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AS
CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO TEXTUAL NA ALFABETIZAÇÃO
Fabiana Giovani - UFSCar - Universidade Federal
de São Carlos
INTRODUÇÃO
Este artigo pretende apresentar reflexões, a partir
de um relato de experiência, sobre a importância das condições
de produção de um texto, no período da alfabetização.
Essa discussão implica, primeiramente, uma postura educacional
diferenciada, que é situar a linguagem como o lugar de constituição
de relações sociais, onde os falantes se tornam sujeitos
do que dizem ou fazem. Como aponta Geraldi (2004 p. 41):
“A linguagem é uma forma de interação: mais
que possibilitar uma transmissão de informações de
um emissor a um receptor, a linguagem é vista como lugar de interação
humana. Por meio dela, o sujeito que fala pratica ações
que não conseguiria levar a cabo, a não ser falando; com
ela o falante age sobre o ouvinte, constituindo compromissos e vínculos
que não preexistiam à fala”.
É, portanto, a concepção de linguagem da lingüística
da enunciação que sustentam nossos estudos e a presente
análise.
PONTOS DE PARTIDA
Sabe-se que um dos objetivos da escola é ensinar
a língua materna ou o de criar condições para que
ela seja aprendida. Sabe-se ainda que é considerada para este fim
apenas a variedade “padrão” sendo ignorada pela escola
as outras formas de falar ou os muitos dialetos existentes no Brasil.
Isso decorre do fato de que, na situação escolar, existem
relações rígidas e bem definidas nas quais o aluno
é obrigado a escrever dentro de padrões estipulados previamente
pela instituição escolar, além de saber antecipadamente
que seu texto será julgado, avaliado.
Nesta perspectiva de trabalho, a linguagem perde seu caráter interlocutivo
e o interlocutor que poderia ser como propõe Britto (2004 p.118)
“real ou imaginário, individual ou coletivo, pode estar mais
ou menos próximo” acaba sendo anulado e torna-se o professor
o principal para não dizer o único leitor do texto produzido.
Faz-se assim, necessidade urgente, que a escola não se apresente
mais como interlocutor privilegiado do estudante e, nesta posição,
ser a única e responsável em determinar a própria
imagem do aluno e de seu discurso. Como mostra Osakabe (2004 p.26):
“Ser sujeito do discurso seria conferir a cada enunciado produzido
a relevância identificadora que lhe dá tanto um papel substantivo
no contexto em que é produzido quanto confere uma identidade específica
ao seu enunciador. Em outros termos, o discurso assim produzido seria
original e único na sua relação com o contexto e
com o interlocutor ”.
TRABALHANDO A ESCRITA COMO INTERLOCUÇÃO
Estudos apontam que a interlocução –
interação do eu com o outro – é o espaço
onde ocorre a constituição de sujeitos e de produção
de linguagem que, acaba por permear, relações importantes
e necessárias como os encontros, desencontros, confrontos de posições
que, ao tornarem-se públicas, evidenciam toda uma carga ideológica
além de revelar a posição de cada indivíduo
na sociedade.
Assim, sabemos que a língua, no seu uso prático, é
inseparável de seu contexto e de seu conteúdo ideológico
e, a forma lingüística (signos), sempre se apresenta aos locutores
no contexto de enunciações precisas, o que implica sempre
um contexto ideológico preciso. Na realidade, como apontam os estudos
de Bakhtin (1992), não são palavras que pronunciamos ou
escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes
ou triviais, etc. Observamos ainda, que o sentido da palavra não
pode ser desvinculado de seu contexto, caso contrário, perde o
seu real significado.
Partindo do princípio de que não se aprende nem se domina
esta língua - viva, concreta e constituidora de sujeitos em sua
heterogeneidade - por meros exercícios, mas por práticas
efetivas, significativas e contextualizadas, é que tentamos realizar
um trabalho diferenciado em uma classe de alfabetização
de uma escola localizada na periferia da cidade de São Carlos.
A alfabetização não implica apenas a aprendizagem
da escrita de letras, palavras ou orações. Tampouco envolve
simplesmente uma relação da criança com a escrita.
Assim, a criança pode escrever para si mesma, palavras soltas ou
listas para não esquecer ou para organizar o que já sabe.
Pode ainda, tentar escrever um texto, mesmo que fragmentado, para narrar,
registrar ou apenas dizer. O importante é saber que essa escrita
necessita ser, incondicionalmente, permeada por um sentido, por um desejo,
além de implicar ou pressupor, sempre, um interlocutor. Como tão
bem explicita Smolka (1993 p.69):
“A alfabetização implica, desde a sua gênese,
a constituição do sentido. Desse modo, implica, mais profundamente,
uma forma de interação com o outro pelo trabalho da escritura
– para quem eu escrevo o que escrevo e por quê”.
Assim, trabalhamos em uma perspectiva de que a linguagem tem um caráter
dialógico e interacional: dizer algo pressupõe um interlocutor
próximo ou distante – que determina o quê e como vamos
dizer. Por ser fruto desse processo, a língua deve ser entendida
não como um todo uniforme e acabado, presa a regras fixas, mas
como o próprio processo de interação verbal, oral
ou escrito, por meio do qual ela se constitui, como aponta Bakhtin (1992),
flexível e mutável, pelo uso que dela fazem seus interlocutores.
REFLEXÃO SOBRE AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
O trabalho pedagógico foi realizado, desde o início,
tendo em vista a construção do conhecimento no interior
de uma prática dialógica, na qual as crianças se
constituíam como sujeitos na interação com seus amigos,
com o professor, com os funcionários da escola ou com seus familiares.
Dessa forma, nenhuma das propostas de produção de texto
tinha o intuito de ser apenas um pretexto para o professor saber como
as crianças estavam avançando em sua escrita.
Toda preparação anterior à escrita visava situar
as crianças em ter o que dizer, uma razão para dizer, ter
para quem dizer e escolher as estratégias para realizá-lo,
considerando que, o quê e o como do que se diz supõe sempre
o “outro” em sua fundamental diversidade.
Além disso, em nossa perspectiva de estudos, pensar nas condições
de produção de um texto, significou algo muito maior, como
considerar cada criança uma porta-voz de uma família, de
uma comunidade, de uma classe social marginalizada que, tem e muito o
que dizer embora represente, ainda, a grande maioria que ocupam calados
os bancos escolares.
Consideramos ser, no espaço da produção de textos,
que o sujeito articula um ponto de vista sobre o mundo além de
marcar o seu próprio lugar no mesmo. Assim, a criança ao
escrever um texto, ainda que fosse recontar uma história já
existente, tinha a liberdade de se comprometer com sua palavra, e de apresentar
uma articulação individual para contar sua história,
tanto que, mesmo nas reproduções de histórias contadas
pela professora, não encontramos nenhum discurso idêntico
ainda que todos tivessem ouvido a mesma história ou tivessem em
vista um mesmo interlocutor.
Com essa forma de trabalho, pensamos não estar simplesmente dando
direito à palavra às classes desprivilegiadas, para estas
contarem sua história contida e não contada, estamos sim
ouvindo, mas acima de tudo, valorizando o que esta tem a dizer e, principalmente,
considerando a forma como diz o que diz.
Mostraremos a seguir, duas narrativas recontadas por meio da escrita por
uma mesma criança em diferentes épocas do ano, resgatando
aspectos trabalhados antes da produção textual, procurando
analisar a escrita e detalhando alguns procedimentos posteriores à
produção.
Salientamos ser o texto uma arena onde se confrontam múltiplos
discursos, o que implica renunciar a ilusão de transparência
de resgatar significados. Tentaremos olhar para o texto considerando sua
opacidade e tentando fazer da diversidade um elemento constituinte da
análise.
EXEMPLOS DE PRODUÇÃO
Texto 1
No mês de Junho de 2003, foi combinado entre os
alunos e professores da primeira série, a atividade de reprodução
de uma narrativa. A escolhida foi “A galinha ruiva”.
Anteriormente à escrita, o professor leu a história para
as crianças que gostaram muito e solicitaram que fosse lida mais
umas duas ou três vezes a fim de memorizar detalhes da mesma para
poder recontar a seus irmãos, pais e amigos.
Fizemos a encenação da história, na qual a criança
assumia um papel e preocupava-se com a sua atuação dentro
de sua personagem; realizaram também uma atividade artística,
fazendo a ilustração da mesma.
Após essas atividades, conversamos com as crianças que cada
uma delas registraria a história para que o professor e as crianças
da sala pudessem ler as histórias produzidas e depois, os textos
seriam trocados com as demais séries. Assim, todos seriam autores
e leitores ao mesmo tempo.
Segue abaixo o texto 1 da criança K, produzido em Junho de 2004:

Percebemos
que K teve a preocupação de ater-se no desenrolar das ações
da história. Pensando em seus interlocutores, esqueceu-se do fato
de que não dominava ainda sua língua escrita e encontrou
meios de se fazer entender.
Ainda que, no processo de interlocução, sua leitura possa
ser prejudicada por problemas ortográficos e estruturais, temos
aqui o exemplo de uma criança que está sendo sujeito do
que diz ao usar a modalidade escrita para recontar uma história.
Percebemos que, além de estar mostrando-se como sujeito do que
diz, está revelando ou dando voz à classe social a qual
pertence, trazendo para o texto a oralidade que, muito provavelmente,
seja a forma como sua comunidade fala. Observamos este fato através
dos seguintes exemplos: “dici” para disse, “cole”
para colher, “come” para comer e outros.
Texto 2
O gosto por
ouvir histórias infantis fez com que essa atividade fosse uma prática
diária em sala de aula. A história de Chapeuzinho Vermelho,
contada no mês de novembro, foi recontada na escrita a pedido das
próprias crianças em registrarem o que ouviam. Isso porque
sabiam que, depois de suas histórias escritas, trocariam seus textos
com outras crianças e que ao mesmo tempo em que teria sua história
lida (por isso se empenhavam tanto em lapidar seu texto), seriam leitoras
da história contada por seus colegas.
Segue abaixo o texto 2 da criança K, produzido em Novembro de 2004:



Percebemos
que K utilizou informações em seu texto que não fazia
parte da história contada em sala como, por exemplo: “para
que es dentes tão grade é porque creceu muito”. Encontramos
a marcas da oralidade que evidenciam a sua condição social:
“o lobo entro”, “pra ti cherar”, “duas facada”.
Há ainda, a inclusão de um vocabulário próprio
da criança com palavras que não faziam parte da história
original como, por exemplo: “Que bacana...”.
Sabemos que para esse texto aproximar-se da variedade padrão há
um caminho a percorrer. Mas, para que isso ocorra, não é
necessário a anulação do sujeito enquanto tal, pois
a prática da produção e a leitura de outros textos
ajudarão a criança ultrapassar suas dificuldades.
Lembramos ainda que essa é uma primeira série sendo, muitas
vezes, o primeiro contato da criança com a escrita e para superar
seus problemas ortográficos, as influências da oralidade,
repetições, estruturação da narrativa, etc,
terá mais sete anos, pelo menos em tese, de ensino regular obrigatório.
BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN,
Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora
Hucitec, 1992.
GERALDI, João W. (org.). O texto na sala de aula. São Paulo:
Ática, 2004.
___________ Portos de passagem. São Paulo: Ática, 2002.
SMOLKA, A. L. B.. A criança na fase inicial da escrita. São
Paulo: Editora Cortez, 1993. |
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