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LETRAMENTO
E MODOS DE LETRAR NA CRECHE UFF
Cecília Maria Aldigueri Goulart - UFF
Alessandra Iguassú da Fonseca - UFF
Vanêsa Vieira Silva de Medeiros – UFF
I- Apresentação da pesquisa, sujeitos envolvidos
e procedimentos realizados
O trabalho que apresentamos é parte da pesquisa
em andamento cujo título é A noção de Letramento
como horizonte ético-político para o trabalho pedagógico:
explorando diferentes modos de ser letrado**. A pesquisa tem caráter
qualitativo. Neste sentido a observação e a entrevista assumem
papel de relevo. A observação é organizada em dois
grandes grupos de informações: (a) atividades, de um modo
geral; e (b) rodinhas.
O objetivo geral da pesquisa é investigar diferentes modos de constituição
de sujeitos letrados, de forma a contribuir, tanto para o aprofundamento
da compreensão da noção de letramento, quanto para
a discussão do trabalho pedagógico nos espaços educativos,
pressupondo esta noção como horizonte ético-político
para a ação político-educacional.
A pesquisa é realizada na Creche UFF, que fica localizada no Campus
Universitário do Gragoatá no município de Niterói,
no Estado do Rio de Janeiro.
A Creche UFF é um espaço que atende a comunidade universitária,
oferecendo um serviço pedagógico a crianças de zero
a seis anos, sendo formada por filhos tanto de alunos como de funcionários
e professores. Também se caracteriza como um campo de investigação
e prática que possibilita a formação profissional
e acadêmica dos estudantes de graduação e pós-graduação
interessados na modalidade da Educação Infantil.
A proposta de trabalho orienta-se pedagogicamente por autores da chamada
corrente sócio-interacionista, em que se privilegia a interação
criança-criança e criança-adulto. Desta forma possui
uma proposta de atuação baseada em “Grupos de Brincadeiras”
e Pedagogia de Projetos.
Foi selecionado um grupo de dez crianças. O critério para
esta seleção foi o da idade, privilegiando-se a formação
de dois grupos: um grupo com quatro (4) anos e outro com cinco (5) anos.
Para tal, levamos em conta que no mês de abril de 2003 as crianças
já estivessem com as respectivas idades completas.
A escolha de crianças desta faixa etária justifica-se pelo
fato de já estarem utilizando a linguagem oral para plena comunicação,
bem como estarem em processo de descoberta e compreensão das funções
sociais e dos modos de funcionamento da linguagem escrita, por serem moradoras
de zonas urbanas, e também por freqüentarem um espaço
educativo em que materiais escritos circulam e são manuseados,
conforme observado no trabalho realizado na Creche.
Para realizar o levantamento de dados das crianças selecionadas,
entramos em contato com os pais e/ou responsáveis com o intuito
de marcar uma visita às suas casas. O objetivo desta visita era
conhecer o ambiente familiar de cada criança, a presença/ausência
de materiais ligados à escrita (lápis, caneta, papel, livros,
revistas, agendas, catálogos, entre outros) e alguns indícios
do uso cotidiano da língua escrita (cartas, recados, trabalhos
escolares/profissionais, entre outros).
Assim, aproveitamos esta visita para entrevistar um dos responsáveis
pela criança, preferencialmente pai ou mãe, com a finalidade
de conhecer os modos de inserção da família na cultura
letrada.
Foram consideradas duas condições para a visita: a) a presença
da criança durante a visita, já que precisávamos
saber como ela interage com os objetos da casa, seus brinquedos e seus
espaços; b) a participação de duas pesquisadoras,
sendo que uma conduziria a entrevista e a outra observaria a dinâmica
como um todo.
Outros instrumentos de pesquisa usados foram as observações
em sala de aula que formam um conjunto de informações relativo
à dinâmica das aulas, o qual nomeamos como Registros das
observações e as produções das crianças.
Para a presente comunicação, selecionamos e analisamos alguns
dados dos registros de observações do trabalho pedagógico
realizado na Creche em atividades variadas. Nestas atividades destacamos
indícios e marcas do atravessamento da linguagem escrita nas interações
discursivas observadas entre a professora e as crianças, embora
em alguns momentos não necessariamente os portadores de escrita
estivessem presentes. Caracterizam-se assim aspectos de modos de letrar
e dos percursos do letramento das crianças.
II- Letramento e modos de letrar
Continuamos a discutir, no início do século
XXI, questões relativas à alfabetização porém,
hoje, nos deparamos com um novo termo: letramento. Para alguns, nome novo
para uma coisa antiga. Para outros, uma nova perspectiva social para contextualizar
o processo de alfabetização escolar. Por que falamos, hoje,
de letramento? Alfabetização e letramento são sinônimos?
Com relação à primeira questão acima, há
cerca de dez anos, estamos nos deparando com o termo, porém alguns
estudiosos vêm se mostrando contrários ao uso do letramento,
como é o caso de Emilia Ferreiro. Em uma sociedade letrada como
a nossa, organizada fundamentalmente por meio de práticas escritas,
encontramos sujeitos não-alfabetizados nela vivendo. Isto é,
mesmo sem saber ler e escrever essas pessoas dão conta de suas
vidas seja trabalhando, pegando condução para locomoções
várias, fazendo compras e isto implica escolha por produtos, marcas
e preço, seja dando conta da educação de seus filhos.
Tfouni, por exemplo, apercebe-se da falta “[...] de uma palavra
que pudesse ser usada para designar esse processo de estar exposto aos
usos sociais da escrita, sem no entanto saber ler nem escrever”(1997,
p. 7). O letramento designaria, então, os processos envolvidos
na aquisição de um sistema escrito, os usos sociais que
fazemos da escrita e as funções sociais que a linguagem
escrita têm nos diferentes espaços e comunidades. O letramento
em termos gerais, estaria assim relacionado ao conjunto de práticas
sociais orais e escritas de uma sociedade.
Em resposta à segunda questão, partilhamos do posicionamento
de teóricos como Magda Soares, Ângela Kleiman, Leda Tfouni
e Cecília Goulart, de que alfabetização e letramento,
designam processos indissoluvelmente ligados entre si, mas são
conceitos diferentes.
O termo letramento vem-se mostrando pertinente para os estudos sobre o
processo de ensino-aprendizagem da linguagem escrita, já que se
observa o termo alfabetização muito relacionado a uma visão
desta aprendizagem como um processo mecânico de codificação/decodificação
de sons em letras e vice-versa. Esta visão está, em geral,
está ligada à suposição de que a linguagem
escrita é a fala por escrito. Neste sentido, os sistemas escritos
teriam sido inventados para representar a fala. De um modo geral, os autores
que defendem esta idéia entendem também que “a história
da escrita seja a evolução progressiva que culmina no alfabeto”
(Olson, 1998: 93). Esta visão da história da escrita tem
sido considerada etnocêntrica por alguns autores (Coulmas, 1989;
DeFrancis, 1989, apud Olson, op. cit.; Michalowski, 1994). A questão
tem gerado debates bastante interessantes que podem enriquecer nossos
conhecimentos em três perspectivas: da elaboração
da história da própria escrita; do ensino/aprendizagem da
leitura e da escrita; e também de como, e se, a aprendizagem da
escrita afeta a nossa cognição. Nosso interesse, neste momento,
se localiza diretamente na segunda alternativa.
Muitas outras questões instigam a pensar sobre o tema: há
diferença de níveis de letramento? O letramento é
um processo individual ou coletivo? Como conceituá-lo? Podemos
discutir relacionar autoria e letramento?
É com base em muitos destes questionamentos que a pesquisa vem
caminhando buscando revelar aspectos dos caminhos percorridos pelas crianças
para se tornarem alfabetizadas, bem como os conhecimentos que estão
envolvidos nestes processos. Vêm, do mesmo modo, contribuindo para
a reflexão sobre novas possibilidades de ação pedagógica
com a linguagem verbal, na perspectiva de se repensarem metodologias de
trabalho que favoreçam a formação de sujeitos criticamente
letrados. Tal formação estaria intimamente relacionada à
construção da autoria e da cidadania, à medida que
associamos estas condições à condição
letrada, isto é, à inclusão e participação
dos sujeitos no tecido social por meio da apropriação de
diferentes textualidades da linguagem escrita. Nosso interesse de pesquisa
se concentra no aprofundamento da compreensão de processos e fatores
envolvidos na construção daquela condição
letrada no espaço familiar e no espaço educativo, investigando
aspectos de como os modos de ser letrado se constituem.
Neste sentido a linguagem enquanto atividade constitutiva do sujeito tem
um papel neste processo, não só do ponto de vista da construção
da singularidade dos sujeitos, mas também da construção
das suas marcas de pertencimento a determinado(s) grupo(s). Pois os modos
como as pessoas expressam suas vivências, crenças, sentimentos
e desejos são suas formas subjetivas de apresentar seus conhecimentos
e suas relações com o mundo. São, portanto, as interpretações
possíveis no/do interior de seus universos referenciais culturalmente
formados.
Os estudos de Bakhtin vêm-se mostrando relevantes para a nossa compreensão
da tensão discursiva que existe em qualquer grupo, em qualquer
espaço social, em qualquer sociedade, e que pode ser explicada
dependendo de onde nos posicionemos. No caso aqui de nossa pesquisa, o
propósito é compreender quais teias discursivas caracterizam
os modos como as pessoas se letram e como os caracterizam. Pretendemos,
então, com base em princípios e categorias do trabalho do
autor, nos aproximar de uma formulação.
A teoria da enunciação de Bakhtin destaca a produção
de linguagem na perspectiva da enunciação, ressaltando a
natureza social da situação de produção de
discursos. Neste lugar os feixes de sentidos se constroem, dialogam e
disputam espaço, instaurando-se como signos ideológicos.
O Outro, parte constitutiva da situação social de enunciação,
atua de modo que o sujeito também seja parte constitutiva dessa
organização, constituindo-se. O diálogo, então,
é condição fundamental para se conceber a linguagem.
A verdadeira substância da língua é constituída
pelo fenômeno social da interação verbal, realizada
através da enunciação ou das enunciações
(cf. Bakhtin, 1988: 123). No movimento dos sujeitos nas infindáveis
situações de enunciação, os signos, pelo seu
caráter vivo, polissêmico e ideologicamente opaco, têm
sua significação determinada pelos contextos em que são
produzidos.
Esses feixes de significações que os signos comportam podem
ser relacionados a compreensões diversas de facetas do mundo, tanto
construídas na vida cotidiana, empiricamente, quanto na tradição
de formação de áreas de conhecimento, como a religião,
a ciência, a filosofia, a arte, conformando o que Bakhtin chamou
de dialética interna do signo. A noção de heteroglossia
sintetiza essa concepção de que qualquer signo, qualquer
enunciado, encontra o objeto a que se refere recoberto de sentidos construídos
na história e na cultura, ideologizado, portanto, “por uma
espécie de aura heteroglóssica (i.e., por uma densa e tensa
camada de discursos)”, nas palavras de Faraco (2003). A noção
de heteroglossia, que entendemos entrelaçada com a de letramento,
então, se organiza a partir desse centro organizador, que é
povoado de muitas visões de mundo, muitas palavras, muitas histórias,
de várias origens, que dialogicamente se fundam no social: um social
não homogêneo, não transparente, ideologicamente opaco,
constituído de signos.
A perspectiva acima delineada interliga a noção de letramento
a um modo de conceber a linguagem escrita e seu contexto sócio-histórico,
que problematiza de modo agudo seu ensino/aprendizagem. Tomando a linguagem
verbal como eixo de nosso estudo, tentamos contribuir para o aprofundamento
da discussão de aspectos da noção de letramento,
que embora rebelde a definições e contornos, nos parece
bastante promissora.
Podemos depreender, discutindo e interligando as diretrizes teóricas
acima, que, para avançar no estudo sobre letramento, precisamos
pensar de modo mais radical na constituição do sujeito,
com base em suas experiências nas diferentes práticas sociais
em que é inscrito e se inscreve.
Teale (1992) realizou uma relevante pesquisa sobre as orientações
de letramento de 24 crianças americanas pertencentes a famílias
de baixa renda, investigando a extensão e a natureza das experiências
de letramento das crianças pré-escolares, em suas casas,
por meio da análise de diferentes estruturas de participação
e domínios de atividades. O autor observa através das evidências
encontradas que virtualmente todas as crianças numa sociedade letrada
têm numerosas experiências com a linguagem escrita antes de
entrar na escola. Observa também que essas crianças vivenciam
o letramento como um processo social. Enfatiza que determinadas atividades
de letramento realizadas nos lares se mostram como conseqüências
inevitáveis da participação e inserção
numa sociedade letrada. Destaca que a situação doméstica
se constitua num complexo de fatores econômicos, sociais, culturais
e pessoais e que, embora a situação econômica possa
afetar as circunstâncias de letramento, isso não é
uma regra. O autor observou instâncias entre as famílias
de baixa renda que têm sido caracterizadas por autores como “altamente
letradas”. Um outro fator a destacar nas ações domésticas
de letramento é a alta significação que a interface
com instituições sociais diversas revela (escola, trabalho,
governo, e igreja, por exemplo). Terzi (1997), com base no estudo de Heath
(1982), defende a necessidade de conhecermos as orientações
de letramento dos alunos para que possamos compreender seus processos
de aprendizagem.
Estamos aqui entendendo as orientações de letramento como
o espectro de conhecimentos (cf. Rommetveit, 1985: 183-184) desenvolvidos
pelos sujeitos nos seus grupos sociais, em relação com outros
grupos e instituições sociais. Este espectro está
relacionado à vida cotidiana e a outras esferas da vida social,
atravessadas pelas formas como a linguagem escrita as perpassa, de modo
implícito ou explícito, de modo mais complexo ou menos complexo.
A noção de heteroglossia é vista como básica
para a compreensão da noção de letramento no sentido
de que o letramento está relacionado ao conjunto de linguagens
sociais que identificam práticas sociais, com expressões
orais e escritas, e relacionadas a instituições e aos gêneros
de discurso que aí se produzem. Estaria, conseqüentemente,
relacionado de modo forte à formação dos diferentes
campos de conhecimento. Assim, vivendo em sociedades letradas, tanto os
sujeitos escolarizados, quanto os não escolarizados são
afetados de alguma forma pelo fenômeno do letramento.
Estamos deste modo unindo as noções de letramento e heteroglossia.
O letramento estaria associado à condição de pela
linguagem ser interno de modo crítico aos conteúdos e formas
sociais que, atravessados pela escrita, disputam o jogo do poder no espaço
político das relações sociais. A heteroglossia, ligada
à compreensão, também crítica, dos outros
e alheios que, ao comporem o espectro discursivo social, compõem
o meu discurso, revelando as diferenças/afastamentos entre mim
e os outros, as semelhanças/aproximações, bem como
as tensões/conflitos.
A condição letrada é pressuposta intimamente relacionada
tanto aos discursos que se elaboram nas diferentes instituições
e práticas sociais orais e escritas, quanto aos muitos objetos
e formas de expressão sociais, entre elas a expressão em
língua escrita.
III- Tecendo as tramas cotidianas da Creche: analisando
dados
Os dados que ora trazemos para análise foram retirados
dos Registros de Observação da prática pedagógica
realizada na Creche UFF. As observações foram realizadas
em diferentes dias, horários e envolveram atividades variadas da
professora e das bolsistas com as crianças.
O trabalho de análise dos dados colhidos nas observações
nos levou a levantar cinco categorias: a) conhecimento das linguagens
sociais (da ciência: nutrição, botânica, zoologia,
astronomia, meteorologia; da cartografia, da música e das artes
cênicas); b) trabalho com os gêneros do discurso; c) contato,
manipulação e trabalho com objetos vinculados de alguma
forma à linguagem escrita; d) atitudes sociais; e) atividades de
leitura e de escrita propriamente, ou a elas associadas. Para esta comunicação
estamos trazendo para análise dois pequenos relatos extraídos
de duas dessas categorias: conhecimento das linguagens sociais da ciência
e atitudes sociais.
Conhecimento das linguagens sociais
“Uma coisa é certa. Sem boca ninguém ia ficar sabendo
a diferença entre o doce, o salgado, o amargo e o azedo. Sem boca,
também, o mundo inteiro ia cair num silêncio de sepultura.
Ninguém ia poder conversar. Ninguém ia poder contar história
de noite na hora de dormir. Ninguém ia poder explicar o que aconteceu,
nem o que deixou de acontecer. Já pensou? Não ia dar mais
nem para falar o que a gente sente! Em compensação, ninguém
ia poder sair por aí gritando, dando bronca e assustando as pessoas
à toa.” (Azevedo, 2000, p. 31-32)
Dentro na Proposta Pedagógica da instituição,
a professora solicita às crianças que realizem “pesquisas”
tanto na Creche como em casa sobre os temas que envolvem os projetos que
são desenvolvidos.
Um projeto sobre a alimentação foi desenvolvido na Creche
no decorrer do ano. Esse projeto motivou o grupo a buscar informações
de vários sentidos que iam desde a busca de saberes sobre os benefícios
de alguns alimentos, os processos de ingestão, como também
o desenvolvimento de algumas receitas culinárias. Na rodinha as
crianças socializavam informações, contavam novidades,
planejavam o dia, traziam objetos que achavam interessantes. Observamos
a riqueza desses momentos ao propiciar às crianças voz e
vez, no sentido de que se expressando organizam o conhecimento que têm
e se conscientizam dele. O fragmento abaixo foi retirado de uma dessas
rodas de socialização e trabalho no projeto sobre a alimentação.
Conforme as categorias explicitadas acima, esse fragmento está
categorizado como relativo ao conhecimento das linguagens sociais da ciência.
O relato constitui-se no seguinte:
As crianças estavam na rodinha falando da pesquisa
de casa sobre se o chiclete fazia bem ou mal para a saúde. A professora
lia o que cada criança ou pai/mãe tinha falado sobre o assunto
no caderno de casa (...) Os argumentos que haviam escrito sobre o assunto
eram diversos, desde os mais simples até os mais complexos, havia
uma explicação, possivelmente de um pai/mãe, muito
elaborada falando dos processos de ingestão dos alimentos, desde
sua entrada pela boca até seu encontro com os ácidos gástricos,
etc (04/11/2003).
Destacamos o caráter da interação proposto na atividade
realizada na rodinha, em que sobressai a circulação de discursos
escritos entre a professora, as crianças e mesmo a família,
na socialização das “pesquisas”. Diferentes
modos de abordar o tema foram discutidos, incluindo modos mais cientificamente
elaborados. Os vários enunciados lidos e discutidos entram na situação
de enunciação, hibridizando-a de várias maneiras.
No sentido bakhtiniano, a expectativa é que as crianças
vão se apropriando das palavras, dos gêneros, dos valores,
não de forma homogênea, mas heterogeneamente recriando suas
possibilidades de usar a linguagem.
As diversas formas como é concebida a linguagem neste espaço
de interação propiciam o contato de diferentes linguagens
sociais que, conseqüentemente, implicam a relação e
a formação dos diferentes campos do conhecimento. As várias
falas/enunciados encontrados neste ambiente refletem a dialogização
das vozes sociais, que, povoados de muitas visões de mundo, muitas
histórias e várias origens, relacionam-se a uma discursividade,
caracterizando um determinado modo de conhecer aspectos da realidade e
explicá-los. Como afirma Bakhtin:
“a
experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o
efeito da interação contínua e permanente com os
enunciados individuais do outro.(...)Nossa fala, isto é,nossos
enunciados (...) estão repletos de palavras dos outros, caracterizadas,
em graus variáveis, pela alteridade ou pela assimilação,
caracterizadas, também em graus variáveis, por um emprego
consciente e decalcado. As palavras dos outros introduzem sua própria
expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos.”(Bakhtin,2003,
p.313-314).
Os feixes de sentido que se constroem nesta atividade, orientada pela
professora, criam campo fértil para o movimento de interação
social em que os sujeitos constituem os seus discursos através
das palavras alheias dos outros sujeitos, que ganham significação
no seu discurso interior e, ao mesmo tempo, vão gerar as contrapalavras
ao dizer do outro: “É num emaranhado discursivo que se formam
o discurso social e os discursos individuais”. (Goulart, 2005, p.
19).
Pode-se supor, com base na análise do fragmento acima, e segundo
os pressupostos teóricos que sustentam nossos olhares para o letramento,
que a constituição de sujeitos letrados estaria intimamente
relacionada a ambientes onde diversas linguagens sociais circulem, visto
que estas refletem diferentes esferas simples e complexas da vida.
Atitudes sociais
“Quando
te vi, aquilo era quase amor. Você me acelerou, acelerou, me deixou
DESIGUAL. Chegou pra mim, me deu um daqueles sinais, depois DESACELEROU
e eu fiquei muito mais.”(Djavan, Acelerou)
Goulart (2005)
destaca a importância de olharmos para as crianças como leitoras
e produtoras de textos. O destaque feito pela autora é de fundamental
importância quando pensamos em como deve se organizar o trabalho
pedagógico em sala de aula. As crianças, ao entrarem na
escola, em geral, já chegam conhecendo algumas das funções
da escrita e fazendo alguns de seus usos sociais, pelo valor que essa
linguagem tem em nossa sociedade. Sendo assim, podemos estar direcionando
nosso olhar para os alunos como produtores e de textos o que dará
uma outra direção ao trabalho, permitindo-nos ver nossas
crianças, não a partir da falta, mas sim de estarem sendo
constituídos e se constituindo na linguagem com os outros.
Falando de alguns conhecimentos que crianças trazem para a escola,
apresentamos a fala de uma aluna de cinco anos da Creche UFF que, usando
uma construção equivocada, mas perfeitamente dentro das
regras da língua, nos faz refletir sobre a reflexão de Bakhtin
sobre a transformação de palavras abstratas, de sentido
dicionarizado, em palavras com significação e contextualizadas.
A visita à casa do amigo é uma atividade que faz parte do
projeto de construção de identidade do grupo. Cada criança
do grupo recebia, em sua casa, os amigos numa manhã para uma animada
visita onde, além do conhecimento da casa do amigo, tinha o objetivo
de integrá-los, cada um deixando-se conhecer através de
seus brinquedos, espaços e de suas rotinas. Antes de cada visita
tudo era combinado para que a atividade corresse bem, principalmente algumas
ações que poderiam, ou não poderiam, ser realizadas.
O planejamento das atividades realizadas no decorrer do dia é uma
atividade rotineira da professora com as crianças. A situação
descrita a seguir foi observada num dos planejamentos de visita à
casa do amigo.
A professora
pergunta: “como a gente faz na casa do amigo?”
Uma criança responde: “arruma tudo”.
Analice diz:
“desbagunça” (mostra como é, gesticulando) (20/11/2002)
Podemos perceber
que com essa construção desbagunça, e outras, as
crianças mostram que estão pensando sobre a língua.
Vemos erros deste tipo como forma de construção de conhecimento
e reflexão sobre a língua. Falamos desarrumar, desconstruir,
desfazer, desclassificado, desacelerar, etc. Enfim, usamos prefixos antes
dos radicais para modificarmos o sentido das palavras. Na palavra desbagunça
foi usado o prefixo DES, num dos seus sentidos. Esta formação
morfológica com sentido de negação está correta
do ponto de vista das regras da língua portuguesa, embora tal palavra
não exista na língua. Uma criança responde que é
para arrumar tudo, Analice, ao falar desbagunça, usa a palavra
no mesmo sentido de seu amigo, porém o faz através de uma
construção própria. Ao analisarmos o enunciado no
seu todo, podemos perceber como a palavra desbagunça tem sentido.
Um dado como esse evidencia que no processo social de construção
da língua pelas crianças, elas vão incorporando e
trabalhando as palavras alheias transformando em palavras próprias,
de forma refletida. A incorporação das palavras alheias
aos enunciados não é somente um caso de reprodução
das palavras. Trata-se de estar usando a linguagem em sua complexa dinâmica
de trabalho, apropriação e ressignificação
dos enunciados.
A noção de polifonia nos faz pensar que nas atividades de
discutir com as crianças o planejamento para a visita a casa do
amigo, dialogando com eles, deixando que expressem ao seu modo suas experiências
e vivências, estariam garantindo a circulação e a
incorporação de outros modos de conhecimento que estamos
ligando a condição de letramento.
É interessante observar que em alguns momentos permitimos que tais
construções sejam possíveis, porém, quando
as crianças começam a crescer ou passam a freqüentar
ambientes escolares, essas construções não são
mais permitidas, passando a ser entendidas mesmo como erros. Do modo como
entendemos, “Erram porque estão construindo conhecimento
reflexivamente.” (Goulart, 2005, p. 19)
Considerando o foco da pesquisa, explorar diferentes modos de ser letrado,
verifica-se neste material dados importantes ligados aos processos de
letramento das crianças.
Conclusão
O contato
e manipulação de diversos materiais ligados à escrita
e à leitura, jornais, livros infantis, etc, em atividades dinâmicas,
principalmente coletivas (como as rodinhas), proporcionam aos sujeitos
pesquisados familiaridade e interlocução com o mundo letrado
que os cerca. A percepção do conhecimento e pertencimento
destes sujeitos a uma cultura letrada não é somente evidenciada
por tais características, é também pelas linguagens
sociais em que estão envolvidos, os objetos que os cercam, os gêneros
do discurso com que entram em contato e como reagem a tudo isso. Tanto
suas escritas quanto a oralidade vêm revelando a interação
com mundo letrado.
Goulart (1999) afirma que a inclusão e a participação
numa sociedade letrada passa por conhecimentos de ordem prática,
filosófica, científica e artística, como também
por gestos, hábitos, atitudes, procedimentos e estratégias
que constituem valores sociais. Estes diferentes tipos de conhecimentos
estão associados a práticas, instituições
e agentes sociais.
Neste sentido chamamos atenção para que a escola perceba
nos trabalhos das crianças e dos alunos sua capacidade expressiva
como criação e recriação de sua realidade.
Não só para valorizar o que estão produzindo mas
também pela constituição plural das identidades.
Acreditamos que a escola é uma das agências promotora do
letramento no sentido proposto por Goulart:
A escola
pode ser um espaço de abertura para outras vozes e dimensões
do conhecimento, para ampliar o mundo social plural dos sujeitos com múltiplos
modos de mostrar, apreender, discutir e sentir as faces da realidade.
Aumentar-se-ia dessa maneira o espectro fragmentário de conhecimento
dos sujeitos. Não de uma forma hierarquizada e homogênea,
mas, sob o olhar de Focault (1996), recusando o discurso “verdadeiro”
e discutindo o novo, que não está no que é dito,
“mas no conhecimento de sua volta” (p. 26). Como o “tema”
bakhtiniano que, envolvendo o enunciado, cria-lhe uma significação
única, irrepetível.” (2003, p. 47)
Os dados aqui apresentados trazem contribuições relevantes
para continuar compreendendo o fenômeno do letramento, relacionadas
a processos de letramento e a modos de letrar. O aprofundamento da análise
e discussão destes dados, juntamente com muitos outros que aqui
não foram apresentados, continuarão sendo realizados nas
reuniões da pesquisa. Acreditamos assim, poder estar contribuindo
para a compreensão da constituição da condição
letrada, como também para o trabalho pedagógico realizado
na escola.
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