|
LENDO
CORDÉIS, RELENDO O MUNDO: A MÍDIA ALTERNATIVA NA CONSTRUÇÃO
DA CIDADANIA
Adriano
Lopes Gomes - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Este trabalho pretende
abordar a literatura de cordel como um possível recurso na divulgação
da ciência, adicionando ao caráter lúdico das narrativas
a necessidade de esclarecer a população sobre formas de
tratamento e prevenção de doenças, em razão
da pouca incidência de temas relacionados à saúde
no jornalismo local. No presente estudo, analisaremos os folhetos de cordel
publicados pelo Ministério da Saúde do Brasil, na esfera
federal, e Secretaria Estadual de Saúde Pública, no âmbito
do governo do Estado do Rio Grande do Norte. Objetiva situar as interfaces
entre os cânones da ciência e uma das formas seculares de
divulgação popular que, ao longo do tempo, desperta atenção
de leitores, ouvintes e pesquisadores.
O Nordeste do Brasil ainda é uma região onde a literatura
de cordel está presente nos círculos sociais, quer em praças
públicas ou nas tradicionais feiras livres, sobretudo nas pequenas
cidades, guardando-se a mesma performance que não se perdeu na
história da poesia popular: através da leitura oral, na
íntegra ou memorizada, catalisando o interesse dos ouvintes para
a aquisição dos folhetos. É um gênero que mantém
estreita relação com os cantadores de viola e repentistas
por apresentar a estrutura de rimas e métricas, notadamente representando
narrativas de ficção, de situações épicas
ou de episódios cotidianos. A origem da literatura de cordel no
Brasil é revestida de alguns pressupostos históricos e teóricos
cuja atmosfera de informações ainda é nebulosa. Maxado
(1980) e Cascudo (1984) dizem que a literatura oral, na qual os cordéis
se situam, sofreu influências européias. Soler (1995) destaca
a ascendência árabe no folclore do sertão brasileiro,
elucidando traços daquela cultura na região Nordeste, desde
a colonização do Brasil, por um processo de transmigração
de costumes do povo europeu. O autor faz comparações entre
os cantadores de viola com os jograis e menestréis, sugerindo que
esses artistas populares já foram herança das tradições
árabes que aportaram, sobretudo, na França, Espanha e Alemanha.
Abreu (1999) faz um
confronto entre as duas produções culturais – a literatura
de cordel portuguesa e a literatura de folhetos do Nordeste do Brasil
–, esclarecendo, segundo a autora, equívocos que sugerem
a vinculação cultural em que uma seria a fonte da outra.
Para Abreu (ibidem), os dois gêneros são autônomos.
Já Sousa (2004:233) reconsidera a questão e afirma que “a
literatura de cordel tem sua gênese assinalada pela divulgação
dos romances, novelas de cavalaria, relatos heróicos e de viagens
do povo de Portugal”.
Não é nossa intenção questionar sobre elementos
primordiais da literatura de cordel, posto que o objetivo do presente
trabalho dispensa tal procedimento. No entanto, para efeito de historicidade,
os autores parecem concordar sobre as origens orais da literatura de cordel.
É sobre tais aspectos que iremos nos debruçar.
Na ausência de circulação de livros em grande escala,
durante a idade média, os textos eram transmitidos oralmente pelos
menestréis, jograis, trovadores, segréis, romanceiros, cancioneiros,
bardos, mimos e histriões. Eles constituíam uma classe de
poetas populares ou artistas ambulantes que declamavam poesias, cantavam,
interpretavam e contavam histórias, utilizando-se de recursos mnemômicos.
E suas histórias eram em forma de rima, sem a revelação
da autoria, definidas pelas características do conto popular, tais
como o anonimato, a antigüidade, a persistência e a oralidade
(CASCUDO, 1996).
A despeito de todas as habilidades que os poetas populares medievais possuíam,
interessa-nos particularmente a de contar histórias através
da literatura de cordel. Eles contavam utilizando-se de um instrumento
- o alaúde, por excelência - e faziam de suas práticas
um ofício profissional. Era assim que tais poetas populares formavam
leitores-ouvintes, que fixavam em suas culturas o valor da literatura
oral pelas gerações sucessivas. Os etnotextos, assim designados
por Bouvier (1989:39) para classificar os documentos orais, revestiam-se
de importância considerável pelo fato de sublinhar o seu
valor de informação cultural global nas comunidades.
Na França, as canções de gesta expressavam a dinâmica
da oralidade, através de poemas que eram declamados em praças
públicas ou ambientes privados, traduzindo atos de heroísmo
em batalhas e lutas travadas por personagens reais ou fictícios.
São seculares as narrativas que ficaram arquivadas na cultura popular,
como A História da Princesa Magalona, A Donzela Teodora, João
de Calais, História da Imperatriz Porcina e a História do
Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de França (CASCUDO, 1984:24;
ABREU, 1999). Fato curioso é que esses poemas épicos, obedecendo
a uma estrutura de rimas e métricas, foram compostos numa extensão
demasiadamente longa, e que ainda assim eram memorizados e vocalizados
pelos “portadores da voz fácil”, na expressão
de Zumthor (1993). Em muitas ocasiões, o jogral iniciava a declamação
de um poema em um dia, havendo a necessidade de interrompê-lo em
determinado trecho, para retomá-lo no dia seguinte, ao que anunciava
ao público:
senhores (...) estais vendo que a noite cai e que eu me canso. Voltai
amanhã mais cedo, e agora vamos beber, porque tenho sede e estou
feliz de ver aproximar-se a noite. Tenho pressa de voltar para a casa;
mas que nenhum de vós se esqueça de me trazer amanhã
uma moedinha amarrada no pano da camisa... (ZUMTHOR, 1993:226).
Este trecho sugere a coleta de dinheiro para pagar os serviços
prestados pelos jograis. Zumthor (1993:234) ainda destaca que, antes mesmo
de acabar o poema diante da platéia atenta, o cantor - porque recitava
as canções de gesta - dizia: aquele que quer ouvir bem minha
canção, apresse-se em abrir sua bolsa, porque é hora
de me pagar. A pausa de um dia para outro certamente deixava os ouvintes
em suspense, promovendo interesses múltiplos e garantindo a presença
do público nos dias seguintes para certificar-se do fim da história.
No Brasil, os cantadores de viola passaram a adotar procedimentos semelhantes,
reunindo-se para os chamados “desafios” . Por vezes, uma dupla
de repentistas, como são chamados, fazem improvisações
de seus versos cujo desafio atinge horas incontáveis, até
que um ou outro se canse ou se dê por vencido na arte de compor
as rimas, obedecendo a um tema que segue uma linha de coerência
entre os pares.
Retomando a performance dos poetas populares, convém assinalar
que os leitores-ouvintes eram exigentes e nem todos os cantores de gesta
os agradavam. Para fazê-lo, em razão das exigências,
ainda é Zumthor (1993) quem descreve uma cena interessante:
um cantor de gesta, bastante esfarrapado, trazendo sua viela, atravessa
uma multidão em que se distinguem burgueses, clérigos, cavaleiros
- ao ar livre aparentemente, uma vez que ele conserva seu mantel. Ei-lo
que se detém e começa. Escuta-se sua primeira estrofe: se
a impressão é boa, pede-se a seqüência; senão,
ao pobre-diabo só resta tomar a estrada. Seu único capital
é o repertório agradável (...) e uma voz clara para
divulgá-lo (ZUMTHOR, 1993:231).
Aqui merece um comentário acerca de como Smith (1991:210) classifica
a leitura em suas características essenciais: é objetiva,
seletiva, antecipatória e baseada na compreensão. Ora, os
leitores-ouvintes manifestavam competência mediante as práticas
de leitura oralizada que ouviam com freqüência em ambientes
próprios. Assim, eles constituíam seus repertórios
de leitura e naturalmente faziam suas seleções sob a ótica
da estética em que eram apresentadas as histórias. Faziam
suas previsões e antecipações até chegarem
à conclusão de que aquelas histórias iriam lhes satisfazer
ou não.
Além da França, as manifestações dos poetas
públicos ganharam espaço principalmente na Espanha e Alemanha.
O anonimato permanecia acompanhando as produções orais por
uma razão justificável. A igreja medieval não via
com bons olhos a presença dos poetas a quem julgava sob a influência
do “demônio” quando eles estavam no exercício
de suas funções. A literatura era tida como “idolatria”
pelos clérigos e que, portanto, não deveria estar ao alcance
do público. Foi a própria Igreja quem deteve o privilégio
das escrituras, de modo particular as sagradas, ficando com ela a dominação
de acesso a qualquer texto. Aqueles textos que iam de encontro aos preceitos
religiosos eram incluídos na relação do index librorum
prohibitorum, ou os livros proibidos ao povo. Para imprimir o sentido
sagrado, os clérigos contavam em seus cultos religiosos os exempla
ou contos de exemplo, histórias curtas de conteúdo moral
para determinar a hegemonia da fé em todas as camadas da sociedade.
No entanto, alguns grupos pertencentes ao baixo clero, os goliardos, negligenciavam
os critérios tradicionais da fé e compunham suas canções,
muitas das quais sem nenhuma conotação religiosa. Os temas
variavam entre amor, bebida, primavera, e situações irônicas,
compostos em latim. Merecem registro os fabliaux, pequenas fábulas
medievais oralizadas, que debochavam das hostes católicas e subvertiam
a ordem social.
A tradição popular passou a despertar a atenção
de estudiosos e encontrou respaldo nos meios intelectuais. No século
XIX, mais precisamente em 1881, o francês Paul Sébilliot
denominou de literatura oral a toda manifestação cultural
destinada ao povo através da oralidade, acreditando ser um elemento
de substituição da literatura erudita para um povo que não
lê 2 (apud CASCUDO, 1984: 23), admitindo a distinção
para enfatizar que o ato de ler - conforme sugerem suas palavras - seria
privilégio daqueles que conseguiram apreender o código escrito
e que, assim, passaram a fazer parte da cultura livresca.
Sobre tal concepção, Martins (1994:28) destaca: seria contra-senso
insistir na importância da leitura restringindo-a aos livros ou,
quando muito, a textos escritos em geral. Fica evidente, portanto, que
aquele que ouve um texto de cordel, quer seja lido ou contado, também
faz leitura, toma conhecimento sobre narrativas, informa-se, atualiza-se
sobre situações cotidianas e se insere no universo cultural
do qual faz parte. A diferença reside no canal por onde se processa
a informação. Ouvir uma história equivaleria a ler
com os olhos (CAGLIARI,1992). Por esta razão, entendemos que os
folhetos de cordel - atividade do domínio oral, não obstante
a versão escrita –, promove a formação de leitores.
O agendamento jornalístico
e a tematização da saúde
O tema “saúde” nem sempre tem merecido uma editoria
específica nas redações de empresas jornalísticas,
tal como ocorre com política, economia e esporte. As matérias
de saúde e, por extensão, as de natureza científica,
muitas vezes ficam diluídas nos espaços gráficos
ou nos tempos destinados aos vídeos dos telejornais ou noticiários
radiofônicos, dividindo e competindo com outras notícias,
algumas das quais não tão relevantes. Do mesmo modo, os
acontecimentos na área de saúde passam ao longe das pautas
diárias, apenas merecendo destaque quando o fato jornalístico
incide no chamado “grau de noticiabilidade” (TRAQUINA, 2001;
SOUSA, 2002; WOLF, 2003)3.
No processo de produção das notícias (newsmaking),
a noticibilidade resulta na situação de hierarquia considerando-se
a visibilidade dos acontecimentos que ganham projeção na
sociedade, teoria que ficou conhecida no jornalismo por agenda-setting.
Trata-se, pois, de procedimentos de previsão, seleção
e exposição dos fatos, provocando uma espécie de
debate público (TRAQUINA, 1993; 2001; 2004; SOUSA, 2002; WOLF,
2003) e imprimindo às pessoas não apenas o que pensar mas
sobre como pensar. Tal concepção teórica surgiu nos
Estados Unidos, em 1968, por ocasião de estudos sobre eleições
presidenciais e ganhou repercussão na década seguinte de
acordo com pesquisas feitas por McCombs e Shaw (ibidem).
A agenda-setting determina os processos de seleção e apresentação
dos acontecimentos em forma de notícia (gatekeeping), alcançando
o público e promovendo, assim, a construção da realidade
social. Sobre tal situação, Kunczik (2001) destaca que
a seleção de notícias equivale a restringir o volume
de informações, o que significa a seleção
de assuntos que alguém acha que merecem ser publicadas. Os ´porteiros´
decidem quais os acontecimentos serão divulgados e quais não
serão, contribuindo assim para moldar a imagem que o receptor tem
de sua sociedade e de seu mundo (KUNCZIK, 2001:237).
Quando se trata de saúde, as notícias nesse segmento de
âmbito científico pouco são exploradas e, quando abordadas,
muitas vezes assumem o caráter de brevidade, carecendo de maior
aprofundamento dos dados. Sabemos que tal situação reflete
as condições das rotinas de produção e veiculação
das notícias, em cujo contexto vamos identificar a ausência
de informações que possam provocar reações
públicas no tocante a hábitos saudáveis como forma
de se precaver de enfermidades ou se advertir dos sintomas para procurar
especialistas médicos objetivando fins terapêuticos.
O jornalismo, como atividade que permite a construção social
da realidade, carrega consigo a responsabilidade de promover os atores
sociais no que toca ao comportamento mais adequado diante de quadros de
doença que os afetam. De outro modo, queremos dizer que o jornalista
deve tomar para si a condição de mediador de conhecimentos
para informar à população sobre os riscos que determinados
malefícios podem resultar, apontando causas, modos de se contrair
as doenças e mecanismos profiláticos. Sousa (2002) considera
a comunicação jornalística como um elemento importante
na organização da vida quotidiana, assim destacando:
De alguma forma, as notícias, entre múltiplas outras funções,
participam na definição de uma noção partilhada
do que é atual e importante e do que não o é, proporcionam
pontos de vista sobre a realidade, possibilitam gratificações
pelo seu consumo, podem gerar conhecimento e também sugerir direta
ou indiretamente, respostas para os problemas que quotidianamente os cidadãos
enfrentam (SOUSA, 2002:119).
Ora, se as notícias proporcionam “pontos de vista da realidade”,
decorrendo daí a influência que a mídia exerce sobre
a opinião, entendemos que a definição organizacional
de editorias especializadas em jornalismo científico será
absolutamente necessária para que a população possa
entender de maneira clara os assuntos que dizem respeito à saúde.
Acreditamos ser este um assunto que merece cuidadosa discussão
no meio jornalístico no sentido de se propor maior especialização
dos profissionais pois, assim sendo, estaremos atendendo possíveis
expectativas dos leitores e demanda da população, além
de estar cumprindo um papel importante na prestação de serviço.
Ao pesquisar a cobertura da AIDS através do jornal português
O Diário de Notícias, Traquina (2001) constatou que o assunto
tem merecido pouca atenção da mídia. Assegura o autor
que a matéria somente recebe destaque no momento em que fatos isolados,
inseridos nos graus de noticiabilidade, ganham projeção
no cenário midiático, quando envolve personalidades conhecidas
como a “estória” do atleta Magic Johnson, escândalos
de transfusões de sangue (p.154), ou ainda a pessoa desesperada,
o indivíduo enlouquecido que injeta seus amigos com uma seringa
contaminada, a pessoa famosa que morre vítima do vírus (p.166).
Para Traquina (ibidem), o estudo comprovou que a abordagem feita pelo
noticioso gerou muito mais uma espécie de terror público
sobre a doença do que esclarecimentos e “esperanças”
sobre a possibilidade de viver, mesmo com a presença do vírus
no organismo, assim enfatizando:
O drama do leitor soropositivo que tem o hábito de consumir as
notícias é que a exposição diária às
notícias fornece poucas ocasiões para carregar as velas
da esperança; ao contrário, a leitura das notícias
parece mais um exercício masoquista (TRAQUINA, 2001:166)
De outro modo, devemos considerar o limitado acesso da população
aos meios impressos de comunicação, situação
que compromete a legitimidade de uma sociedade leitora, que participa
dos acontecimentos e que se informa através das páginas
do jornal. Ao se levar em consideração o índice de
analfabetismo funcional4, que chega a 67% da população brasileira,
e que a TV está presente em 87,7% dos lares no Brasil5, podemos
inferir que temos um contingente maior de espectadores de telejornais
do que leitores de jornais impressos. Ainda assim, no meio televisivo
a situação não é muito adversa, ou seja, não
se observa a veiculação sistemática de matérias
sobre saúde. Observamos, contudo, campanhas publicitárias
sazonais, por parte do governo federal, alertando a população
sobre os perigos de se contrair determinadas doenças como a AIDS
e dengue, mas em períodos de maior registro da doença e
índices elevados que configuram epidemia..
Segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde Pública (Rio
Grande do Norte, Brasil), no período de 01 de janeiro a 30 de junho
de 2004 foram publicadas 141 matérias sobre saúde nos seis
principais jornais impressos do estado, número que julgamos incompatível
com a necessidade de difundir assunto tão relevante. Dentre os
temas, o que obteve maior destaque foi a “dengue”, com 55
notícias, seguida de “vacinação”, com
33 notícias, e “hanseníase”, com 9 notícias.
Outros, mereceram registros tais como: viroses, doação de
sangue, câncer e tuberculose6. Como se vê, a dengue ainda
é o principal ponto de pauta dos jornais em nosso Estado, provavelmente
por apresentar uma situação ainda sem controle na instância
do poder público. Os demais assuntos recaem sobre doenças
tropicais e campanhas como vacinação infantil e doação
de sangue.
Um recurso que vem sendo adotado pelos governos federal e estadual, possivelmente
para preencher as lacunas possibilitadas pela mídia no tocante
à divulgação de assuntos sobre saúde, é
a literatura de cordel.
A divulgação
científica através da literatura de cordel
No Rio Grande do Norte, a Secretaria Estadual de Saúde Pública
começou a utilizar a literatura de cordel em 1992, época
em que as informações científicas em torno da AIDS
ainda eram escassas. Foi lançado um projeto educativo de prevenção
à doença que consistia em distribuir os folhetos à
população, sobretudo em feiras livres, mantendo a secular
tradição dos cordelistas. O primeiro folheto, de uma série,
teve como título “O bode que pegou AIDS”7, com uma
tiragem inicial de 700 mil exemplares. Adotando uma linguagem simples
e de fácil compreensão, conta a história de José
que contraiu o vírus HIV por falta de cuidados preventivos em suas
práticas sexuais, situação que termina por transmitir
a doença à esposa e seu filho ainda em fase de gestação.
Produzido em heptassílabas por um médico especialista da
cidade do Natal-RN8, obedecendo à métrica ABCBDDB, diz algumas
de suas estrofes:
Na rua onde residia
Ele era muito afamado,
Pois além de bonitão
Tinha a fama de tarado;
Seu negócio era transar,
Mas não pensava em casar
Para não viver amarrado.
Cada dia uma mulher
Passava na sua mão
Como passa a ventania
Como faz o furacão.
Rompendo qualquer barreira,
Zé, com sua furadeira,
Não perdia a ocasião.
Como se observa, o uso de palavras coloquiais favorece a compreensão
imediata, pois atende a um repertório lexical e semântico
do cotidiano, sem arrodeios, ainda que em determinados trechos se observe
o emprego de expressões metafóricas (“amarrado”,
“passava na sua mão”, “furadeira”). São
versos que apresentam traços de humor para falar , sem comprometer
o sentido em função do contexto em que são colocados.
A narrativa possui um fim trágico, pois além de José
ainda morrem de AIDS sua esposa e o filho, encerrando com uma advertência:
E seu João, todo saudade,
Faz seu alerta geral:
Use sempre camisinha
Na transa sexual,
Transe com a mesma pessoa
Pois vida é coisa boa
E AIDS é dor, grande mal.
Fazendo uso do discurso indireto, o eu-narrador se apropria da informação
médica para recomendar aos leitores os cuidados com a AIDS. O texto
traz marcas
de uma narrativa ficcional remetendo às circunstâncias da
vida real, levando o interlocutor ao auto-questionamento sobre seu estar
no mundo, condição admitida por Ataíde (1974) como
um bom texto de ficção, assim enfatizando:
Um bom texto ficcional é aquele que satisfaz ao público
ávido por uma boa narrativa travada de suspenses e clímax
secundários e que seja ao mesmo tempo profundo e pleno de indagação
sobre a natureza do homem (ATAÍDE, 1974:22)
Em 1994, foi lançado o folheto “A corrente do prazer”,
com semelhante tom de alerta quanto aos cuidados que se deve ter em relação
às doenças sexualmente transmissíveis. Depois das
experiências bem sucedidas dos dois títulos de cordel, o
mesmo autor publicou “A peleja de Zeca Treponema contra Chico Gonococo”.
Utilizando-se do humor, e não obstante transmitindo informações
de natureza científica, o autor desenvolve uma narrativa entre
dois vírus que saem ameaçando a saúde de pessoas
descuidadas, representando vilões transmissores de doenças
como a sífilis e a gonorréia. O cordel apresenta, de modo
acessível, as formas de contágio das doenças, assim
como os sintomas que manifestam nos pacientes infectados, conforme as
seguintes estrofes:
Posso deixar paralítico,
Cego, surdo ou impotente
Quem me deixou muito tempo,
Correndo no sangue quente...
Quando ataco o coração
Tiro as forças e a razão
Do mais sabido valente.
E posso causar aborto
Testa grande e meningite,
Manchas e bolhas na pele,
Nariz selado e Hepatite.
Trabalhando todo dia
Causo até Paralisia,
Sem perder meu apetite.
No âmbito federal, o governo vem procurando sensibilizar a população
através da literatura de cordel, como forma de comunicação
imediata, destacando temas mais voltados para acidentes e mortes no trabalho.
Tanto assim que o Ministério da Saúde vem implementando
a política nacional de notificações de acidentes
e doenças no trabalho, dentro do Sistema Único de Saúde
(SUS). Outra ação que está sendo desenvolvida é
a campanha “Conte pra gente, conte com a gente”, lançada
em Brasília no dia 28 de abril de 2004 para incentivar a notificação
dos acidentes e das doenças relacionadas ao trabalho. É
nesse contexto que a literatura de cordel passa a integrar as atividades
de esclarecimento à população. Pelo menos sete folhetos
de cordel já foram publicados, com tiragem média de 15 mil
exemplares, os quais são distribuídos às secretarias
estaduais de saúde para que estas possam complementar o trabalho
de distribuição popular. Mantendo as capas com a tradicional
e milenar técnica da xilogravura9, o Ministério da Saúde
já editou os seguintes cordéis: “Manifesto do 28 de
abril”, “Acidentes do Trabalho”, “Do que adoecem
e morrem os trabalhadores rurais”, “Trabalho Infantil”,
“O dia em que o SUS visitou o cidadão” e “Perigos
a que estão expostos os homens do campo”.
Os temas obedecem a uma abordagem intimista e contestatória, de
denúncia social em torno dos quais procura destacar aspectos relevantes
ao conhecimento da população. Procura informar sobre as
doenças, modos de prevenção e recursos profiláticos.
Em determinadas estrofes de alguns dos folhetos, os autores fazem críticas
a segmentos empresariais que, muitas vezes, submetem os empregados a trabalhos
forçados e repetitivos, resultando daí em enfermidades,
como é o caso do folheto “Ler/Dort”10 nas seguintes
estrofes:
Senhores empregadores,
Quem não tem rabo de palha
Deve ouvir o operário,
Quando aponta alguma falha
Que possa prejudicá-lo
No local onde trabalha.
Merece ganhar medalha
Todo patrão brasileiro
Que dá voz ao empregado
E traça com ele o roteiro
Para eliminar os riscos
Do trabalho rotineiro.
Considerações
finais
O estudo realizado
permite concluir que a literatura de cordel pode ser um meio alternativo
de informação ao público quando o jornalismo não
procura agendar temas que possibilitem informações sobre
saúde. A teoria da agenda-setting revela a hierarquização
das notícias sobre as quais recaem o grau de importância
que elas vão ter perante os leitores. Subjazem a esse processo
de seleção das notícias os níveis de interesse
pessoal e empresarial (gatekeeper) de onde não se descartam aspectos
ideológicos que entram na definição da agenda pública.
O fato é que a sociedade precisa estar bem informada sobre saúde,
em um país cujo sistema ainda é deficiente em termos de
infra-estrutura e de atendimento em postos e hospitais públicos,
pois, além de recursos para garantir um bom estado de saúde
aos cidadãos brasileiros, falta concentrar interesse político
para reverter quadros acintosos de epidemias, desnutrição
infantil, doenças tropicais. Não desconhecemos que será
necessário definir estratégias de políticas públicas
para garantir qualidade de vida à população através
de saneamento básico, habitação, melhores condições
de equipamentos e material nos postos de saúde, humanização
e modernização no atendimento aos pacientes. Por extensão,
entendemos que é indispensável estabelecer mecanismos de
divulgação sobre hábitos salutares.
Cabe ao sistema jornalístico refletir sobre a relevância
de falar sobre saúde, destinando maiores espaços editoriais
no sentido de informar, advertir e esclarecer acerca de doenças.
Enquanto tal não ocorre, a população tem como opção
a literatura de cordel que, há séculos, catalisa a atenção
de leitores e ouvintes, por possuir uma linguagem despojada, agradável
e, via regra, abordar suas narrativas com recursos de ludicidade, tornando
compreensível o discurso científico. De todo modo, é
nessa situação em que identificamos a convergência
entre ciência, jornalismo e cultura popular.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
ABREU, Márcia.
Histórias de cordéis e de folhetos. Rio de Janeiro: ALB,
Mercado de Letras, 1999.
ATAÍDE, Vicente de Paula. A narrativa de ficção.
3. ed. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974.
BOUVIER, Jean Claude. Patrimônio oral e consciência cultural.
Caderno de textos, especial Literatura Oral.
João Pessoa, Mestrado em Letras, UFPB, 1989. p. 15-60.
CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e lingüística.
São Paulo: Scipione, 1992. (Série pensamento e ação
no Magistério, 3).
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 3.ed.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 1984
______. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1986.
GOMES, Adriano Lopes. Era uma vez... e ainda é. In: AMARILHA, Marly
(Org.) Seminário Educação e Leitura 1, Anais. Natal:
UFRN, Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Departamento de Educação,
1996. p. 147-152.
______. O contador de histórias: da tradição oral
para a sala de aula. In: AMARILHA, Marly (Org.). Encontro de pesquisa
educacional do nordeste 13, Anais, volume 15. Natal: EDUFRN, 1998. p.
7-13.
KUNCZIK, Michel. Conceitos de jornalismo: manual de comunicação.
Tradução por Rafael Varela Júnior.2 ed.
São Paulo, editora da Universidade de São Paulo: 2001.
MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 19. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
MAXADO, Franklin. O que é literatura de cordel? Rio de Janeiro:
Condecri, 1980.
SMITH, Frank. Compreendendo a leitura: uma análise psicolingüística
da leitura e do aprender a ler. 3. ed.
Tradução por Daise Batista. PortoAlegre: Artes Médicas,
1991.
SOLER, Luis. Origens árabes no folclore do sertão brasileiro.
Florianópolis: Ed. da UFSC, 1995.
SOUSA, José Wanderley Alves de. Literatura de cordel: vozes do
pai, do filho e do espírito santo. In.:
LUCENA, Ivone et al (orgs.). Análise do discurso: das movências
de sentido às nunças do (re)dizer. João Pessoa: idéia,
2004. 233-246
SOUSA, Jorge Pedro. Teorias da notícia e do jornalismo. Chapecó,
SC: Argos, 2002.
TRAQUINA, Nelson . Jornalismo: questões, teorias, ‘estórias’.
Lisboa: Veja, 1993. (Coleção comunicação e
linguagem)
______. O estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo,
RS: Editora Unisinos, 2001.
______.Teorias do jornalismo: porque as notícias são como
são. v.1. Florianópolis: Insular, 2004.
WOLF, Mauro. Teorias das comunicações de massa. Tradução
por Karina Jannini. São Paulo: Martisn Fontes, 2003. (Coleção
leitura e crítica).
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. Tradução
por Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
|
|