Marlene Ribeiro da Silva Graciano – Universidade
Luterana do Brasil (ULBRA)
Célia Maria de Castro Almeida – Universidade de Uberaba (UNIUBE)
RESUMO
Empregando procedimentos metodológicos próprios da pesquisa
etnográfica e da história oral, a pesquisa objetivou investigar
histórias orais que compõem o imaginário de um grupo
de assentados/as para, ao adotar uma perspectiva de educação
intercultural, integrá-las aos estudos da linguagem realizados
em uma 1ª série do ensino médio da Escola Família
Agrícola 19 de Maio, localizada em um assentamento rural em Campo
Florido (MG). Histórias de vida e da cultura popular recolhidas
entre os assentados/as foram trabalhadas pelos alunos/as em atividades
de leitura e retextualização. Ao interagirem com as narrativas
– lendo e produzindo seus textos escritos – os alunos/as afirmaram-se
como sujeitos históricos e como autores/as.
1 Introdução
Este texto relata os resultados de uma pesquisa desenvolvida
na Escola Família Agrícola 19 de maio (EFA), situada no
Assentamento Nova Santo Inácio e Ranchinho, localizado no município
de Campo Florido (MG).
Algumas famílias, preocupadas em oferecer a filhos/as uma educação
de qualidade e manter os/as jovens entre as famílias, fundaram
em 2001 a Escola Família Agrícola 19 de Maio, de ensino
médio. A escola funciona quinzenalmente em período integral.
Ela é orientada pelos princípios da Pedagogia da Alternância
(PA), das Escolas Família Agrícola. Os pais escolheram o
modelo educativo das EFAS por acreditarem que este poderia preparar os/as
jovens para os ajudarem a administrar, de forma sustentável, a
terra conquistada — conforme orientações do MST.
A escola é financiada, em parte, pelos pais, que contribuem com
uma pequena mensalidade e doação de alimentos, e o pagamento
de monitores/as depende de convênios com os poderes públicos
estadual e municipal, o que é o maior problema da escola: nenhuma
dessas instâncias garante assistência à Escola Família
Agrícola 19 de Maio por ela ainda estar em processo de reconhecimento
e ser uma escola diferenciada — isto é, resultar da iniciativa
de um grupo de assentados/as.
Fundamentada na perspectiva sócio-histórica, que compreende
a língua como um fenômeno interativo e dinâmico, no
qual os sentidos do texto são constituídos pelo leitor em
interação com o contexto da enunciação, nesta
pesquisa, minha proposta de trabalho na EFA tinha como objetivos levar
alunos/as a conhecerem e valorizarem as histórias do grupo sociocultural
a que pertencem, bem como a construírem conceitos da língua
de forma prática funcional, contextualizada e significativa. conforme
os objetivos desta pesquisa. Noutras palavras, viver as características
próprias da linguagem oral e da linguagem escrita, por meio de
atividades de leitura e produção de textos. A pesquisa tinha,
ainda, a preocupação de criar possibilidades de troca mútua
entre alunos/as e professora, de modo a se criar um espaço de narrativas
em que alunos/as pudessem se posicionar como autores/as ao fixarem, por
meio da escrita, as histórias e, assim, mantê-las acessíveis
às novas gerações como memória do grupo.
A metodologia usada para alcançar tais objetivos combinou investigação
e intervenção. As contribuições da pesquisa
qualitativa propiciaram-me compreender o sentido dos fenômenos vivenciados
e construir novos conceitos epistemológicos e metodológicos
a serem implementados no Ensino de Língua Portuguesa.Os procedimentos
metodológicos utilizados foram os da pesquisa etnográfica
e pesquisa ação: entrevistas semi-estruturadas registradas
em áudio, fotografias e anotações em diário
de campo. Um estudo bibliográfico e documental complementou a pesquisa,
possibilitando uma maior compreensão dos dados empíricos
e das experiências vividas.
2 Educação, cultura e identidades
A cultura produzida pela humanidade tem sido valorizada
e transmitida, sobretudo, por meio da educação às
novas gerações, para que estas possam usar tais saberes
e incorporá-los à constituição de suas identidades
culturais. Como afirmou Jean-Claude Forquin (1993, p. 10), é incontestável
a relação entre educação e cultura, pois:
[...] se toda educação é sempre educação
de alguém por alguém, ela supõe sempre também,
necessariamente, a comunicação, a transmissão, a
aquisição de alguma coisa: conhecimentos, competências,
crenças, hábitos, valores, que constituem o que se chama
precisamente de “conteúdo” da educação.
Ao discutir a relação entre educação
e cultura, esse autor questiona: “Então o que significa a
palavra ‘cultura’, quando se fala da função
de transmissão cultural da educação?”, para
responder em seguida que, nesse caso, a cultura pode ser considerada “[...]
um patrimônio de conhecimentos e competências, de instituições,
de valores e de símbolos, constituído ao longo de gerações
e característico de uma comunidade humana particular, definida
de modo mais ou menos amplo e mais ou menos exclusivo”. (FORQUIN,
1993, p. 12).
O essencial desse patrimônio cultural, diz Jean-Claude Forquin,
deve ser transmitido pela educação; não pode permanecer
restrito a um determinado grupo social.
A transmissão cultural pela educação põe em
questão a necessidade de seleção dos conteúdos
a serem transmitidos, pois a cultura apresenta uma diversidade de aparências
e de formas. Essa diversidade varia de uma sociedade para outra e não
é idêntica para todos os indivíduos: está submetida
a forças simbólicas diversas. Isso mostra a necessidade
de uma reflexão sobre os critérios utilizados na seleção
dos conteúdos culturais destinados a serem preservados por meio
da educação. Isso porque, segundo Jean-Claude Forquin (1993),
o que é transmitido nas escolas representa uma parte muito pequena
da imagem idealizada de cultura: somente o que tem aprovação
social — e mesmo esta parte, para ser transmitida, precisa de uma
transposição didática. Em outras palavras, a cultura
transformada em conteúdos escolares precisa ser apresentada de
uma forma que desperte o interesse de alunos/as a querer apreendê-la.
Isso posto, cabe ressaltar que não é somente a necessidade
de seleção e transposição didática
que dificulta as relações entre educação e
cultura no mundo contemporâneo; outros valores — como a excessiva
preocupação com o tempo, a velocidade das ações
e a dificuldade de comunicação — também dificultam
a transmissão cultural via educação. As gerações
atuais não valorizam os saberes que podem ser adquiridos com as
experiências vividas por outras gerações. Nessa perspectiva,
J. Larrosa Bondía (2002, p. 23–34) é esclarecedor
quanto a entender por que a experiência deixa de ter seu valor reconhecido
no mundo contemporâneo, ao afirmar que o sujeito moderno a despreza
por falta de tempo. No dizer desse autor:
A velocidade com que nos são dados os acontecimentos
e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo
moderno, impedem a conexão significativa entre os acontecimentos.
Impedem também a memória, já que cada acontecimento
é imediatamente substituído por outro que igualmente nos
excita por um momento, mas sem deixar qualquer vestígio.
Um dos primeiros autores a analisar as mudanças
resultantes da modernidade foi Walter Benjamim (1985, p. 198), ao mostrar
que, com ela, fomos privados da faculdade de “intercambiar experiência”.
Os saberes adquiridos com a experiência eram intercambiados através
das narrativas contadas de uma geração para outra. Para
Walter Benjamin (1985, p. 198), os narradores natos têm como característica
o senso prático: sabem dar conselhos, sugestões, transmitir
um ensinamento. Afirma esse pensador que “[...] o conselho tecido
na substância viva da existência tem um nome: sabedoria.”,
e que o processo que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso
vivo dá “[...] ao mesmo tempo uma nova beleza ao que está
desaparecendo” (BENJAMIN, 1985, p. 201). Walter Benjamin (1985,
p. 201) reconhece que “[...] o saber que vem de longe encontra hoje
menos ouvintes [...]” e está em extinção porque
o homem tem pressa, não pode parar, ouvir o outro e trocar experiências:
o homem tem de acompanhar a velocidade das mudanças. Por causa
da difusão da informação — que já vem
pronta, explicada e rápida —, o ouvinte ou o/a leitor/a não
se envolve com a história ou informação dada, o que
o impede de transformá-la em experiência, em sabedoria.
Retomando Walter Benjamin, Jorge Larrosa Bondía (2002, p. 28) reafirma
que as ações vivenciadas têm que nos tocar, nos transformar
para se constituir em experiência, em sabedoria: “[...] a
vida humana se fez pobre e necessitada, e o conhecimento moderno já
não é o saber ativo que alimentava, iluminava e guiava a
existência dos homens, mas algo que flutua no ar, estéril
e desligado dessa vida em que já não pode encarnar-se”.
O mérito de Larrosa Bondía é trazer o conceito de
experiência benjaminiano para o campo da educação,
isto é, pensá-la a partir do par experiência e sentido.
Ao retomar Walter Benjamin, esse autor afirma que a informação
não se confunde com a experiência: “[...] estar informado
não é saber de experiência, de sabedoria [...]”
(LARROSA BONDÍA 2002, p. 28) . Dito de outro modo, o fato de uma
pessoa estar informada não lhe garante a capacidade de transformar
a informação recebida em conhecimento. Para produzir conhecimento,
é preciso refletir sobre as informações adquiridas,
interagir com elas — numa palavra: dotá-las de sentido. O
sentido da experiência constitui um saber particular, subjetivo:
ainda que duas pessoas vivenciem o mesmo acontecimento, não realizam
a mesma experiência. A experiência é sempre singular,
impossível de ser repetida, e não se separa do indivíduo
que a vive. Para aprender com a experiência de outro, é preciso
revivê-la, torná-la própria.
No entanto, tal como Hannah Arendt (1972, p. 250 apud FORQUIN, 1993, p.
13), Jorge Larrosa Bondía (2002, p. 23–24) afirma que “[...]
a continuação do mundo é uma necessidade absoluta,
que supõe que as novas gerações substituam as gerações
antigas e se reconheçam numa herança”. Portanto, é
necessário reviver as experiências de outros como se fossem
suas. Ainda segundo Jorge Larrosa Bondía (2002, p. 23–24),
“[...] a experiência é o que nos passa, o que nos acontece,
o que nos toca [...]”. Ele ressalta que é preciso “[...]
dar sentido ao que somos e ao que nos acontece [...]” para que as
ações vivenciadas se constituam em experiência e que
isso se faz quando o homem utiliza a palavra para nomear o que sente,
o que vê, o que é. No dizer de Jorge Larrosa Bondía
(2002), nomear o que se faz significa dar sentido à experiência.
Portanto, se o saber da experiência é o sentido ou o sem-sentido
do que nos acontece, então se trata de um saber finito, ligado
à existência de cada pessoa ou grupo social. Este fato revela
ao homem a sua finitude, logo, a necessidade de repassar suas experiências
para as novas gerações (BENJAMIN, 1985; ARENDT, 1972, apud
FORQUIN, 1993).
Prosseguindo, Jorge Larrosa Bondía (2002, p. 25) questiona: “E
como as ações da experiência interferem nas ações
futuras? Como se dá a utilização das idéias,
das experiências vividas, da sabedoria adquirida para ajudar na
aquisição de novos saberes, ou de conhecimentos futuros?”.
Na visão de Walter Benjamin (1985), essa utilização
da sabedoria seria possível se fosse transmitida pelos narradores
às novas gerações: assim, se tornaria uma sabedoria
finita por depender de quem a transmite.
Ao refletir com os autores, remeto-me à problemática central
desta pesquisa, indagando: o que fazer para que o saber da experiência
de assentados/as se perpetue e possa contribuir para que alunos/as da
“Escola Família Agrícola 19 de Maio” construam
novos conhecimentos? Para tentar responder a esta pergunta, compreender
como se dá o intercâmbio entre conhecimentos passados e novos,
recorro ao conceito de experiência de José G. Sacristán
(1999). Segundo esse autor, cada ação traz consigo a marca
de ações anteriores que permanecem nos sujeitos sob a forma
de esquemas interiorizados; cada nova ação incorpora a experiência
passada. Dito de outro modo, pela experiência, esquemas de ação
são interiorizados e, posteriormente, mobilizados nas ações
vividas no presente.
A linguagem tem um importante papel no intercâmbio dos conhecimentos
passados e novos: por meio dela é possível fazer uma retrospectiva
das ações passadas, bem como antecipar experiências
futuras.
Falar sobre a experiência no mundo contemporâneo requer mencionar
a globalização e seus efeitos na educação.
Acerca disso, Antônio F. B. Moreira e Elizabeth Fernandes de M.
M. e Macedo (2002, p. 17) afirmam:
[...] na contemporaneidade o fenômeno da globalização
provoca mudanças na produção e no consumo, contribuindo
para o surgimento de novas identidades. O desenvolvimento da tecnologia
e dos meios de comunicação coloca em contato direto diferentes
tempos e espaços, interconectando áreas geograficamente
distantes em frações de segundos. Os fluxos migratórios
intensificam-se: as pessoas cruzam com freqüência sempre crescente
as fronteiras nacionais. As identidades transnacionalizam-se, hibridizam-se.
As identificações nacionais perdem parte de seu poder e
tornam-se menos relevantes para o processo de construção
de identidades. Desconfia-se cada vez mais da idéia de um eu coletivo
ou verdadeiro. [...] Essa busca de homogeneidade cultural, estimulada
pelo processo de globalização, estimula a busca de padrões
identitários globais.
Essa homogeneidade cultural provocada pelos meios de comunicação
de massa também é observada pelo historiador Michel de Certeau
(1994), para quem a política neoliberal busca sem sucesso —
por meio da globalização, da comunicação em
massa — a unificação de idéias, a produção
de uma identidade una.
Assim, num contexto em que discursos e práticas pedagógicas
referentes a pessoas consideradas diferentes têm a marca do pensamento
dominante, cabe à escola criar condições para que
alunos/as se percebam como indivíduos pertencentes a um determinado
grupo social e se tornem sujeitos no processo de construção
de suas identidades. Para tanto, é preciso que a escola promova
um exame crítico dessas construções discursivas que
revele o funcionamento ideológico da linguagem para alcançar
determinados fins em um dado momento, de acordo com a ideologia do grupo
que a utiliza (ORLANDI, 1996).
Alguns autores defendem o enfoque multicultural/intercultural na educação
como estratégia para se renovar ou produzir novas identidades.
Dentre estes, inscreve-se o nome de Vera Maria Candau (1996), para quem
a pluralidade cultural nos currículos escolares para descolonizá-los
— ao quebrar a composição tradicional e hierárquica
dos conteúdos que lhes compõem — possibilita o diálogo
crítico entre diferentes culturas. Diz essa autora que a educação
intercultural deve ser vista como uma prática social não
redutível a atividades realizadas em momentos específicos
ou somente por determinadas áreas curriculares ou dados grupos
sociais.
Também Ana Canen e Ângela M. A. Oliveira (2002) estudam formas
de descolonizar o currículo: questionando-se pressuposições
discursivas que orientam sua prática e dando voz a pessoas oprimidas,
marginalizadas e sem poder. Para tanto, essas autoras propõem que
se encorajem os/as estudantes a produzirem a própria compreensão
das leituras que fazem, oferecendo-lhes oportunidades para o diálogo
em que se vejam como sujeitos.
No dizer de Tomaz Tadeu da Silva (2001a, p.15), o currículo —
do latim curriculum, pista de corrida — é uma trajetória,
uma viagem, um percurso; currículo é como uma corrida pela
qual os homens constroem sua identidade. E a corrida, por sua vez, é
uma narrativa da vida que relata como, quando, onde, por que e no que
o homem/mulher se tornou, isto é, que relata a história
de constituição da identidade do indivíduo.
Nesse aspecto, o pensamento de Tomaz Tadeu da Silva converge com de Peter
McLaren (2000, citando Stuart Hall, 2001), uma vez que este também
defende a necessidade de se conhecerem as histórias que narram
como as pessoas constituíram suas identidades. O passado então
se torna um ato de recuperação cultural: pela memória,
pelas narrativas, contamos a nós mesmos histórias que são
parte das nossas raízes e com as quais nos criamos, ou pelas quais
constituímos nossa identidade.
No dizer de Peter McLaren (2000), a identidade pessoal está conectada
à coerência da história de vida de uma pessoa; assumir
a responsabilidade de ser o narrador de histórias da própria
vida, além de conferir coerência à vida, também
preserva a identidade pessoal.
A narrativa ganha relevo aqui em virtude de serem tomadas as narrativas
orais de assentados/as como objeto de estudo desta pesquisa. Ao propor
estudá-las nas aulas de Língua Portuguesa da “Escola
Família Agrícola 19 de Maio”, pretendi pôr em
ação um “currículo multicultural” , pois
entendi que, conhecendo, analisando e questionando as narrativas que contam
as histórias do grupo de assentados/as, os aluno/as poderiam, ou
não, conhecer e se identificarem com os saberes e valores de um
grupo sociocultural. Não se trata de folclorizar a cultura dos
sem-terra: apontar-lhe as diferenças e reconhecê-la somente
em momentos pontuais da vida escolar, por ocasião das datas alusivas
ao movimento; mas sim de estudar suas representações para
compreendê-las e valorizá-las, na perspectiva da proposta
intercultural de educação defendida por Ana Canen e Ângela
M. A.Oliveira (2002) e Vera Candau (1996), dentre outros autores.
2.1 Usos e sentidos da linguagem
Como o conhecimento do contexto da enunciação
e a valorização da oralidade no ato da leitura e da escrita
são os objetivos desta pesquisa, foram fundamentais as contribuições
destes autores: Angela Kleiman (2002), Ataliba T. de Castilho (2002),
Dinorá M. Melo, Maria Lúcia de S. Mello e Rita de Cássia
Frangella (2001), Eni Pulcinelli Orlandi (1996), Luiz Antônio Marcuschi
(2001), Magda Soares (2002), Márcia Elizabeth Bortone (1999), Maria
Helena de Moura Neves (2001), Michel de Certeau (1994) e Sônia Kramer
(2001).
Em Michel de Certeau (1994, p. 35), encontrei sustentação
teórica para a idéia de que eu poderia integrar ao currículo
escolar histórias recolhidas entre os assentados e, assim, torná-las
objeto de reflexão de alunos/as:
[...] é preciso interrogar-se sobre os caminhos próprios
tomados pela leitura ali onde se casou com a escrita. [...] somente uma
memória cultural adquirida de ouvido, por tradição
oral, permite e enriquece aos poucos as estratégias de interrogação
semânticas cujas expectativas a decifração de um escrito
afina, precisa ou corrige.
Para Michel de Certeau, a recitação da
tradição oral, o prazer de contar histórias, encontraria
pertinência científica: ao relatá-las as pessoas exerceriam
a arte de pensar.
Aponta Eni Pulcinelli Orlandi (1996) que o espaço de leitura escolar
não leva em conta o fato de que o/a aluno/a convive e opera com
diferentes formas de linguagem na sua relação com o mundo.
Portanto, não se deve considerar a linguagem apenas um meio para
transmitir informação, mas como mediação (ação
que transforma) entre o homem e sua realidade natural e social; nem a
leitura deve ser vista como mera decodificação de letras
ou entendimento do que está evidente no texto, mas como um ato
de compreensão de todo o contexto significado no texto.
Aqui, cria-se uma situação de dependência: se essa
postura pressupõe um/uma leitor/a apto a dialogar com a voz do
autor — de forma a inscrever sua voz no texto —, então
é preciso que o/a professor/a modifique as condições
de produção da leitura do aluno/a — permita-lhe construir
sua história de leituras —, estabelecendo, quando necessário,
as relações intertextuais, resgatando a história
dos sentidos do texto e tomando o cuidado para que não se petrifiquem
as leituras previstas, o que impediria a instauração do
sujeito leitor/a.
Eni Orlandi (1996) sugere a educadores/as uma organização
curricular que instigue o aluno/a para trabalhar sua própria história
de leitura, mediante atividades que desafiem sua capacidade de compreensão
sem deixar de lhe propiciar as condições para que esse desafio
seja assumido de forma conseqüente. A relação da significação
com as condições em que os sentidos foram produzidos é
necessária, afirma a autora, pois essas condições
abrangem o contexto histórico-social, ideológico, a situação,
os interlocutores e o objeto do discurso — numa palavra, fazem o
que é dito ter significado “[...] em relação
ao que não se diz, ao lugar social do qual se diz, para quem se
diz, em relação aos outros discursos, etc.”(ORLANDI,
1996, p. 85).
Ao se colocar como autor, o sujeito estabelece uma relação
com a exterioridade e, ao mesmo tempo, com sua interioridade. Com este
ato, ele pode construir sua identidade cultural e aprender a assumir seu
papel de autor.
Essa reflexão sobre o ensino da linguagem nas escolas leva a autora
a questionar: “A escola, quando ensina a ler, propicia ao aluno/a
condições para que se produza a compreensão? Atinge
o funcionamento ideológico da linguagem?” (ORLANDI, 1996,
p. 116–117). Segundo essa autora, os estudantes precisam aprender
a se constituírem, a se mostrarem e se colocarem como autores,
diante da escola e fora dela, no seu papel social e na sua relação
com a linguagem. Para isso, ela aponta como tarefa importante da atividade
pedagógica propiciar a passagem de sujeito-enunciador para a de
sujeito-autor: levar o/a aluno/a conhecer a natureza do processo dessa
“passagem”; no “aprender a escrever”, o/a aluno/a
experimenta práticas que lhe permitem dominar os processos textual
e discursivo, nos quais deixa sua marca e se constitui — vale dizer,
sente-se — como autor/a.
E como conhecer o processo textual e discursivo?
Ângela Kleiman (2002) busca em Vygotsky as estratégias de
leitura, porque compreende que a aprendizagem é construída
na interação de sujeitos cooperativos, com objetivos comuns:
leitura e compreensão. Para ela, é “[...] na prática
comunicativa em pequenos grupos, com o professor/a ou com seus pares,
que é criado o contexto para que, quem [alunos/as] ainda não
entendeu o texto, o entenda”. (KLEIMAN, 2002, p. 10). Nessa visão
do processo de leitura como um conjunto de estratégias, ensinar
a ler consistiria na modelagem de estratégias metacognitivas e
no desenvolvimento de habilidades verbais subjacentes aos automatismos
das estratégias cognitivas — passiveis de serem eliminados
pelas diversas análises textuais. Tal modelagem se traduziria na
reprodução das condições que dão ao
leitor flexibilidade, independência, intencionalidade e capacidade
de compreensão, de predição, de fazer inferências,
de relacionar o tema ao contexto, de perceber a intenção
que está subjaz os textos, de reflexão e de fazer escolhas.
Com estas atividades, Ângela Kleiman (2002) acredita ser possível
orientar alunos/as para uma leitura em relação ao contexto,
conscientizando-os sobre os usos — e abusos — da linguagem.
Na opinião dessa autora, o/a professor/a pode — e deve —
mediar o contato entre aluno/a, texto e autor/a: fornecer-lhes as pistas
necessárias para que encontrem as marcas lingüísticas
presentes no texto, levantem hipóteses, percebam a forma como o
texto foi construído e, assim, possam instaurar um interdiscurso
com o autor/a. Para Ângela Kleiman (2002), esse tipo de prática
faz a leitura retomar sua condição de prática social;
nela, leitor/a se coloca como sujeito, e não como objeto de ensino,
e passa a perceber também o/a autor/a como sujeito.
No trabalho com a leitura e escrita é importante considerar as
orientações de Ataliba T. de Castilho (2002, p. 21) que
defende a inclusão da língua falada nas práticas
escolares porque, em muitos casos, alunos/as não procedem de um
meio letrado. Nesse caso, segundo esse autor, cabe à escola “[...]
iniciar o aluno valorizando seus hábitos culturais, levando-o a
adquirir novas habilidades desconhecidas de seus pais”. Aqui, a
base para a reflexão gramatical será o conhecimento lingüístico
de que os alunos/as dispõem ao chegarem à escola: a conversação.
Para Ataliba T. Castilho (2002), a língua adquirida com a família
deve orientar os estudos da linguagem por ser mais autêntica, propícia
à identificação e construção de identidade.
Ao ver considerado na escola seu modo de falar, o/a aluno/a poderá
ser sensibilizado para a aceitação da variedade lingüística
que flui da boca do outro e, com o tempo, saberá escolher a variedade
adequada a cada situação. Segundo Ataliba T. Castilho (2002),
constituiria-se, assim, a formação lingüística
adequada ao cidadão de uma sociedade democrática. Para ele,
as reflexões gramaticais devem inicialmente valorizar uma abordagem
funcional da linguagem.
A esta abordagem funcional da linguagem — defendida por Ataliba
T. Castilho (2002), Maria Helena de Moura Neves ( 2001) e por Sônia
Kramer (2001) —, somam-se as idéias defendidas por Luiz Antônio
Marcuschi (2001, p. 9), sobretudo de que o uso é o que funda a
língua. Para ele, “[...] falar ou escrever bem não
é ser capaz de adequar-se às regras da língua, mas
é usar adequadamente a língua para produzir um efeito de
sentido pretendido numa situação”. Aqui, trata-se
da intenção comunicativa: saber como se chega a um discurso
significativo não pelo emprego de formas, mas pelo uso adequado
das práticas, e à situação a que se destina;
uma análise de usos e práticas sociais, e não de
formas abstratas.
Marcuschi (2001) salienta a necessidade de as relações entre
oralidade e escrita não serem tratadas de forma estanque e dicotômica.
Sua proposta é trabalhar essas relações no contexto
de práticas educativas e dos gêneros textuais, concebidos
dentro de um quadro de inter-relações, por meio de atividades
variadas de retextualização de práticas lingüísticas
cotidianas.
Para esse autor, retextualizar é transformar o texto falado em
texto escrito, ação cujos critérios não são
dados pela gramática, mas pelo contexto da interação.
São critérios comunicativos, conforme os fundamentos da
perspectiva lingüístico-interacionista — para a qual
são os usos que fundam a língua, e não o contrário.
Isso porque a retextualização não é um processo
mecânico: envolve operações complexas que interferem
tanto no código como no sentido; vai além da simples regularização
lingüística — dados os procedimentos de interpretação,
substituição, reordenação, ampliação
ou redução do texto e as mudanças de estilo, desde
que não atinjam as informações como tal. Poderá
haver mudanças de conteúdo, mas estas não devem atingir
o valor-verdade dos enunciados.
Segundo o autor, antes de passar para outra modalidade o que foi dito
ou escrito por alguém , é preciso compreender o que este
alguém quis dizer para evitar problemas no plano da coerência
durante o processo de retextualização, ocorrendo assim uma
atividade cognitiva: a compreensão. Portanto, a proposta de retextualização
de textos orais em textos escritos além de ser utilizada para trabalhar
a produção de textos, também pode ser utilizada para
o trabalho da leitura e compreensão.
Embora a transformação textual promovida pela atividade
de retextualização exclua critérios gramaticais,
ela exige procedimentos próprios da língua escrita. Nesse
caso, como tem sido a atuação da escola no que se refere
a munir alunos/as com recursos que os permitam executar essa atividade
com mais aptidão? Aqui cabe considerar estudos desenvolvidos nesta
área, como os de Dinorá M. Melo, Maria Lúcia de S.
Mello e Rita de Cássia Frangella (2001). Após investigarem
as relações estabelecidas entre leitura e escrita desenvolvidas
na escola, essas autoras questionam se a escola propicia a alunos/as oportunidades
de escrita nas quais construam o texto como autor; e se a sala de aula
está se constituindo em espaço de narrativas onde as vivências
são partilhadas, de forma a possibilitar a troca entre /as e professores/as
que permitam às práticas de leitura e escrita se tornarem
experiências.
Se a leitura, como quer Eni P. Orlandi (1996), é uma atividade
de produção social, no dizer de Sonia Kramer (2001), a escrita
é uma prática social,
Ainda no dizer de Sônia Kramer (2001), a escrita do texto deve remeter
à escrita da história; alunos/as e professores/as devem
ser leitores dos próprios textos que escrevem, para se conhecerem,
compreenderem o que ficou escrito neles, pois a escrita desempenha um
papel central na constituição do sujeito.
Sônia Kramer (2001) defende a leitura e a escrita como uma das modalidades
de experiência cultural que também deveriam ter na escola
lugar assegurado. Segundo ela, a melhor forma de aprender a ler e escrever
é a própria experiência — ler e escrever; mas
isso não dispensa a orientação segura do/a professor/a.
Compreender a importância da escrita como experiência significa
constituir-se e permanecer além do seu tempo através da
própria escrita.
3 Os Narradores/as e suas histórias; os/as professores/as
e os/as alunos/as
Com base nas entrevistas feitas com moradores/as do assentamento,
foi possível verificar que entre eles/elas as atividades de leitura
e escrita são mínimas: estão restritas às
realizadas na escola — para os que a freqüentaram. Constatei
que no assentamento a oralidade é a principal forma de interação,
tanto nas relações informais como em reuniões da
associação dos assentados.
Os dados coletados através das entrevistas mostraram que as histórias
da cultura popular e histórias relativas à vida cotidiana
— em geral relativas a suas experiências como empregados/as
em fazendas ou como bóias-frias, ou ainda ao MST — compõem
o imaginário de assentados/as. Os entrevistados contam histórias
tradicionais e clássicos da literatura infantil como Chapeuzinho
Vermelho e Branca de Neve. As tradicionais — sobre lobisomem, mula-sem-cabeça
ou assombração — foram narradas em diferentes versões.
Outras histórias de encantamento compõem o imaginário
popular do grupo de assentados/as e foram rememoradas por outras contadoras.
Nestas histórias estão presentes os dualismos: o bem e o
mal, o príncipe e a plebéia, a bruxa e o anjo, o alfinete
encantado, a cabaça e outros.
Contaram também uma versão diferente do clássico
infantil João e Maria — nesta versão, os personagens
recebem o nome de José e Maria. É uma bela versão,
bem mais verossímil e bem brasileira, pois nela o pai das crianças
deixa-os na floresta porque “vai caçá mel numa cabaça”.
A adaptação à realidade brasileira também
aparece em trechos como “a véia tava fazeno beju” e
“quando foi um dia, ela feiz bolo. Feiz bolo de mandioca puba”.
Além das histórias do imaginário popular, foi notável
entre moradores/as do assentamento a preferência por contar suas
histórias da vida cotidiana. Dentre as histórias da vida
que ficaram gravadas na memória, alguns/algumas relembraram a educação
rígida dos pais. As narrativas das condições injustas
impostas aos trabalhadores rurais foram constantes.
A vida difícil vivida no trabalho do campo e as agruras da época
de acampamento pelas estradas até conseguirem a terra almejada,
também, foram relembradas. Relataram-me, com orgulho, as lutas
e a resistência do grupo, justificando o direito à terra
conquistada e esperando de filhos/as tanto o reconhecimento quanto a valorização
e a continuidade do trabalho de pais/mães na preservação
e prosperidade dos bens.
Narradores como D. Clarice Rosa, Sr. Calu, Dona Delvina e Dona Lucilene
comprovam a permanência de alguns narradores benjaminianos nos tempos
modernos. Estes narradores do assentamento utilizam-se da sabedoria das
experiências vividas para repassarem-nas à nova geração
através das narrativas de suas vidas ou em forma de conselhos,
conforme Benjamin(1985), que aponta a importância das narrativas
como forma de intercambiar os saberes. Ver se esta parte fica aqui ou
no final
Constatei que os moradores/as do assentamento são oriundos de diversas
regiões brasileiras como o norte de minas, são paulo, mas
a maioria dos assentados é da bahia. pude perceber a importância
que os assentados/as dão às narrativas ao utilizarem-nas
como forma de transmissão de suas raízes, sua cultura. estes
moradores/as narram suas histórias como forma de preservar suas
origens e a identidade do grupo.
3.1 Colegas professores/as
Por acreditar que o trabalho com a pluralidade cultural
se dá pela ação, pela tentativa de levar a efeito
iniciativas que contribuam para descolonizar o currículo (TOMAZ
T. DA SILVA,1996 b), expliquei a monitores/as da escola a proposta para
a escola seria recolher histórias orais entre moradores/as do assentamento
a fim de estudar a linguagem. Com isso, eu esperava contribuir para que
filhos/as de assentados/as conhecessem e valorizassem a cultura de seu
grupo sociocultural e, ainda, colaborar com a professora de Língua
Portuguesa no ensino desse idioma de forma situada e funcional.
Os monitores/as falaram sobre a escola e se mostraram engajados na PA,
como mostram suas falas:
Ele [aluno/a] vai juntar a prática com a teoria
na escola da maneira correta. [...] Então a Pedagogia da Alternância
prima pela formação humana. É diferente da escola
normal, preocupada em passar informações. Nós aqui
não formamos cidadãos que saibam criticar e que aceitem
críticas. [...] Então a Pedagogia da Alternância prega
muito isso, a direção na sala de aula, a convivência
com o vizinho como forma de aprendizagem, a conversa com o líder
da comunidade. (MONITOR DE HISTÓRIA, GEOGRAFIA E FILOSOFIA).
Realizei vários encontros com a monitora de Língua
Portuguesa para conhecer sua prática, seu ponto de vista sobre
a forma de trabalhar com língua, suas dificuldades no dia-a-dia
da sala de aula — enfim, para nos conhecermos melhor e estabelecermos
as bases da experiência que seria realizada conjuntamente, tão
logo eu encerrasse o registro de histórias de assentados/as.
3.2 Alunos/as da Escola Família Agrícola
19 de Maio
Em agosto de 2002, iniciei minhas atividades entre alunos/as
da Escola Família Agrícola 19 de Maio. Entrevistei os/as
alunos/as da 1a série do ensino médio a fim de conhecê-los,
ouvir suas histórias e verificar se conheciam as histórias
que me foram contadas por seus/suas pais/mães.
A turma era formada por sete alunos e três alunas, com idade entre
15 e 18 anos. Alguns/mas mais calados/as falaram pouco sobre histórias
do imaginário popular, histórias de assentados/as, de suas
próprias vidas e sobre a escola; outros/as falaram à vontade:
contaram-me sobre suas vidas, seus sonhos e demonstraram maior conscientização
política. Além disso, foram amáveis e receptivos
à minha presença na escola.
Verifiquei ser pouco comum no assentamento a prática de contar
histórias, o que contrariou uma expectativa inicial. Tal fato confirmou
o pensamento de Walter Benjamim (1985), Jorge Bondía Larrosa (2002)
e Jean-Claude Forquin (1993): o saber acumulado pelas pessoas antigas
não é valorizado pela nova geração por causa
da preocupação das pessoas em acompanhar a velocidade das
informações e a capacidade de manipulá-las. Isso
faz crer que a velocidade e a informação — valores
característicos da modernidade — tenham influenciado também
as comunidades rurais. E, embora tenham sido mencionadas algumas histórias,
estas não coincidiam com as que me foram contadas pelas mães.
Alunos/as preferiam contar piadas e casos engraçados mais atuais.
Na minha opinião a maior causa de as pessoas não
se interessarem nessas histórias é a televisão. Ela
ocupa todo do tempo, principalmente à noite que é a hora
em que a família está reunida..Aqui mesmo no Assentamento
antes de ter energia, televisão, minha família ia nas casas
dos amigos e vizinhos. Cada dia um recebia a visita e conversava um tempão,
mas hoje não se faz mais isso. (Aluno ERB)
Nas declarações de assentados/as, pude perceber
a forte presença da televisão, a dominar e massificar a
vida cotidiana das pessoas como efeito da globalização —
difundida e defendida pela política neoliberal, sobre a qual alertam
Peter McLaren (2000), Antônio Flávio Barbosa Moreira e Elizabeth
Fernandes de Macedo (2002), bem como Michel de Certeau (1994). Tal efeito,
segundo Maria da Glória Gohn (2000), incide também nas fronteiras
entre o rural e o urbano; isso porque já não é possível
entender o mundo rural sem referenciá-lo ao urbano: os hábitos
do campo passaram a ser os mesmos da cidade, e a tradição
já não é de interesse do jovem do campo, que deseja
agora acompanhar o ritmo e os valores da modernidade.
4 As ações da experiência
A organização do trabalho na escola com
alunos/as se pautou na divisão das histórias recolhidas
em histórias da cultura popular e histórias da vida . No
que se refere às entrevistas, a transcrição —
segundo a perspectiva assumida por esta pesquisa — procurou ser
fiel à forma de expressão dos/as contadores/as de histórias
para não descaracterizar os aspectos identitários relevantes:
aqui, a fala é vista como fator de identidade. Isso significa dizer
que os textos orais recolhidos entre assentados/as, e entregues a alunos/as
para serem retextualizados, foram transcritos com características
peculiares da linguagem oral, tais como repetição de elementos,
redundância informacional, sintaxe fragmentária, marcadores
freqüentes, hesitações, correções etc.
No dizer de Luiz Antônio Marcushi (2001, p. 51), “[...] o
texto oral transcrito perde seu caráter originário e pessoal
e passa por uma neutralização devido à transcodificação
[...], à passagem da expressão oral para a expressão
escrita, porque esta transcrição já é uma
primeira compreensão do texto oral”. Para que haja fidelidade
à qualidade da produção oral, pode-se fugir ao padrão
ortográfico no plano da expressão escrita e evitar a pontuação
— nesse caso, adota-se uma série de convenções
de transcrição.
No entanto, diz esse autor, não há um sistema rígido
nem uma fórmula ideal e neutra para transcrição do
texto oral, pois esta depende das intenções de quem vai
analisá-la e do uso que será feito das transcrições.
Para alcançar os objetivos propostos as minhas atividades na escola
foram desenvolvidas em diferentes momentos de trabalho entre agosto e
dezembro de 2002.
No primeiro encontro com alunos/as, em agosto, eu e a professora de Língua
Portuguesa da EFA resolvemos trabalhar com as narrativas sobre lobisomem
e mula sem-cabeça, dadas as comemorações ao mês
do folclore. Iniciamos o trabalho falando sobre os índices culturais
presentes no assentamento e a importância de se resgatar, preservar
e valorizar a cultura popular. Apontamos as histórias orais como
um exemplo de tais índices e ressaltamos a importância de
se retransmiti-las — para que o narrador benjaminiano não
desapareça com a modernidade.
Num segundo momento, propusemos a leitura e compreensão das histórias
tradicionais da cultura popular — como a do lobisomem e da mula-sem-cabeça
—, e as várias versões recolhidas entre assentados/as
foram analisadas, comparadas, completadas e retextualizadas; também
foram tomadas como objeto de reflexão sobre intertextualidade:
analisamos as causas de desaparecimento dessas histórias —
que compõem o imaginário popular — entre novas gerações
e alternativas para recuperá-las e transmiti-las.
A continuidade ao trabalho de leitura e compreensão de histórias
do imaginário popular do grupo de assentados/a se pautou na identificação
de características da linguagem oral, de forma que alunos/as compreendessem
a importância do contexto histórico e as condições
de enunciação no ato da fala. Para desenvolver o estudo
da linguagem oral, foram realizadas atividades de retextualização
, conforme orientações de Luiz A. Marcuschi (2001). Assim,
ao produzirem textos escritos com base nas narrativas orais, alunos/as
parafrasearam e recriaram as histórias lidas, atividade em que
se constituíram como autores/as.
Durante as atividades de retextualização do texto oral para
o texto escrito, a orientação era para que alunos/as tentassem
perceber características dos elementos da narrativa — em
especial, a composição das personagens em relação
ao contexto, a criação do ambiente das narrativas, a posição
do narrador etc. Enfim, procuramos fazê-los perceber a estrutura
da língua e suas variações em situação
funcional e real, num diálogo com narradores/as.
Além dessas atividades, havia programado trabalhar com as histórias
da vida em 2003 — as histórias da vida cotidiana de assentados/as.
O planejamento feito para o estudo previa a leitura e compreensão
daquelas partes das entrevistas indicativas de uma ligação
com o MST. São depoimentos que — assim entendia eu —
permitiriam levar alunos/as a refletirem sobre o contexto de enunciação
e o funcionamento ideológico da linguagem (ORLANDI, 1996).
O planejamento incluía ainda — como finalização
do trabalho com alunos/as — uma reflexão sobre a constituição
das identidades cujo objeto era o depoimento de um aluno ou uma aluna.
Eu acreditava que isso levaria alunos/as a refletirem sobre suas origens
e a se conscientizarem de que são sujeitos de sua própria
história. Infelizmente, tais atividades não foram realizadas:
a EFA 19 de Maio foi fechada em dezembro de 2002, por causa de problemas
financeiros .
4.1O trabalho com as narrativas na “EFA 19 de Maio”
De início, alunos/as não mostraram encantamento
pelas histórias recolhidas entre os assentados/as; não acreditavam
nelas e preferiam contar e ouvir piadas, casos engraçados e assistir
a programas na televisão. Isso contrariava a hipótese inicial
da pesquisa: as narrativas de assentados/as despertariam a atenção
de alunos/as por representarem a origens deles/as e o contexto em que
estão inseridos . Isso talvez resulte do fato de que a contextualização
de um conteúdo se dá muito mais pelo sentido produzido por
ele do que pela identificação com o grupo sociocultural
que o produz; o que me leva a aventar a possibilidade de utilizar atividades
de retextualização das histórias recolhidas no assentamento,
também em outros contextos educativos.
A análise das retextualizações mostrou que alunos/as
eram capazes de identificar a estrutura narrativa: os textos resultantes
mostraram seqüência cronológica e de idéias.
Nas atividades de retextualização, souberam contextualizar
e encadear as idéias eliminando marcadores conversacionais —
palavras que indicam ou retomam a vez de falar; retirar recursos paralingüísticos
— dentre os quais, pausas, risos, entonação, hesitações
e repetições.
As variantes lingüísticas — como trepô, home,
muié, jueio, eu tava, ocei, eze — e aglutinações
morfológicas — cum medo, pros vizinho —, freqüentes
na oralidade de determinadas regiões, foram adequadas à
língua escrita conforme a norma-culta.
Alunos/as utilizaram a descrição para caracterizarem tanto
o espaço quanto as ações e a composição
de personagens,
Alguns/mas alunos/as mostraram autoria na produção de textos
ao mudar o contexto da história contada e recontá-la numa
mistura de humor e ficção, como que a remetê-la à
realidade local. As personagens tradicionais da história do lobisomem
são substituídas por outras, numa alusão satírica
a um dos professores da escola. Em outra história, um aluno inova
ao deixar o final em aberto.
Alguns textos retextualizados mantêm a natureza dialógica
das narrativas orais, o que demonstra bom uso do discurso direto. Já
em outros, alunos/as inseriram um narrador ou se tornaram narradores-personagem.
Verifiquei, na conclusão da análise dos textos retextualizados,
que estes foram facilmente compreendidos por alunos/as, o que demonstra
familiaridade deles/las com o referente — constituído pelo
contexto e pelas histórias que compõem o imaginário
popular. Também fica evidente que tais histórias não
foram totalmente esquecidas e ainda integram o imaginário da nova
geração — embora alunos/as tenham verbalizado preferência
por outros tipos de histórias e que não cultivavam o hábito
de contar aquelas da cultura popular. Isso posto, se faz necessário
então incentivar esse hábito, para que os narradores benjaminianos
continuem a repassar a ouvintes de novas gerações a experiência
contida em histórias dessa natureza e evitar, assim, o desaparecimento
delas.
No fim do primeiro momento de estudos com alunos/as na EFA, foi possível
vislumbrar resultados positivos no trabalho com as histórias da
cultura popular: alunos/as procuravam relembrar as histórias, a
época em que as ouviram e, também, contavam e comentavam-nas
com professores/as de outras disciplinas, conforme me afirmou uma professora.
Estes exemplos apontam que a proposta de ensino da língua na perspectiva
textual discursiva pode propiciar a usuários/as da língua
a formação necessária para compreenderem textos lidos
e interagirem com eles ao produzirem os próprios textos, mostrando-se
como sujeitos autores/as. Estes são fins objetivados pelo ensino
da Língua Portuguesa em muitas escolas brasileiras.
5 Considerações Finais
Constatei que as histórias que compõem o
imaginário cultura dos assentados/as se dividem em dois grupos:
no primeiro, há as histórias da cultura popular: narrativas
sobre assombração, mula-sem-cabeça, lobisomem e as
que retratam dualismos: o bem e o mal; príncipe e plebéia;
bruxa e anjo etc. São narrativas primordiais: falam das crenças,
dos costumes e dos comportamentos do povo que as gerou. No segundo, há
as histórias de vida, relatos sobre experiências difíceis
vividas quando trabalhavam nas fazendas ou na época em que estavam
acampados e lutavam pela conquista da terra.
Alguns pais/mães afirmaram terem repassado as histórias
a filhos/as; outros/as disseram não ter contado devido à
influência exercida pelos meios de comunicação de
massa como a televisão, que modificam hábitos e interferem
no convívio familiar. Os/as jovens entrevistados/as não
se lembravam dessas histórias e declararam que preferiam conversar
sobre outras narrativas — como piadas, novelas etc. — a ouvir
tais histórias; embora todos/as se lembrassem dos conflitos e das
dificuldades enfrentadas na luta pela conquista da terra. Na verdade,
as histórias da vida foram as que ficaram retidas na memória
de todos/as. Constatei que as histórias da vida são narradas
à moda benjaminiana — o saber sendo transmitido à
nova geração com a esperança de contribuir para a
formação dos filhos/as, educando-os/as para a vida.
Durante o desenvolvimento desta pesquisa, o trabalho realizado na EFA
com alunos/as do primeiro ano do ensino médio mostrou ser uma alternativa
possível para um ensino que busque resgatar a historicidade do
grupo e promover um estudo efetivo da linguagem funcional.
Durante as retextualizações os/as alunos/a foram orientados
para perceberem as características tanto da linguagem oral como
as da linguagem escrita, para que descobrissem a propriedade de cada uma
delas e o momento de utilizá-las.
Alunos/as mostraram-se mais atentos ao uso da linguagem, procuraram perceber
e representar a historicidade de narradores/as; ao mesmo tempo mantiveram
as características do gênero narrativo na produção
de seus textos.
Como propõem, um ensino da língua em que haja a valorização
tanto da linguagem oral quanto da escrita, o resgate da historicidade
dos/das enunciadores/as, aliado ao ensino da língua portuguesa
de forma funcional e prático e à ajuda do/da professor/a
(mediador/a), fizeram alunos/as sentirem como funcionam a estrutura da
língua e as variações em situações
reais de uso, embora não tenha sido possível analisar as
histórias de vida de assentados/as de forma que pudesse levar alunos/as
a ter visões diferentes do grupo. Isso porque — acredito
—, através dessas histórias, veriam o outro, mas,
ao mesmo tempo, veriam a si mesmos. De qualquer modo, ao ler, comentar
e escrever sobre as histórias da cultura popular, pude propiciar-lhes
uma volta às suas origens e às de seu grupo.
Quanto aos jovens estudantes da EFA, apesar de reconhecerem e valorizarem
a modernidade, com suas diferentes histórias, hábitos e
valores, através das entrevistas e pelas atividades de leitura
e retextualizações pude perceber que a nova geração
conhece as histórias que compõem o imaginário cultural
do grupo de assentados/as tal a naturalidade com que caracterizaram o
espaço, os personagens e suas falas características das
regiões de suas origens, enfim, os narradores e suas narrativas.
Percebi também que os alunos se identificavam com o grupo de assentados/as
ao valorizarem a luta pela Terra, a escola e, como seus pais, a esperança
de um futuro melhor ali, na terra conquistada.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
BORTONE, Márcia Elizabeth. Processos de Letramento e as Condições
Sociais da Linguagem. In: ______. (Org.) Linguagens e Educação.
São Paulo: Editorial Cone Sul, 1999. 125-139p.
CANDAU, Vera Maria. Pluralismo Cultural, Cotidiano Escolar e Formação
de Professores. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA
DE ENSINO, 8., 1996, Rio de Janeiro.Anais... Rio de Janeiro: PUC, 1996.
p. 295-303.
CANEN, Ana; OLIVEIRA, Ângela M. A de. Multiculturalismo e currículo
em ação: um estudo de caso. Revista Brasileira de Educação,
ANPEDE; Autores Associados, n. 21, p. 67-74, set/out/nov/dez 2002.
CASTILHO, Ataliba Texeira de. A língua falada no ensino de português.
São Paulo: Contexto, 2002.
(Repensando o Ensino).
CERTEU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
FORQUIN, Jean-Claude. Escola e Cultura: as bases sociais e epistemológicas
do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
GIMENO SACRISTÁN, J.. Poderes Instáveis em Educação.
Porto Alegre: Artmed, 1999.
GOHN, Maria da Glória. Mídia, terceiro setor e MST: impacto
sobre o futuro das cidades e do campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
KLEIMAN, Angela . Oficina de Leitura: Teoria e Prática. Campinas,
SP: Pontes, 2002.
KOCH, Ingedore Villaça. A inter-ação pela linguagem.
São Paulo: Contexto, 2001.
KRAMER, Sonia. Da sala de aula à construção externa
da aula. In: ZACCUR, Edwiges (Org.). A magia da linguagem – Leitura
e escrita como experiência – notas sobre seu papel na formação.
Rio de Janeiro: DP&A: 2001. p.101-121.
LARROSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber
de experiência. Revista Brasileira de Educação, ANPED;
Autores Associados, n. 19, p. 20-29, jan/fev/mar/abr 2002.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização.
São Paulo: Cortez, 2001.
MCLAREN, Peter. Multiculturalismo Crítico. São Paulo: Cortez;
Instituto Paulo Freire, 2000.
MELO, Dinorá Machado; MELLO, Maria Lúcia de Souza; FRANGELLA,
Rita de Cássia. Memórias da Roda – Na Roda da Memória.
In: KRAMER, S.; OSWALD, M. L. (Org.). Didática da Linguagem: Ensinar
a Ensinar ou Ler e Escrever? Campinas, SP: Papirus, 2001. p.143-161.
MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa; MACEDO, Elizabeth Fernandes
de. Currículo, identidade e diferença. Porto: Porto Editora,
2002.
NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática na Escola. São Paulo:
Contexto, 2001.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e leitura. Campinas, SP: Cortez; Editora
da Universidade Estadual de Campinas, 1996. (Coleção passando
a limpo).
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade – Uma introdução
às teorias do currículo. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2001 a.
SILVA, Tomaz T. da. Descolonizar o currículo: estratégias
para uma pedagogia crítica. Dois ou três comentários
sobre o texto de Michel Apple. In: COSTA, Marisa V. (Org.) Escola básica
na virada do século: cultura e currículo. São Paulo,
1996 b.
SOARES, Magda. Linguagem e Escola – Uma perspectiva social. São
Paulo: Ática, 2002.