retrata os quatro habitantes que estão
na cova; a posição de cada um e os cortes, mostrando a passagem
do tempo”.
A partir da descrição da cena, o grupo elaborou um roteiro
com cinco imagens: 1) estábulo abandonado;2) animal imóvel;3)
menino dormindo;4) casal se alimentando;5) preparando o leito. Para cada
uma das imagens foi designado um tipo de plano e enquadramento, movimento
de câmera, locução e sonoplastia. Não vamos
nos deter aqui na análise de todos os aspectos relativos ao enquadramento
e aos movimentos de câmera propostos no roteiro pelo grupo, mas
é fundamental observar como foi feita a leitura da cena literária
a partir das imagens elaboradas para o roteiro.
A seqüência de imagens priorizadas pelo grupo coloca em destaque
um espaço distinto daquele proposto por Saramago, dado que prioriza
o “estábulo abandonado” que é apresentado juntamente
com um efeito de sonoplastia (uivo do vento), enquanto o texto literário
incide na questão do espaço interior, na fraca iluminação
do ambiente, no efeito de luz e sombra. No conjunto das imagens que compõem
o roteiro, o grupo destacou a ação das personagens, deixando
de lado os movimentos do olhar do espectador que se volta para os pormenores
da cena. Esses pormenores surgem no roteiro como locução,
ou seja, enquanto são vistas as cinco tomadas acima descritas,
uma voz em off faz a leitura do texto literário.
Já o grupo que trabalhou uma cena da obra de Autran Dourado, Confissões
de Narciso, priorizou a narrativização.
Levanto os olhos do papel e olho, além do camafeu,
o retrato de mamãe na parede, ela meio de perfil: bastante jovem,
de uma fresca beleza primaveril, com certeza tirado antes do casamento.
É inacreditável, também ela na mocidade era uma figura
de camafeu! (DOURADO, 1997, p. 68).
O grupo assim descreveu o texto:” A cena apresenta
uma certa nostalgia da personagem em relação ao retrato
da mãe, despertando seu repertório de memórias e
projetando uma reflexão”.
O roteiro, contudo, enfocou três cenas: 1) a imagem saindo da personagem
para seu foco de visão; 2) a primeira visão da personagem;
3) a segunda visão da personagem. Da mesma forma que o grupo anterior,
também a descrição dos planos, os movimentos de câmera
e o áudio mostram como o grupo “recuperou” o texto
literário na locução, usando o recurso da voz em
off.
Os dois exemplos acima possibilitam uma reflexão sobre o ato de
ver. Embora pareça natural, o ato de ver envolve a vontade do sujeito
e, conseqüentemente, uma educação do olhar. No dizer
de Parente (1993, p. 28), “a imagem é, em primeiro lugar,
uma decupagem, um corte espacial, visor de câmera, janela de projeção,
quadro, tela, página. Ela vale tanto pelo que mostra quanto pelo
que esconde: ela mostra se escondendo e se esconde mostrando”.
Trazendo essa reflexão para as conclusões elaboradas pelos
docentes pesquisados, pode-se observar que a primeira produção
do roteiro a partir da cena literária motivou o grupo a pesquisas
sobre a linguagem cinematográfica e a técnicas de elaboração
de roteiro em sala de aula.
5. Considerações Finais
A interpretação é um dos aspectos
que permeia as leituras das obras visuais, a começar pela transposição
de linguagens, dado que a linguagem visual passa a ser descrita pela linguagem
verbal. Sobre a interpretação, esclarece Manguel: “Quando
tentamos ler uma pintura, ela pode nos parecer perdida em um abismo de
incompreensão ou, se preferirmos, em um vasto abismo que é
uma terra de ninguém, feito de interpretações múltiplas”
(MANGUEL, 2001, p. 29)
Já Hernández (2000), em seu estudo, mostra que a interpretação
exerce um papel relevante no processo da leitura do visual, a ponto de
não ser possível separar o conhecedor e o conhecido nas
práticas discursivas. Segundo o autor, “os objetos artísticos,
as imagens na(s) cultura(s) aparecem assim não como unidades e
variáveis formais, mas sim como unidades discursivas abertas para
serem completadas com outros olhares e, portanto, com outros significados”.
(HERNÁNDEZ, 2000, p. 107)
A análise dos roteiros apresentados pelos grupos pesquisados, em
seu conjunto, revelou dois aspectos: um poder de síntese bastante
acentuado em relação à descrição das
imagens da cena literária e um alargamento dessa síntese,
na interpretação da cena. A interpretação,
nesse caso, deslocou-se para a criação do áudio e
dos efeitos sonoros de cada uma das imagens, quando os pesquisados puderam
expressar suas emoções através da escolha de músicas
e dos sons que acompanhariam as imagens descritas.
De modo geral, ao avaliar os trabalhos dos grupos, os docentes pesquisados
mostraram bastante interesse em dar prosseguimento a essas atividades
na sua prática docente, como forma de enriquecer a leitura do texto
literário. Assim se expressou um dos grupos:
Esse recurso nos trouxe uma nova visão, ou seja,
de como podemos montar um filme com detalhamentos, enriquecendo nossa
aula, transformando o texto literário em imagem, com objetivo de
formar crítica e construtivamente nosso aluno.
Ao propor uma reflexão sobre a leitura do texto literário
e sua transposição para a linguagem cinematográfica,
o presente trabalho centrou-se nos atos de leitura, partindo do pressuposto
de que a interpretação, enquanto rede de significados, é
um dos caminhos para a construção de leitura do visual.
É importante ressaltar que houve um envolvimento de todos os participantes
na elaboração do roteiro, o que possibilitou verificar a
importância da interação dos sujeitos no processo
de construção da interpretação da imagem.
Sob esse aspecto, Belmiro e Afonso Jr.(2001,p.49), ao discutir a dimensão
cultural da imagem na formação de professores afirmam:
O trabalho que, de uma maneira geral, a escola vem propondo,
contempla uma leitura de recomposição dos fatos, espaços,
esquecendo-se do poder interpretativo do espectador como instância
criadora.
O poder interpretativo, no caso, pode ser desenvolvido
na leitura do texto literário e na elaboração de
imagens que enriquecem, sobremaneira, os processos formativos. Já
que a imagem está presente no cotidiano do professor e que não
é mais possível ignorá-la, há que se prosseguir
nesse caminho do conhecimento da produção visual e verificar
as formas como os sujeitos poderão apropriar-se dessa produção
para que venham a participar desse rico universo da cultura.
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