Patrícia Montanari Giraldi Universidade
Federal de Santa Catarina- UFSC
Suzani Cassiani de Souza - Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC
A presente pesquisa, desenvolvida no âmbito de nosso
trabalho de mestrado, teve como objetivo central investigar o uso e funcionamento
de analogias em textos didáticos de Biologia, de modo particular,
no que se refere a conceitos/fenômenos que envolvem o tópico
citologia. Esse tema foi escolhido por apresentar um elevado número
de analogias nos textos didáticos analisados em trabalhos realizados
anteriormente (Terrazzan et al, 2000; Terrazzan et al, 2002). Além
disso, entendemos que os conceitos/fenômenos relacionados à
citologia são fundamentais para o entendimento da própria
vida. Para tanto, como objeto de análise selecionamos um livro
didático de Biologia voltado para o nível médio de
ensino. Como base metodológica, mas principalmente teórica
para o desenvolvimento da pesquisa, utilizamos a Análise de Discurso
de linha francesa. Essa abordagem discursiva com relação
à linguagem, considera que as palavras e expressões não
possuem um significado único presente nelas mesmas, mas sim que
os sentidos são construídos mediante um jogo de produção
de sentidos que vai muito além das palavras em si. (Orlandi, 1996).
Dessa forma, tendo em vista o papel desempenhado pelos livros didáticos
na escola atual, configurando-se muitas vezes no principal recurso utilizado
por professores e alunos, entendemos que, muitas vezes, no intuito de
tornar um conceito de maior clareza para seu leitor, o autor do texto
didático faz uso de analogias com assuntos que são mais
familiares do que o conhecimento científico. Muitas vezes, as analogias
utilizadas são referentes ao cotidiano dos leitores, aproximando-se
de uma linguagem mais comum, não tão estranha ou mesmo distante
do aluno. Além disso, consideramos que o leitor interage com o
texto atribuindo-lhe sentidos e, portanto a relação texto/aluno
não é, nem poderia ser, algo estático em que os sentidos
são apreendidos diretamente a partir do que está dito, ao
contrário, o aluno enquanto leitor não é uma figura
passiva. Entendemos que os sentidos produzidos a partir de um texto didático
estão vinculados a diversos fatores que são colocados em
jogo no momento em que toma contato com um texto, como por exemplo, as
suas experiências de leitura, que por sua vez, se relacionam a uma
memória (discursiva). Baseado nesses pressupostos e considerando
o livro didático, em especial o livro utilizado na análise,
como um componente das práticas pedagógicas, entendemos
como fundamental uma análise em maior profundidade desse material,
sendo esse o motivo da escolha de somente um livro. É interessante
notar que a conjuntura em que o discurso do texto didático é
produzido, possui suas especificidades, seu contexto de produção
(Pêcheux, 1990; Orlandi, 1996,1996a) ao qual os sentidos produzidos
pelo texto se remetem. O autor do texto didático, ao usar uma determinada
analogia tem em mente certas relações de sentidos que devem
ser produzidas/estabelecidas no momento em que um leitor toma contato
com o texto. Porém, consideramos que as condições
de produção de um texto e as condições de
produção de sua leitura são eventos distintos, influenciados
por inúmeros fatores, como por exemplo, as experiências de
leitura dos leitores, a expectativa do autor com relação
aos seus leitores, a imagem que o leitor faz do autor, entre outros, e
que, portanto, os sentidos produzidos pelo uso de uma analogia, podem
ser diferenciados daqueles intencionados pelo autor do texto.
Podemos incluir nesse contexto os sentidos construídos relacionados
à célula. Por se tratar de estruturas e fenômenos
do mundo microscópico e, portanto, de difícil visualização,
é necessário utilizar um aparato tecnológico como
o microscópio óptico e, além disso, um certo amadurecimento
na forma de olhar para essas estruturas. Olhos não “treinados”
dificilmente conseguem definir células ou mesmo estruturas celulares
ao observá-las ao microscópio. Assim, no intuito de trazer
uma melhor compreensão sobre esses conceitos e fenômenos,
tanto no que se refere à visualização quanto à
comunicação/explicação, comumente são
estabelecidas relações de correspondências, ou seja,
analogias com coisas (visualizáveis), que pretendem fazer uma aproximação
com o mundo macroscópico
Nesse sentido, consideramos importante um olhar mais cuidadoso sob a forma
como as analogias são apresentadas em textos didáticos de
Biologia, buscando compreender os posicionamentos do autor do texto (de
onde fala, como fala, com que intuito), focando nosso olhar sobre as condições
de produção desse discurso.
Tendo em vista as considerações apresentadas nos questionamos,
até que ponto as analogias utilizadas no livro didático
de Biologia estão produzindo sentidos intencionados pelo autor
do texto? Como o autor do texto didático faz uso desse recurso?
De que maneira ele tenta direcionar os sentidos daquilo que está
dizendo na intenção de que no momento da leitura de uma
analogia sejam produzidos determinados sentidos e não outros, irrelevantes
para o entendimento do conceito abordado?
ALGUNS RESULTADOS
Por meio da análise realizada, pudemos evidenciar que o material
investigado segue caminhos distintos com relação ao modo
como o autor faz uso de analogias. Ao observarmos os capítulos
referentes ao tópico de citologia, evidenciamos que as analogias
aparecem de forma diferenciada ao longo dos textos. Em alguns momentos,
as mesmas são apresentadas de forma explícita, ou seja,
o autor faz uso de palavras no intento de mostrar ao seu leitor (alunos
e professores), a intenção de analogia. Entre tais palavras,
podemos citar: como, semelhante, lembram, assemelham, etc. Em outros momentos,
porém, verificamos a presença de analogias nos textos com
ausência de explicitações. Nesse caso, as representações
analógicas estão mascaradas por uma sensação
de linguagem científica, como destacaremos adiante.
Consideramos essas distinções no modo como o autor faz uso
de analogias como parte do jogo de produção de sentidos,
parte do modo como o autor tenta direcionar os sentidos do texto. Tendo
isso em conta, acreditamos que uma forma de esclarecermos esse direcionamento
de sentidos é a consideração da direção
argumentativa do texto, como apontamos nas análises a seguir.
A intenção de proximidade com o leitor:
Nos trechos abaixo podemos evidenciar a intenção de proximidade
com o cotidiano do leitor, por meio de analogias vinculadas à linguagem
comum.
Analogia 2: “Se isolássemos uma célula
de nosso corpo, notaríamos que ela está envolta por uma
espécie de malha feita de moléculas de glicídios
frouxamente entrelaçadas. Esta malha protege a célula como
uma vestimenta: trata-se do glicocálix.” (p.114)
Analogia 16: “O citosol encontra-se em contínuo movimento,
impulsionado pela contração rítmica de certos fios
de proteínas presentes no citoplasma, em um processo semelhante
ao que faz nossos músculos se movimentarem.” (p.137)
Direção argumentativa:
A- “Se isolássemos uma célula de nosso corpo, notaríamos
que ela está envolta por uma espécie de malha feita de moléculas
de glicídios frouxamente entrelaçadas”.
B- “Esta malha protege a célula como uma vestimenta...”
C- “... trata-se do glicocálix”.
D- “O citosol encontra-se em contínuo movimento...”
E- “...impulsionado pela contração rítmica
de certos fios de proteínas presentes no citoplasma...”
F- “...em um processo semelhante ao que faz nossos músculos
se movimentarem.”
A direção argumentativa da analogia 2 mostra que em um primeiro
momento (A), o autor descreve o envoltório celular. Nesse momento
ele faz a primeira analogia, apontando que as células apresentam
algo que as envolve e que esse envoltório é semelhante à
uma malha. Em um segundo momento (B), o autor faz a analogia entre a malha
e uma vestimenta. Em (C), é apresentado o conceito novo sobre o
qual está se referindo que é o de glicocálix.
Na analogia 16, podemos notar que em (D), há uma afirmação
referente a um dos componentes celulares, o citosol. Em seguida (E), o
autor dá uma explicação sobre o modo como esse movimento
ocorre e em um terceiro momento (F), apresenta a analogia com os movimentos
musculares, sendo evidenciada pela palavra semelhante.
Podemos notar que há uma diferença no modo como o autor
direciona sua argumentação nos dois exemplos. É interessante
observar que, no exemplo 2, primeiramente o autor tenta tornar o assunto
abordado mais familiar ao seu leitor, por meio do estabelecimento de analogias,
para só depois de haver instaurado uma provável compreensão,
apresentar o assunto novo (C). Já no exemplo 16, há em um
primeiro momento (D e F), a construção de uma imagem do
referente (conceito/fenômeno apresentado), para somente ao final
da sentença estabelecer a comparação com algo familiar
(F). Acreditamos que essa diferenciação no modo como a direção
argumentativa dos exemplos se encaminha, pode estar relacionada à
natureza dos referentes. Em 2, fala-se de um conceito novo com uma denominação
específica e provavelmente nova aos alunos, o conceito de glicocálix.
Já em 16, o referente parece ser algo de mais comum, um tipo de
movimento, que apesar de ocorrer dentro de estruturas microscópicas
(células), é mais facilmente “visualizável”
que o glicocálix. Entendemos que esse movimento é direcionado
pelo mecanismo de antecipação. Por meio dele é possível
colocar-se no lugar do outro (interlocutor) e assim, prever o modo como
suas palavras poderão ser ouvidas. Assim, o autor tem possibilidade
de guiar seu dizer no intento de produzir determinado sentido e não
outro àquilo que está sendo dito. De acordo com a Análise
de Discurso:
“...todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de
colocar-se no lugar em que seu interlocutor ‘ouve’ suas palavras.
Ele antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao sentido que suas palavras
produzem. Esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma
que o sujeito dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que
pensa produzir em seu interlocutor.” (Orlandi, 2003, p.39)
Um outro fator que acaba por determinar os sentidos produzidos sobre um
dizer, relaciona-se diretamente a tentativa de estabelecer diálogo
com seu leitor, ou seja, relaciona-se às posições
assumidas pelos sujeitos (interlocutores). Quando pensamos no discurso
do livro didático, podemos imaginar diversas posições
assumidas pelo autor em diferentes momentos, entre elas, a posição
de cientista ou mesmo a de professor. No caso de nossos exemplos anteriores,
ao usar “nosso” o autor assume a posição de
alguém que tenta se aproximar de seu leitor, ao mesmo tempo em
que tenta aproximar o mesmo de um discurso científico. De acordo
com Orlandi (1996a), as posições assumidas pelos sujeitos
ao dizer fazem parte da significação, pois quando dizemos
algo o dizemos de algum lugar da sociedade para alguém também
situado em algum lugar da sociedade. Todas essas considerações
afetam o modo como os sentidos serão produzidos, mediante a leitura
do texto. Entendemos, que essa tentativa de proximidade com a linguagem
comum faz parte do jogo de produção de sentidos do discurso
escolar. No entanto, apesar dessa tentativa de proximidade com os leitores,
por meio de uma linguagem mais próxima da comum, é garantido
que os sentidos construídos pelos leitores sejam os mesmos intencionados
pelo autor?
No exemplo 2, podemos verificar claramente a intenção de
comparação feita pelo autor. O uso da conjunção
como, indica a analogia entre o modo pelo qual o glicocálix envolve
a célula e o modo como uma vestimenta (malha), envolve o nosso
corpo. O uso dessa expressão analógica apela para o cotidiano
dos leitores. Ao fazer a analogia glicocálix/malha e malha/vestimenta,
o autor se refere à proteção quanto à agressões
externas (supostamente físicas e químicas), porém
um leitor (aluno), construirá esse mesmo sentido? No sentido comum,
o uso de vestimentas pode proteger, por exemplo, contra variações
de temperatura. Além disso, há um fator cultural pelo qual
todos usamos roupas para cobrir nosso corpo. Enquanto para o autor do
texto didático, a analogia vestimenta significa proteção
contra agentes externos, para um leitor (aluno), vestimenta pode apenas
significar algo que serve para vestir como uma roupa, que, por conseguinte
não tem qualquer papel estrutural. Desse modo o glicocálix
passa a ser visto como algo externo à célula, algo que não
faz parte da mesma.
A analogia como parte do discurso científico e
seu conseqüente apagamento no texto:
As analogias apresentadas a seguir exemplificam o modo como o autor do
texto didático faz uso de uma linguagem mais próxima da
científica e as possíveis conseqüências que esse
fato pode trazer.
Analogia 8: “Graças à participação
ativa de certas proteínas da membrana, que atuam como verdadeiras
bombas iônicas, as células animais mantêm uma concentração
de íons potássio cerca de dez vezes maior dentro das células
do que no meio circundante...” (p.122)
Analogia 5: “ Hoje, acredita-se que as moléculas de proteínas
estão incrustadas, como peças de um mosaico, em uma dupla
camada de fosfolipídios.” (p.118)
Direção argumentativa:
A- “Graças à participação ativa de certas
proteínas da membrana, as células animais mantêm uma
concentração de íons potássio cerca de dez
vezes maior dentro das células do que no meio circundante...”
B- “... que atuam como verdadeiras bombas iônicas...”
C- “ Hoje, acredita-se que as moléculas de proteínas
estão incrustadas, em uma dupla camada de fosfolipídios”
D- “...como peças de um mosaico...”
Nos exemplos acima, podemos notar que a analogia referente à atuação
de proteínas da membrana plasmática (bombas iônicas)
em B, está presente apenas como um complemento, tal analogia não
é parte essencial na construção da frase. No contexto
em que B está inserida no texto, apresenta papel explicativo do
modo pelo qual as concentrações intra e extracelulares se
mantêm diferenciadas. A palavra verdadeira nesse caso deixa clara
a intenção de comparação. No entanto, apesar
da possibilidade de reconhecimento, por parte do leitor que toma contato
com esse texto, de que se trata de uma analogia, devemos apontar para
os sentidos que podem ser produzidos. Ao afirmar que se trata de uma verdadeira
bomba iônica, o autor se refere à uma bomba no sentido de
bombeamento e a palavra iônica diz respeito ao material bombeado,
no caso, íons de sódio e potássio. No entanto, esse
silêncio sobre o contexto em que a palavra bomba está sendo
utilizada, pode ter resultados desastrosos no ensino. Pensando no silêncio
como um não dito, que conseqüências essa condição
do texto pode trazer? Acreditamos que um leitor (aluno), tomando contato
com essa analogia pode imaginar, por exemplo, que se trata de uma bomba
que explode (artefato bélico). Além disso, a palavra iônica
denota certa periculosidade à bomba, sendo essa uma palavra certamente
nova aos alunos e que no contexto em que está inserida fica implícita
a sua relação com íons.
O mesmo ocorre em (D), em que a expressão peças de um mosaico,
está inserida como uma forma de exemplificar o modo como as moléculas
de proteínas estão organizadas na membrana plasmática.
Comumente podemos encontrar em livros didáticos o substantivo mosaico,
em explicações referidas à organização
das membranas celulares. Apesar de ser uma palavra retirada da linguagem
comum, acreditamos que ao usar expressões como peças de
um mosaico ou mesmo mosaico fluído (uma expressão bastante
comum em livros didáticos), o autor acaba por criar uma espécie
de jargão do discurso científico, pois tal expressão
não estabelece relação familiar ao aluno. Podemos
dizer que o modelo de mosaico deixou de ser visto como uma comparação
ao modo como a membrana celular se organiza e passou a ser utilizado como
uma definição científica.
Na analogia 23 (abaixo), o análogo apresentado pelo autor também
está distante de ser algo reconhecido pelos alunos como familiar
(a uma lente biconvexa com cerca de 10um de diâmetro). A linguagem
utilizada no trecho é notadamente de característica científica,
em que a objetividade e neutralidade se fazem presentes.
Analogia 23: “Os cloroplastos são orgânulos
citoplasmáticos discóides que se assemelham a uma lente
biconvexa com cerca de 10um de diâmetro.” (p.151)
Um outro exemplo desse apagamento da analogia pode ser evidenciado nos
seguintes exemplos:
Analogia 6: “As moléculas de proteínas
flutuam no oceano de lipídios...” (p. 118)
No exemplo acima, também percebemos uma intenção,
por parte do autor do texto, em recorrer a algo presente no cotidiano
de seus leitores e, de modo especial, utilizar análogos que possibilitem
a “imaginação” do conceito/fenômeno abordado.
O uso de analogias entre conceitos que envolvem estruturas microscópicas
e algo do mundo macroscópico é bastante comum em livros
didáticos. Podemos notar que, ao mesmo tempo em que o autor faz
uso de expressões de caráter analógico em seu discurso,
ocorre um apagamento das mesmas.
No exemplo 6, é possível evidenciar inclusive uma relação
com uma linguagem mais poética: “flutuam num oceano de lipídios”,
nesse caso o autor poderia fazer uso de um dizer mais próximo da
linguagem científica, como por exemplo, que as moléculas
de proteínas ficam dispostas sobre os lipídios, mas em seu
lugar declara algo que apela muito mais para a imaginação,
intencionando tornar essas estruturas microscópicas “visíveis”
ao seu leitor. Ao optar por uma linguagem mais distante da científica,
o autor do texto cria uma imagem da estrutura da membrana plasmática.
Além dessa intenção de visualização
da estrutura celular, entendemos que o autor objetiva também mostrar
a característica fluida da membrana.
Na frase, podemos perceber que a analogia está mascarada. A intenção
por parte do autor de criar uma imagem referente à membrana celular
tendo como foco sua característica fluida, não fica evidente.
A expressão “oceano de lipídios” pode inclusive
fazer com que se perca a sensação de dimensão celular,
uma vez que a palavra “oceano” diz respeito a algo que cobre
um grande espaço, algo cujos limites não é perceptível
sem o uso de um aparato tecnológico.
Analogia 7: “A membrana plasmática possui proteínas
–as permeases – especializadas no reconhecimento e transporte
de substâncias para o interior da célula. Por exemplo, quando
uma molécula de glicose encosta em uma permease, é capturada
por esta e lançada para dentro da célula.” (p. 121)
Analogia 10: “...verificou que certas células de larvas eram
capazes de perseguir e atacar partículas, terminando por engloba-las.”
(p. 122)
Lewontin (2002), ao se referir à linguagem usada para descrever
a bioquímica dos genes aponta que o modo como tal linguagem se
apresenta implica no entendimento de uma auto-suficiência genética.
Entendemos que o mesmo pode ser dito com relação às
analogias 7 e 10. Podemos verificar o uso de uma linguagem que se aproxima
da comum, em que ocorre a descrição de atividades celulares
com uso de palavras como: captura, lança, ataca, persegue (em destaque).
Essa linguagem analógica, apagada no texto didático, remete
seus sentidos a um discurso de cunho científico. Nesse apagamento,
temos (leitores) a impressão de que tais palavras parecem se referir
ao modo como as células reagem a determinados estímulos,
como se fossem indivíduos, com capacidade de decidir por si mesmos
as ações que são cabíveis em cada momento.
É dado às células o poder de decisão sobre
o modo como devem agir em cada situação. No entanto, o fato
de que em toda reação celular, há respostas a processos
químicos, é silenciado!
Tendo em vista as condições de produção do
livro didático, nesse ponto, consideramos relevante nos remetermos
às relações de força como constitutiva dos
sentidos que podem ser produzidos. Ao dizer, entendemos que o autor se
inscreve em determinada formação discursiva. Tal formação
discursiva faz com que seu dizer signifique de modo diferente. No caso
dos exemplos apresentados, entendemos que o autor está remetendo
seu dizer a um sentido de ciência como algo dado, ou melhor, a ciência
não como construção ou uma forma de explicação,
mas, como resultado de dados empíricos. Nesse sentido, quando pensamos
nas relações de força podemos inferir que ao tomar
contato com esse tipo de linguagem o leitor é levado a se posicionar
como mero ouvinte, tendo em vista o poder de autoridade conferida ao discurso
científico (ou cientificista?). Ao silenciar as analogias presentes
nos textos didáticos, o autor confirma essa intenção
de caráter científico de seu discurso.
Se levarmos em conta todas as instâncias que envolvem a produção
(ou reprodução), do discurso científico escolar,
bem como as condições de produção de leitura
na escola, devemos considerar que um dos fatores que influencia fortemente
esses eventos é a avaliação. Dito de outro modo,
na escola atual a produção de sentidos sobre ciências
é guiada de maneira decisiva pela avaliação. Nesse
jogo, cabe aos alunos o papel de reproduzir a leitura considerada como
ideal pelo professor. De acordo com Souza (2003), atualmente, a leitura
ideal do professor está amarrada àquilo que é fornecido
pelo livro didático. Essa condição da leitura instaura,
como conseqüência, uma obrigatoriedade aos sentidos produzidos
e, no caso dos exemplos apresentados nesse trabalho (em especial, 8, 5
e 23), há um sentido de cientificidade nas analogias, em que as
mesmas deixam de serem vistas como análogos e, como já dissemos,
passam a fazer parte de um outro tipo de expressão, o jargão
científico. Assim, muitas vezes, a mera repetição
ou como aponta Orlandi (1996), o efeito “papagaio” torna-se
o modo de leitura predominante na escola, em que há a repetição
mecânica sem compreensão.
Segundo Lopes (1999), o uso desse tipo de linguagem, com características
científicas, está relacionado à impressão
de que a ciência é um discurso inequívoco. Assim,
muitas vezes, no contexto escolar, os conceitos científicos são
trabalhados como verdades definitivas. Dessa forma, o saber ensinado acaba
por aparecer como um saber sem produtor, sem origem, sem história.
Nesse processo, o conceito científico é retirado do seu
contexto original e traduzido para o contexto escolar de forma empobrecida
ou mesmo apresentado como uma caricaturalização. Por meio
dessa caricatura, o produto da ciência é apresentado no lugar
do processo, silenciando toda a história de construção
dos conhecimentos científicos. O ensino de ciências, mais
particularmente o de Biologia, passa a ser, na maioria das vezes, a denominação
e descrição de diversas estruturas, fenômenos, centrado
no uso de uma nomenclatura específica que deve ser simplesmente
memorizada pelos alunos, tornando evidentes os problemas relacionados
à linguagem.
Nos exemplos acima, podemos notar a forte presença de uma linguagem
caracteristicamente científica. Para a Análise do Discurso,
essa cientificidade do discurso pedagógico pode ser evidenciada
por dois aspectos que caracterizam tal discurso: a metalinguagem e a apropriação
do cientista pelo professor, ou em nosso caso, pelo autor do livro didático.
A metalinguagem diz respeito ao estabelecimento de um “estatuto
científico do saber que se opõe ao senso comum” (Orlandi,
1996a, p.30). Em outras palavras, a institucionalização
da metalinguagem no discurso pedagógico, privilegia as definições
em detrimento dos fatos, e estabelece uma legitimidade a essa forma de
dizer que é autoritária, rígida, fechada à
questionamentos. O outro aspecto que legitima a cientificidade do discurso
pedagógico é a apropriação do cientista pelo
professor. Nesse caso, o professor ou mesmo o autor do texto didático
apropria-se do discurso científico, sem que seja explicitada sua
voz de mediador. Além disso, o papel de mediador do material didático
também é apagado e este passa de instrumento de ensino a
objeto, sem que se considere que nos livros didáticos há
uma reconstrução do sentido do discurso produzido pela ciência.
Segundo a autora:
“Há aí um apagamento, isto é, apaga-se o modo
pelo qual o professor apropria-se do conhecimento do cientista, tornando-se
ele próprio possuidor daquele conhecimento. A opinião assumida
pela autoridade professoral torna-se definitória (e definitiva)”.(Orlandi,
ibdem, p.21)
Além disso, como aponta Mortimer (1998), na linguagem científica,
diferentemente da linguagem comum, o agente normalmente está ausente,
o que faz com que ela seja aparentemente descontextualizada. Esse fato
também está vinculado à sua aparente neutralidade,
como aponta o autor:
“Não colocamos cinco gotas de reagente no frasco; adicionam-se
cinco gotas. Não misturamos quantidades iguais de reagentes; mistura-se
essas quantidades. Não determinamos a massa da amostra; determina-se
a massa” (p.106)
Retomando nosso olhar sobre as analogias apresentadas no livro didático
selecionado para análise, podemos notar que o apagamento com relação
ao processo de apropriação do conhecimento científico,
também pode ser reportado ao autor do texto didático. Por
meio da metalinguagem, como definida na Análise de Discurso, o
autor institui uma necessidade ao seu dizer, fundamentando-se em uma posição
de alguém autorizado a falar em nome da ciência.
A obrigatoriedade de sentidos
O que pode ser considerado como obrigatório, quando
pensamos no discurso de textos didáticos? Como já dissemos,
a questão da obrigatoriedade de sentidos, do autoritário,
é próprio do discurso pedagógico. Tendo em vista,
o livro didático como sendo uma forma de discurso pedagógico,
podemos compreender essa intencionalidade em duas instâncias: o
uso de uma metalinguagem nos textos didáticos e a apropriação
do conhecimento científico por parte do autor. Levando em conta
as questões apontadas, consideramos interessante mostrar o modo
como essa intenção de produção de determinados
sentidos (e não outros), ocorre no material analisado.
Nas analogias apresentadas, ocorre a presença de aspas nas palavras
pertencentes ao contexto da linguagem comum, como mostram os exemplos:
Analogia 4: “...as membranas biológicas seriam verdadeiros
“sanduíches” moleculares, formados por uma bicamada
de fosfolipídios (o “recheio”), entre duas camadas
de proteínas (o “pão”).”(p.116)
Direção argumentativa:
A- “...as membranas biológicas seriam verdadeiros “sanduíches”
moleculares...”
B- “...formados por uma bicamada de fosfolipídios (o “recheio”),
entre duas camadas de proteínas (o “pão”).”
A direção argumentativa do trecho aponta que ao pretender
mostrar como está organizada a estrutura das membranas biológicas,
o autor aponta primeiramente para uma visão geral da estrutura
(A), para posteriormente identificar cada componente de forma individual
(B). Nessa passagem, fica evidente a determinação de comparação.
O uso de “seriam verdadeiros” denota essa intenção.
Da mesma forma, nos outros exemplos também encontramos palavras
que indicam a presença de analogias ao utilizar aspas, como no
exemplo 4. No entanto, na maior parte do texto, essas palavras que denotam
intenção de analogia estão ausentes. Entendemos que
esse fato aponta para uma intenção por parte do autor em
evidenciar o fato de estar fazendo uso de palavras que não pertencem
à linguagem científica. Ao mesmo tempo em que aponta para
essa diferenciação linguagem comum/linguagem científica,
o autor impõe uma forma de ler, ou seja, apontando certa obrigatoriedade
de sentidos. Em um movimento de antecipação, consideramos
que o autor, prevendo outras leituras possíveis, tenta limitar
os sentidos que podem ser produzidos por meio das analogias e, nessa intenção
faz uso de aspas a fim de denotar essa intenção de analogia.
Nesse momento, também consideramos importante pensarmos na avaliação
como fonte de obrigatoriedade de sentidos. Se considerarmos o papel que
o livro didático ocupa em boa parte das aulas de Biologia, como
fonte de conhecimentos, uma verdadeira autoridade, quase sempre não
questionada, podemos inferir a forte influência exercida pelo mesmo
nos processos de ensino/aprendizagem. Visto que o leitor não é
um sujeito passivo, e de modo especial pensando no aluno, acreditamos
que por meio das relações de força postas em jogo
no discurso pedagógico, o mesmo reage na tentativa de enquadrar-se
nesse processo, ou seja, o aluno percebendo essa obrigatoriedade de sentidos,
que na escola é bastante naturalizada, acaba por repetir essa leitura
obrigatória, sem que realmente sejam produzidos sentidos para o
que está dito.
Nesse sentido Orlandi (1996a), aponta que o discurso pedagógico
é um discurso autoritário, onde não há espaço
para outras leituras. Ao impor uma obrigatoriedade de sentidos, o discurso
pedagógico torna-se um discurso de poder, algo que não é
questionado. Podemos dizer que o discurso pedagógico presente no
livro didático, também assume essa postura. Ao decidir que
conteúdos serão abordados ou não no livro, em que
profundidade tais conteúdos serão apresentados, como será
a organização dos textos, as imagens que serão ou
não incluídas, o autor está direcionando certos sentidos.
Voltando ao caso do uso de analogias, acreditamos que ao utilizar análogos
intencionalmente fazendo uso de aspas, o autor acaba instaurando o efeito
“papagaio” (Orlandi, 1996), os leitores podem simplesmente
repetir as expressões, sem entendê-las e sem considerá-las
como sendo analogias.
Analogia 30: “Hoje sabemos que o núcleo é
o centro de controle das atividades celulares e ‘arquivo’
das informações hereditárias...” (p.172)
Além disso, no exemplo 30, o uso de “Hoje, sabemos”,
traz consigo um sentido de historicidade. Ao dizer que “Hoje, sabemos”,
o autor aponta para outros momentos em não se pensava a estrutura
da membrana celular da mesma forma que atualmente, ou seja, o que é
dito nessa passagem aponta para uma história que não está
dita, mas que pode ser evidenciada na frase. Ao pronunciar tal expressão,
o autor se posiciona no lugar de um cientista, por outro lado, ao fazer
a analogia com um arquivo o autor relaciona seu discurso com outro mais
próximo do cotidiano de seus leitores, isso fica explicitado pelo
uso da palavra arquivo entre aspas. Esses dois discursos estão
constituindo o discurso escolar sobre a ciência.
Na perspectiva da Análise de Discurso, a historicidade é
entendida como a relação de um dizer com outros que o constituem.
Nesse sentido, considerando o conhecimento escolar sobre ciências,
de acordo Lopes (1999), com como sendo constituído por outros conhecimentos
(cotidiano e científico), é importante considerarmos em
que medida as respectivas memórias de tais discursos influenciam
a construção de sentidos sobre ciências na escola.
Assim, pensar a historicidade do conhecimento científico escolar,
requer a compreensão de que a construção de sentidos
está permeada por esses três tipos de conhecimentos.
Apesar de considerarmos que o uso de aspas nesse contexto intenciona que
a analogia represente o sentido desejado pelo autor, consideramos que
as palavras têm a sua discursividade. De acordo com Orlandi (2003):
“As palavras simples do nosso cotidiano já chegam até
nós carregadas de sentidos que não sabemos como se constituíram
e que no entanto significam em nós e para nós.” (Orlandi,
ibdem, p.20)
Essa afirmação da autora nos leva a pensar em que medida
essa intencionalidade do autor com relação à obrigatoriedade
de determinados sentidos, é suficiente para evitar o surgimento
de outras interpretações? Acreditamos que como em outros
momentos do texto, aqui também se fazem presentes as relações
de força, as posições ocupadas pelos interlocutores.
É no embate dessas relações que os sentidos são
construídos. No caso de nossos exemplos, a posição
assumida pelo autor faz com que seu discurso seja um discurso autoritário,
em que não há espaço para a polissemia, para a possibilidade
de outras leituras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos explicitar, com base em algumas noções
tomadas da Análise de Discurso, o modo como o autor do livro didático
analisado faz uso de analogias em seus textos, em especial àquelas
relacionadas aos conceitos de citologia. A tomada desse referencial teórico
permite que se busque problematizar o uso de analogias. Dessa forma, buscamos
evidenciar o modo como as mesmas podem produzir sentidos, ou seja, buscamos
a partir das análises realizadas dessuperficializar as analogias
presentes nos textos.
Entendemos a preocupação de alguns autores como Duit (1991),
Bachelard (1996), ao apontar para os perigos do uso de analogias, na medida
em que as mesmas podem gerar concepções equivocadas do ponto
de vista científico.
No entanto, em uma perspectiva discursiva, entendemos que a linguagem
(científica), utilizada para falar sobre os conhecimentos biológicos,
assim como qualquer outra, só pode ser construída a partir
da linguagem comum. Ao fazer uso de tal linguagem a ciência emprega
alguns termos em um sentido diferente daquele do sentido comum, atribuindo-lhe
um novo significado. Assim, entendemos que as palavras em Biologia apelam
para determinados sentidos por estarem inscritas em uma formação
discursiva determinada, por exemplo, a palavra vetor vai apresentar significados
diferentes quando falada por um físico ou por um biólogo.
Porém, acreditamos que no ensino de ciências de modo geral,
essa visão do conhecimento científico como uma maneira de
entender o mundo, como um conhecimento que se insere em uma determinada
formação discursiva, não tem sido abordada.
Segundo Mortimer (1998), para que ocorra um efetivo entendimento de ciências
é necessário que o aluno perceba que as diferenças
entre linguagem científica e cotidiana vão além da
presença de um vocabulário técnico, para o autor,
é necessário que se compreenda que tais linguagens representam
“formas radicalmente diferentes de construir a realidade discursivamente”.
Assim, vinculando as discussões quanto à linguagem científica
ao uso de analogias em textos didáticos, entendemos que uma proposta
interessante é fazer com que os alunos de ciências sejam
levados a compreender tal linguagem como uma forma de discurso. Discurso
este que possui determinado contexto (com suas condições
de produção), tanto no que se refere à ciência,
quanto ao conhecimento científico escolar expresso em livros didáticos.
Não se trata de uma tentativa de impedir o surgimento de outros
sentidos, mas sim uma forma de contribuir para que o aluno perceba que
o uso de analogias em textos didáticos se dá numa determinada
perspectiva: na perspectiva de um discurso escolar sobre o conhecimento
científico. De modo particular, no que se refere àquelas
analogias que passam por um apagamento no texto didático. Como
apontamos em nossa análise, boa parte das analogias contidas nos
textos estão sob uma suposta naturalização, não
sendo percebidas como tais. Ao contrário, como apontamos, muitas
dessas analogias são vistas como parte do discurso científico.
Como aponta Orlandi (1996), os textos didáticos deveriam explicitar
seu papel de mediador, deixando de serem vistos como a fonte de conhecimentos
e passando a serem vistos como uma forma de discurso. Ao considerarmos
que os sentidos de um texto são produzidos no momento de sua leitura,
na interação leitor/texto, entendemos que essa dimensão
discursiva da linguagem contribui de modo significativo para um sentido
de ciência e de Biologia mais humano. Permite a compreensão
de que a linguagem também faz parte da construção
da ciência!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BACHELARD, Gaston (1996). A formação do
espírito científico: contribuição para uma
psicanálise do conhecimento. Tradução de Estela dos
Santos Abreu, Rio de Janeiro/BRA: Contraponto.
DUIT, R. (1991). ‘On the role of analogies and metaphors in learning
science’. In: Science Education, 75 (6), p. 649-672.
LOPES, Alice R. Conhecimento escolar: ciência e cotidiano. Rio de
Janeiro, UERJ, 1999.
MORTIMER, E. F. Sobre Chamas e Cristais: A Linguagem Científica,
A Linguagem Cotidiana e O Ensino de Ciências. In: CIÊNCIA,
ÉTICA E CULTURA NA EDUCAÇÃO.1 ed.SÃO LEOPOLDO
: UNISINOS, 1998
ORLANDI, E. P. (1996a). A Linguagem e seu Funcionamento. 4. ed. Campinas,SP/BRA:
Editora Pontes.
ORLANDI, E. P. (1996). Interpretação: Autoria, leitura e
efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis,RJ/BRA: Editora
Vozes.
ORLANDI, E. P. (2003). Análise de discurso: Princípios e
procedimentos. 5. ed. Campinas, SP/BRA: Editora Pontes.
PÊCHEUX, Michel. Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas:
Pontes, 1990.
TERRAZZAN, E. A. et al. (2000). ‘Analogias no ensino de ciências:
resultados e perspectivas’. In: Atas do III Seminário de
Pesquisa em Educação da Região Sul, Porto Alegre/BRA.
TERRAZZAN, E. A. et al. (2002). ‘Análise de apresentações
analógicas em coleções didáticas de Biologia’.
In: Atas do VIII Encontro Perspectivas do Ensino de Biologia, São
Paulo/BRA.