Paula
Clarice Santos Grazziotin - Universidade do Planalto Catarinense –
UNIPLAC
Caracterizar
o operário de serraria da cidade de Lages/SC, foco deste trabalho,
implica, basicamente, recuperar sua origem, pois o homem e sua linguagem
são o resultado de sua origem e de sua história de vida.
E este homem tem ascendência direta no caboclo. Sendo assim, é
preciso buscar a herança cultural e de linguagem deixada a estes
indivíduos por este homem da zona rural. O povo caboclo da região
do planalto catarinense começou a se formar no século XVII,
com a chegada dos tropeiros, que iam de São Paulo em direção
ao Rio Grande do Sul para comercializar gado e necessitavam de pousos
onde pudessem se restabelecer da dura viagem e engordar o gado, que perdia
muito peso. A isso se junte a solidão, já que a vasta extensão
de terras do sul do Brasil não era ainda povoada senão pelos
índios nativos da terra, que não eram amistosos.
E foi devido a esta falta de povoamento que, em 1767, Antônio Correia
Pinto fundou o povoado “Nossa Senhora dos Prazeres das Lagens”,
no local onde atualmente é a cidade de Lages, com intenção
de proteger dos invasores castelhanos o território paulista, anexo
ao planalto.
Note-se que o Brasil já era colônia portuguesa há
mais de dois séculos e meio e, embora o povoamento fosse incipiente
em Lages, o povo brasileiro já começava a se formar no sudeste,
com as misturas de raças e de línguas. Portanto, entre as
pessoas que chegaram ao planalto serrano, havia mestiços, mulatos,
mamelucos e cafuzos.
A história de vida destes indivíduos campesinos, segundo
Maria Janete Vanoni , tem a marca do isolamento, mantido por uma soma
de fatores geográficos e políticos que os afastou da escola
e lapidou sua mentalidade conservadora, onde o conhecimento acumulado
do grupo é passado dentro do próprio grupo e se mantém
quase que inalterado através das gerações.
A cultura e o modo de vida de um povo refletem-se na linguagem deste povo.
O português caboclo – que posteriormente serviu de base ao
linguajar dos operários das madeireiras – além do
histórico que delineou suas formas através dos tempos, também
se situa num contexto cultural que foi definitivo no processo de sua construção.
E reflete a baixa escolaridade dos falantes, seu conservadorismo e a pouca
aceitação de possíveis mudanças que marca
a cultura do camponês lageano: uma linguagem permeada de arcaísmos,
desprovida de estrangeirismos, neologismos e gírias.
A grande inovação do linguajar e na mentalidade do operário
da madeireira em relação a seus antepassados caboclos encontra-se,
justamente, no abandono deste conservantismo. Esta característica
se explica na formação desta classe social operária,
que se deu, na região de Lages, repetindo um padrão que
se verificou tanto no Brasil como no resto do mundo ocidental e acompanha,
portanto, o desenvolvimento histórico da classe operária:
o êxodo rural na busca da autonomia, da estabilidade e do conforto.
Conforme Mário Maestri , na Europa, ao final da idade média,
os servos deixavam os feudos para trabalhar nas cidades incipientes, onde
abundava a procura pela mão-de-obra pouco qualificada. Da mesma
forma no Brasil, no século XX, com a industrialização,
muitos camponeses rumaram para as cidades, pois vislumbravam um futuro
promissor nas oportunidades que nelas surgiam. Entretanto, ao abandonar
o ambiente rural, onde viviam isolados e onde se inseriam numa cultura
secular e ao se dirigirem à zona urbana, depararam-se com um ambiente
hostil, onde foram marginalizados por suas origens e pela pouca ou nenhuma
instrução que lhes limitava as oportunidades.
Da mesma forma, na região de Lages, o grupo social dos trabalhadores
de madeireiras repete o padrão, guardadas as devidas proporções.
O processo de formação desta classe acompanhou o desenvolvimento
econômico da região que tem como uma das bases mais fortes
a indústria da madeira.
A indústria madeireira lageana se desenvolveu em ciclos –
períodos em que seu funcionamento é intenso para beneficiar
a matéria-prima abundante e atender a demanda de mercado. Tal característica
se deve ao fato de que, inicialmente, o processo era uma atividade quase
exclusivamente exploratória, que se servia inconseqüentemente
do pinheiro araucária disponível em grande quantidade na
mata nativa. Assim, os ciclos da economia acompanhavam os ciclos naturais
de maior ou menor abundância de araucária nos campos da região.
Naturalmente, a disponibilidade do pinheiro foi diminuindo e, ameaçada
a espécie de extinção, sua extração
tornou-se crime ambiental (Lei 9605/98). Por isso, o terceiro ciclo da
madeira que se desenvolve em Lages atualmente, caracteriza-se pela exploração
de um outro tipo de pinheiro, do gênero Pinus, oriundo de reflorestamentos.
Socialmente, entretanto, esta característica não exerce
influência na caracterização do grupo, pois o operário
de serraria ainda apresenta as mesmas origens e características
do operário do começo do século XX, época
em que as serrarias começaram a prosperar.
Assim, trata-se de uma classe formada pelo êxodo rural que a prosperidade
da economia da madeira provocou. O serviço da serraria não
requer mão-de-obra qualificada e, em épocas de abundância
de oferta de emprego, a oportunidade é tentadora para o homem do
campo que trabalha arduamente e colhe apenas a subsistência como
fruto do seu trabalho. Portanto esta mudança do ambiente rural
para o urbano é um ato motivado pela ambição do indivíduo
campesino em melhorar sua qualidade de vida.
A cultura e o modo de vida do operário transparecem em seu falar.
Um mergulho nas entrelinhas de sua linguagem revela um cidadão
que vive uma situação conflituosa entre suas origens e suas
ambições.
Um misto da linguagem dinâmica urbana e do conservantismo rural
constroem o falar destas pessoas que formam uma classe social que já
está longe demais do campo para ser rural, mas que não se
inseriu na cidade o suficiente para ser urbana. Já se acostumou
em ir à boate no sábado à noite e a jogar futebol
e tomar cerveja com os amigos aos domingos.
/ Ah eu di veiz im quandu, ah, eu saiu, dumingu à noiti, sábadu
à noiti, sempri geralmenti saiu cu meus colega. Vô nu...
nu salão, voltu./
No trecho acima é interessante observar que ele se refere aos companheiros
como “colegas”, ainda que esteja falando das pessoas que moram
próximas à sua casa e com quem convive semanal ou diariamente.
A palavra “colegas” integra-se ao léxico do operário
da serraria e denota que, embora ele nutra simpatia pela pessoa, não
confia nela. Esta malícia de não trazer para dentro da família
pessoas estranhas integra seu lado citadino. Por outro lado, chamar a
boate de “salão” é um traço típico
da zona rural, onde as festas costumam acontecer no salão da igreja
local.
O fato de morar próximo da madeireira e relacionar-se quase exclusivamente
com os colegas de trabalho e vizinhos do seu bairro é indicativo
de que eles têm uma vida mais movimentada que no campo, mas isolamento
inerente ao cotidiano do campo foi substituído pelo elemento urbano
da marginalização. Aqui, é necessário situar
geograficamente este homem na cidade, e tanto a madeireira onde trabalham
quanto suas residências localizam-se próximas ao aeroporto
de Lages, na BR-282. Ou seja, eles vivem fora do perímetro urbano
e ali estruturam suas vidas, suprindo suas necessidades dentro do possível.
Assim é difícil dizer que pertencem à cidade, caso
se observe que só a visitam raras vezes. Identifica-se aí
sua posição social e geográfica de marginalidade.
É por não pertencer ao meio rural nem ao urbano que se pode
afirmar que o operário da serraria é um indivíduo
em transição, a personificação de um conflito
causado pela busca de identidade. Ao sair do campo, ele abriu mão
dos dois alicerces que sustentavam sua cultura – o conservantismo
e o isolamento – para abraçar novos paradigmas: os da realidade
urbana.
O conflito dos indivíduos deste grupo social vem do fracasso de
sua tentativa de inserção no meio citadino. Em vez de abandonarem
o campo para progredir na cidade, trocaram o isolamento pela marginalização.
Seu diferencial em relação ao homem do campo é que
este não tem contato com a dinamicidade da cidade, enquanto ele,
o operário, mesmo não tendo acesso à maioria das
facilidades do meio urbano, tem noção delas: conhece a moda,
as novidades da música, a tecnologia, as tendências do mundo,
a mídia – e são estes os objetos de seu desejo.
A própria figura do operário comunica que ele é um
homem em busca de afirmação. Veste-se, fala e se diverte
seguindo padrões que o identifiquem como um homem urbano e o distanciem
da figura do caboclo. Ele não é um “jeca” e
faz questão de esclarecê-lo; luta contra a estigmatização.
Sua preocupação com a aparência é uma das faces
do processo de aculturação, pois os indivíduos logo
percebem que seu aspecto define o primeiro julgamento que os outros farão
dele.
Este fato se reflete no que é possível chamar de negação
da aparência. Durante o trabalho, todos trajam roupas já
bastante estragadas pelo serviço pesado diário dependendo
do dia ou situação até sujas. Além disso,
usam o “sapatão” – calçado preto de material
resistente que a madeireira lhes fornece, a fim de que poupem seus próprios
calçados. Durante as entrevistas, ficou evidente sua preocupação
com a aparência e a impressão que esta causaria, pois antes
de entrar na sala onde estavam sendo realizadas as entrevistas, eles arrumavam
os cabelos e sacudiam a poeira das roupas e sapatos na intenção
de apresentar-se decentemente à pesquisadora e à câmera.
A fala mostra este comportamento como quando, solicitado a descrever a
sua vestimenta, um informante respondeu: / Meu Deu du céu... (começa
a contar nos dedos) tô di sapatão, calça suja, camiseta
suja, buné, i não to muitu cherosu (ao terminar a descrição
estava com as faces rubras)/. A interjeição que inicia a
sentença e o ato de listar os itens mostra que ele acredita estar
causando má impressão, por uma soma de vários pontos
negativos. O emprego do eufemismo, associado ao rubor das faces, revela
o constrangimento ante a situação. A preocupação
com seu cheiro ainda mostra que ele tem noção de que a higiene
também é um elemento essencial para que seja uma pessoa
respeitável.
Ao mesmo informante foi perguntado como ele descreveria sua própria
roupa caso a conversa fosse por telefone, ao que respondeu: /Ah, eu não
ia falá qui era essa né! Eu ia falá otra coisa diferenti,
né! (...) Não, claru né, si ocê mi perguntassi
come qui cê ta vistidu, digu ói, tô mei sujinhu, né,
daí já (abre os braços num gesto que pode indicar
que seria tratado com estranheza ou desprezo)... Não, tá,
intão si fossi uma cunversa pur telefoni, eu digu, não,
eu tô, tô di calça di isqueitista né... sapatu...
tô di camisa, buné... i bem cherosu/ (enrubesce novamente).
Aqui o operário mostra que tem consciência da supervalorização
da aparência no meio citadino – que se opõe diretamente
ao paradigma do campo, onde as pessoas conhecem muito umas às outras
e os julgamentos são feitos com base em outros parâmetros,
como a família a que pertence e as atitudes que toma dentro do
grupo social – e que o seu aspecto não supre as exigências
do meio, o que o frustra.
Ao deixar o campo e ingressar no universo urbano, o indivíduo se
obriga a ressignificar vários elementos. O vestuário, por
exemplo, deixa de ser um item utilitário com função
de cobrir o corpo de modo adequado ao clima e assume uma carga de expressão
da identidade.
O contato com a moda revela ao operário que sua aparência
comunica. A pesquisa mostrou que a vestimenta mais admirada pelos informantes
é a calça de skatista, Isto ocorre porque a calça
simboliza o que há de mais urbano e mais moderno. Além disso,
é estrangeira. Evidentemente, os operários desconhecem o
esporte e a sua história. Mas, mesmo assim, espelham-se nos skatistas,
imitando seu vestuário, pois conhecem a significação
que comunicam através dele: um homem urbano, descontraído,
desenvolto, criativo, moderno.A figura do skatista personifica a identidade
que a classe operária ambicionou assumir quando do êxodo
rural.
Desde a saída da zona rural, estes operários já viveram
muito, moraram em muitos lugares e trabalharam em ramos diferentes. São,
contudo, histórias que mantém a marca da marginalização
desde o momento da saída do campo. Não são protagonistas
de vidas confortáveis e tranqüilas, nem se destacam como vitoriosos
na escalada social. São homens que seguem o rumo que a oportunidade
lhes oferece, pois não têm escolha.
E, apesar de poucas as oportunidades que a cidade lhes fornece, o interesse
pelo estudo é comum a vários dos operários. Tanto
que a serraria onde trabalham os sujeitos desta pesquisa mudou seu horário
de funcionamento para que eles tivessem possibilidade de estudar. O grau
de interesse, porém, geralmente se limita a aprender a ler, escrever
e fazer contas – como um deles relata, orgulhoso, que está
aprendendo nas aulas particulares: /Só queru memu é sabê
lê memu direitu, sabi. É, inda não sei issu direitu.
Issaí é as dificudadi aí pra mim. Conta tamein, tô
meiu... meiu ruim. Daí eli (refere-se ao professor) cumeçô
naqueli negóciu di ba-be-bi-bo-bu, aquelas coisa, sabi? Daí
achu qui eu cumecei a lê achu qui pur causu dissu, né, pur
causu dus ditadu qui eli falô... qui elis fazi, né, us ditadu
p’cê i fazendu as palavra. Eli passa: Palavra tal! Copie!...
daí... eu iscrivia lá né... i aí eu acertei
já né. I conta tamein, até di milhão já,
milhões, eu sei fazê já. Graças a Deus tô
sabendo./
A baixa escolaridade e as parcas oportunidades de emprego a que têm
tido acesso desde a infância, culminaram num saldo baixíssimo
– senão zerado – de produção intelectual
ao longo da vida. Segundo Isilda Campaner Palangana , “se o fundamento
da humanidade está no trabalho, o entendimento do homem e, por
decorrência, do seu psiquismo implica na apropriação
da atividade, desse mesmo homem, em seu caráter produtivo”.
As experiências de vida relatadas pelos operários mostram
que o fruto de seu trabalho, ao longo da vida, tem sido predominantemente
braçal.
A falta de exercício das faculdades intelectuais resultou num atrofiamento
involuntário de sua capacidade de abstração na mesma
medida em que o excessivo esforço físico tornou-os homens
fortes e condicionados para o serviço bruto.
A dificuldade em verbalizar o abstrato evidenciou-se no momento em que
foram solicitados a descrever seu trabalho. A insuficiência da comunicação
verbal precisava, muitas vezes, ao longo da conversa, do auxílio
dos gestos. Apesar disso, ainda, muito da informação não
pôde ser compreendida devido à parca explicação:
(...) /Mútipla, é tipu duma circular né... aí...
bota a cerca lá... a tábua lá pra mim i eu... passu
né... E também: Aqui eu trabalhu na impilhadera. Chega tora,
pega, ah, carrega as carreta di ixportação, isvazia as du
freti... u... é... usado as máquina, né, pra... qui
nein diz u causu, pra não forcejá tantu, né... /
O mesmo informante, solicitado a descrever a máquina a que se referia,
respondeu: /Ah, tô cum vergonha/. Aparece aí a consciência
de sua limitação. Sobre os assuntos concretos – contar
histórias, informar número de filhos que possui, com quem
mora e o que faz durante o dia – ele falou com desenvoltura. Entretanto
verbalizar em cima de uma informação abstrata é um
exercício árduo para ele.
O emprego da expressão /qui nein diz u causu/, bem como sua variante
/nu causu/, típicas do falar lageano, foi recorrente durante as
entrevistas, sempre em momentos em que sentiam dificuldade em se expressar,
como um mecanismo de defesa. Com elas, o operário transfere para
o senso comum a responsabilidade sobre a pertinência do que vai
dizer – como se dissesse: “não sou eu quem está
dizendo isso, é um ‘causo’ que se conta por aí”.
São recursos de que ele precisa para suprir a dificuldade de explicar
como funciona a máquina que ele opera, já que ele não
raciocina para realizar o trabalho: sua função é
desenvolvida maquinalmente.
Durante as entrevistas, a linguagem empregada por eles ia variando, pois,
conforme se descontraíam, iam relaxando também na fala e,
ao comentar assuntos com os quais se sentiam à vontade, logo aparecia
o uso da gíria. A gíria, bem como o neologismo e o estrangeirismo,
são fenômenos que caracterizam a dinamicidade da língua.
Para Leo Marcos José da Silva , a gíria é um elemento
criado no interior das tribos urbanas e por elas difundido. O falar urbano
é recheado destas expressões, pois se desenvolve num meio
onde as mudanças se dão naturalmente. O uso da gíria
acaba caracterizando a tentativa de sair das margens e se inserir no seio
da sociedade. Ela se encontra em diversos momentos das amostras de fala
coletadas, como em: /.tevi qui güentá as ponta; sinão
não agüenta u repuxu; sê um cara rico; ...trocandu uma
idéia; ... eu curtu muntu é som; batenu um papu; entre outros./
Seu gosto musical é outro elemento curioso. Muitos dos entrevistados,
ao serem indagados sobre a preferência musical, responderam que
preferiam o estilo “discoteque”. Quando solicitado que explicassem
de que se tratava, não conseguiam, pois para eles o nome do estilo
é auto-explicativo. Somente após alguma insistência
foi possível depreender de sua fala que se tratava da música
eletrônica, comum às casas noturnas. Assim como a calça
de skatista, a música dance é uma novidade que os ajuda
a se identificar como homens urbanos e atentos às novas tendências
no mundo.
A nomenclatura utilizada, porém, é velha. “Discoteque”
é o nome de um fenômeno musical que surgiu EUA, nos anos
70. Este estilo foi o embrião da música eletrônica
atual. Aqui o emprego de uma terminologia em desuso mostra dois aspectos
da realidade do operário da serraria. Primeiro, um resquício
da tendência conservadora no falar, que mantém expressões
em desuso, em vez de empregar uma palavra mais moderna. Segundo, a falta
de contato com o linguajar adequado. Viver nas franjas da sociedade lhes
limita de certa forma o contato com as novidades e o que se passa no centro
da cidade – ele fica sabendo, mas mais tarde.
Paralelamente, quase todos os informantes responderam também ter
preferência pela música sertaneja, que é quase paradoxal
em relação à música eletrônica, porque
é um estilo que consiste em músicas típicas do interior
e cuja temática transita entre letras melosas de amor e de ufanismo
à vida caipira. Os informantes indicavam sua preferência
entre os cantores deste estilo: / Escutu muntu música. (...) Ah,
um Zezé di Camargo i Lucianu, um Leandru i Lionardo. E ainda: Zezé
di Camargu? Opa! Sô fã!(...) Daniel, Leonardu... (...) Riu
Negru i Solimões.../
É possível associar a preferência por estes cantores
a uma questão de identificação com o ídolo.
Zezé di Camargo, Luciano, Leonardo e Daniel, entre outros, são
exemplos de pessoas que saíram da zona rural e alcançaram
o sucesso na cidade cantando suas origens. O operário de serraria
que deixa o campo para trabalhar na cidade quer trilhar o mesmo caminho:
mudar de vida e enriquecer, sem abrir mão de sua identidade.
A ambigüidade no gosto musical mostra a ambigüidade do próprio
homem da madeireira. Confuso, vive na fronteira entre dois mundos e busca
se adaptar e pertencer a algum lugar. Dança a música urbana
na casa noturna sábado à noite e ouve Zezé di Camargo
e Luciano no almoço de domingo com os pais.
/Eu gostu di música dênci. Tein nu Coral, nu centru, na Presidenti
Vargas, Portuga’s, tem u Portal, u Aeru, u Éden... um monti,
beim legal. (...) Não, até di veiz im quando uma veiz o
otra assim, né, pa genti não ficá sempi nu mesmu
ritmu, né, di veiz im quandu, quandu meu pai i minha mãe
vai lá im casa, aí já gosta duma musiquinha mais
(referindo-se à musica sertaneja, gesticula balançando a
mão no que pode indicar que se trata de uma música mais
leve) aí eu botu peles iscutá.. / Evidencia-se neste trecho
da fala do indivíduo que a música sertaneja é associada
aos pais, o que pode, metaforicamente, significar as suas origens. Quanto
à música eletrônica, está ligada à vida
que leva na cidade grande e é com certo ar orgulhoso, conforme
mostra o registro visual da entrevista, que ele assume uma atitude compreensiva
em relação aos seus pais que não ouvem a música
da moda.
Em /um monti, beim legal/ vê-se seu fascínio pelas oportunidades
que o ambiente urbano lhe oferece, com várias opções
de diversão. Ele lista, satisfeito, as casas noturnas que freqüenta,
como que solicitando o respeito da entrevistadora. Novamente o recado:
ele não é um jeca.
A narrativa das histórias sobrenaturais por parte dos operários
se mostrou um elemento forte dentro da sua cultura. As lendas e os mitos
que fazem parte de uma determinada cultura revelam muito sobre o grupo
social que neles crê, pois são recursos de autodefesa que
os indivíduos utilizam para explicar o desconhecido. Para Marilena
Chauí , “os mitos são mais do que uma simples narrativa;
são a maneira pela qual, através de palavras, os seres humanos
organizam a realidade e a interpretam”. Assim, os causos apareceram
como um legado deixado pelos seus antepassados caboclos, de quem também
herdaram a crença incondicional na veracidade da história
e o temor aos seus personagens fantásticos.
Indagou-se a todos os informantes se se recordavam de alguma história
sobrenatural do tempo em que viviam no campo, onde este tipo de narrativa
é muito comum. Embora alguns tenham ficado inibidos em contar,
todos lembraram de causos curiosos, que foram revelados, como este:
/Até na minha família tein u’a história qui
é meiu... é mei, assim comé qui eu possu dizê...
difícil di acriditá mais é verdadi. (...) Eu possu
contá. Não, assim, ó, a minha... a minha... tataravó
nu causu, qui (indica com um gesto que já faz muito tempo que o
fato aconteceu) né, ela... daí tinha u meu, u meu tiu né,
qui era tiu du pai, não, tiu du vô, tiu du pai, né,
é longi né, daí ela, diz qui ela dava mamá
pru meu tiu di noiti nu... nu causu nu seiu... i nu otru seiu tinha u’a
cobra qui mamava... Ãrram! Diz qui daí um dia, um dia u...
maridu dela tava, tava saindu pa trabalhá i achô a cobra,
i a cobra tava saindu du quartu dela, assim, daí diz eli “ué,
mais qui será essa cobra?”. Daí um dia eli chegô
mais cedu im casa, daí a... a mulher, eli trabalhava di guarda
di madrugada né, daí a... a... nu causu a minha vó,
tava tava durmino né, e diz qui a cobra tava mamandu nu seiu dela.
Urrum! Daí diz qui eli pegô a cobra i cumeçô
a jogá nas paredi i coisarada... daí matô a cobra!
Daí eli mato a cobra i interrô atráis du, atráis
du... da casa né, nus fundu. Daí diz qui di noiti a cobra
vem assombrá a... a minha vó. I ela nunca viu qui era, qui
ela vinha mamá neli. P’cê vê, é u’a
coisa difícil di acriditá, né, mai é verdadi.
(...) Ela já morreu né, mais us, us qui subéru da
história qui contu né. Na casa vein (a cobra, assombrar
até hoje). Diz qui vein. Ãrram. (...) Ah é... Diz
qui, tudu mundu diz qui... qui agora tevi... é puqui essa casa
foi alugada né, i tudu us qui vão mora daí, parenti
né. As veiz falu qui di veiz im quandu dá uns baruiu assim
tipu di cobra correndu pela casa, assim, coisarada, i quase ninguém
pára lá... É, é difíci di acriditá,
mais... é verdadi! Pelu menu mi contaru né... Eu achu qui
é verdadi. Ma num ium minti u’a coisa dessa daí. Sein
mais nein menus./
O mais surpreendente é a fé do indivíduo na veracidade
da história. Sua atitude é ingênua, pois ele acredita
sem contestar, mesmo admitindo que para isso precisa contrariar a razão.
Esta atitude aparece na sua fala em momentos como o último trecho,
onde ele diz que seus antepassados “não iam mentir uma coisa
dessas” e nas exclamações: “é verdade!”;
“ãrram!”.
O absurdo da história é evidente. Certos trechos são
mesmo incoerentes, como a referência ao “barulho de cobra
correndo pela casa”. Veja-se ainda a atitude do avô, quando
viu uma cobra saindo de dentro do quarto e, em vez de tomar alguma atitude,
simplesmente ficou intrigado com a cena.
Além disso, o informante diz que o seu avô trabalhava como
guarda noturno, o que é improvável já que ele morava
no sítio. E disse também que o avô matou a cobra,
jogando-a contra a parede, o que contraria o costume dos caboclos da região
de matar a cobra acertando na cabeça dela um pedaço de madeira.
Aparentemente ele utilizou elementos da sua própria realidade para
suprir as falhas da história, a fim de torná-la verossímil
e interessante.
Note-se ainda que, antes de principiar a narrativa, ele mostra uma necessidade
de validar o que vai dizer. O operário introduz seu causo afirmando
que entende que se trata de uma história em que é difícil
acreditar, mas que mesmo assim merece crédito. Utiliza argumentos
como informar que foram pessoas da sua confiança que a contaram.
Entende que a história é absurda demais, porém não
estaria sendo transmitida por tantas gerações de sua família
se não fosse verdade. Além disso, até hoje se ouve
barulho na casa.
Na pesquisa realizada esta fala introdutória de validação
do causo foi recorrente, pois todos os informantes a empregaram como recurso
para garantir verossimilhança à narrativa e credibilidade
ao narrador.
Entretanto também se identifica claramente que, embora eles próprios
não duvidem, não assumem compromisso com a veracidade do
que contam. Isto se evidencia, na narrativa acima, no uso de sentenças
como “pelo menos me contaram” e “os que souberam da
história é que contam” e, principalmente, pelo uso
exagerado da expressão “diz que”, comuníssima
na região.
O “diz que” é uma muleta herdada do falar caboclo que
os falantes lageanos utilizam para introduzir uma informação
cuja procedência não foi verificada. É uma espécie
de linguagem impessoal que permite dizer qualquer coisa, sem precisar
atribuir a responsabilidade de seu teor a ninguém. É o sujeito
indeterminado à lageana.
E esta postura de não confirmar o que diz apareceu até mesmo
na fala de um operário que contou duas histórias sobre si
mesmo. Surpreendentemente, nem assim ele quis certificar a pesquisadora
da informação, justificando que no primeiro causo –
sobre uma assombração que aparecia à noite para ele
e a mãe – era criança e não se lembrava bem.
No segundo – a respeito de um gato preto que ele viu sobre uma árvore
– poderia ter sido uma visão causada pelo medo de andar sozinho
no mato à noite.
Tem-se nesta atitude outra faceta do processo de urbanização,
porque mostra que ele se habituou com o descrédito aos seus causos
trazidos da infância campesina. É a sua condição
de marginalidade novamente. A fé que ele tem na verdade do que
está contando é evidente – como se vê nas exclamações
que o traem nos momentos em que está mais envolvido com o enredo
– mas, mesmo assim, ele faz questão de maquiar sua crença,
para que não seja considerado ingênuo.
A existência paradoxal do homem da serraria aparece em cada aspecto
da sua vida. Se em relação aos causos que ouvia no sítio
ele é crente, sobre as histórias fantásticas que
aprendeu na cidade ele não mostra ter tanta certeza. O mesmo informante
que contou a história reproduzida acima, comentou que conhece a
história da serpente do tanque – uma lenda secular da região
cuja origem se confunde com os primórdios da cidade de Lages. Seu
comentário em relação à lenda, no entanto,
foi de pouco caso: /Diz né, mais diz us antigu, mais issu aí
as veiz é, é só mitu, é só... é
só lenda/. Demonstra assim que ele não valoriza as lendas
da cidade da mesma forma que às do campo. Isto tem a ver com o
modo como lhe foram passadas as histórias, pois, no meio rural,
elas são contadas como verdade, enquanto que, no meio urbano, já
se transmitem sob a denominação de lendas – terminologia
que ele faz questão de empregar.
Por tudo isso, os operários de serraria de Lages formam uma classe
social sui generis. Este grupo não se parece com nenhum outro,
é formado a partir de circunstâncias históricas e
econômicas próprias. Seguindo o instinto humano de luta pela
sobrevivência, estas pessoas vivem a seu modo, lançando mão,
para isso, dos parcos recursos a que têm acesso.
O homem da serraria quer se inserir no núcleo da sociedade urbana.
E se, para isso, ele precisa mudar a sua fala, a sua roupa ou sua preferência
musical já não lhe importa. Isso porque todo o seu cultural
já passou por um processo de desconstrução e reconstrução
tão significativos desde a saída do campo que ele agora
só busca a estabilidade, mesmo que seja na periferia, contrariando
sua expectativa inicial de encontrar prosperidade na cidade.
A estigmatização do operário de serraria, seja por
sua fala ou sua aparência, portanto, é, no mínimo,
atitude preconceituosa. Se ele utiliza uma variante lingüística
que foge ao padrão culto da língua, se sua figura reflete
a imagem de pessoas com baixo poder aquisitivo ou que não veste
o mesmo que o homem citadino, é porque a contingência os
fez assim. Os trabalhadores de serraria integram um grupo social, com
características e cultura própria, pelo que merecem ser
valorizados e respeitados como seres humanos e sociais e como portadores
da cultura de seu grupo. Construída e gestada no interior do próprio
grupo.