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  A BOLSA AMARELA: UMA LEITURA CONTRACORRENTE

Maria Celinei de Sousa Hernandes (Faculdades Integradas de Urubupungá FIU)

A idéia de um trabalho com o livro A bolsa amarela (Lygia Bojunga Nunes, 1988), com alunos de 5ª e 6ª séries , surgiu a partir da constatação do crescente número de leituras de livros e livros. Poderia qualquer professor, inocentemente, achar que isto fosse motivo de alegria, afinal, os alunos estavam lendo. No entanto, não era, tratava-se de motivo de preocupação. Então, o que estava faltando? O que era motivo de preocupação? A resposta é simples: a preocupação existia porque os alunos estavam lendo sim, mas somente livros de qualidade suspeita.
Sobre leituras em quantidade, Marta Moraes da Costa (2004, 120), afirma que a escola tem perseguido o objetivo de criar o “hábito” de ler, bancário, quantitativo, colorido e repetitivo. Na ânsia de atender o que considera o gostar da leitura – traduzido por rir, não ser incomodado, não ter muito trabalho mental – professores têm se limitado a espessuras convidativas, a ilustrações figurativas e carnavalescas no excesso de cores, a textos que se preocupem, sobretudo, em ensinar o já sabido ou o trivial e em divertir sem questionar.
A imposição, durante muito tempo, da leitura realizada pelas escolas e a sociedade gerou uma aversão ao gênero literatura. Esta se tornou uma atividade enfadonha. Supondo estar atenuando este problema, atualmente, muitos professores, seduzidos pelas editoras, investem na divulgação do incentivo da leitura de livros que não trazem nenhuma dificuldade ao leitor. Esta atitude, aparentemente, atenua a aversão dos alunos em relação à leitura. No entanto, esta não é a melhor saída, porque não exigi nenhum esforço mental, nem crítico, basta que os alunos estejam sentados e lendo passivamente.
A maioria dos livros preferida pelos alunos da 5ª e da 6ª séries eram manuais de instruções que reproduzem modelos da sociedade, da infância e da adolescência, indicam receitas de como fazer isto ou aquilo, dão dicas de como lidar com a aparência, com o sexo oposto, com os amigos... Livros que se tratam de diversão descartável para consumo maciço, que moldam comportamentos conformistas e sufocam o espírito crítico e questionador .
Ana Maria Machado, (1999. p. 60) afirma: se não desejamos que se perpetue um sistema de dominação da criança, é mais seguro tentar lhes oferecer livros que tenham mais a ver com a arte do que com o ensino, com formulação de perguntas, do que com a imposição de respostas. Pois quanto mais livre de estereótipos, mais qualidade estética, mais libertária será uma obra. A criação artística procura caminhos de inconformidade e ruptura.
Na verdade, grande parte da população só vai se tornar leitora se tiver contato com bons livros que lhes despertem a curiosidade e sejam desafiadores. É imprescindível que a escola incentive a leitura de literatura. Se a literatura de ficção, na sua globalidade, deflagra a experiência mais ampla da leitura, sua presença no âmbito do ensino provoca transformações radicais, que podem levar o leitor a posicionar-se diante uma ideologia dominante que o queira domesticar.
Para Regina Zilberman (1993, p. 19), a literatura de ficção avulta como o modelo por excelência da leitura. Pois sendo uma imagem simbólica do mundo que se deseja conhecer, ela nunca se dá de maneira completa e fechada, pelo contrário, sua estrutura, marcada pelos vazios e pelo inacabamento das situações e figuras propostas, reclama a intervenção de um leitor, o qual preencha estas lacunas, dando vida ao mundo formulado pelo escritor. Deste modo, à tarefa de deciframento se implanta outra: a de preenchimento, executada particularmente por cada leitor, imiscuindo suas vivências e imaginação.
Diante do contexto de leitura dos alunos e assumindo as aulas de leitura com estas turmas, aos poucos, sugeri que lêssemos um livro juntos. Disse-lhes que gostaria de ler um livro que já havia lido a algum tempo e havia gostado: A bolsa amarela . Os alunos gostaram da idéia, afinal, eles só precisariam ouvir o que eu leria para eles. No entanto, logo com as primeiras leituras, o clima começou a esquentar. Eles perceberam que não se tratava de uma leitura linear e que teriam pensar para assimilarem o mundo narrado por Raquel e as outras personagens da história: os galos Terrível e Afonso, o alfinete bebê, a família de Raquel, a tia Brunilda, a guarda-chuva, Lorelai e sua família e outros, que permeiam a narração, agindo sutilmente e deixando suas marcas na história da menina Raquel.
A tônica do projeto para o fomento da leitura pautou-se na preocupação com a qualidade do livro e do ato de ler. Durante a leitura do livro, a todo instante, tomamos cuidados para que não se tornasse massificante. O objetivo era de que a leitura do livro fosse uma semente para a busca de outras leituras de textos literários.
A curiosidade, instalada em cada parada da leitura para ser prosseguida no próximo encontro, foi um dos meios utilizados para que a leitura se tornasse prazerosa. Com o decorrer da leitura, os alunos passaram a se interessar por outros livros da autora, que também foram utilizados por eles para a produção de suas histórias. Em seus livros promoveram encontros das personagens do livro A bolsa amarela com os de outros livros da Lygia Bojunga: um encontro entre Raquel e Alexandre (A casa da madrinha, 1978), do galo Terrível com o Pavão também de A casa da madrinha, De Angélica , a personagem central de um livro do mesmo nome, com as personagens da bolsa.
Na medida em que leitura prosseguia, os alunos foram se interessando por algumas maluquices da história, assim como eles mesmos diziam. Começaram, então, os questionamentos sobre: o relacionamento instalado entre personagens humanas, animais e objetos; como os fatos aconteciam; a linguagem usada pela narradora; sobre as três vontades de Raquel (ser grande, ser homem e ser escritora)...
Instalou-se na turma uma distância entre o que era lido por eles e o texto de Lygia Bojunga. A esta distância Hans Robert Jauss (1994, p. 31), chama de distância estética, aquela que, segundo ele, medeia entre o horizonte de expectativa preexistente e a aparição de uma nova obra – cuja acolhida, dando-se por intermédio da negação de experiências conhecidas ou da conscientização de outras jamais expressas, pode ter por conseqüência uma mudança de horizonte.
Tratando-se de uma obra bastante distinta das comumente lidas pelos alunos, pensávamos que haveria desinteresse pelo fato de Raquel não apresentar o estilo das crianças modeladas nos livros lidos por eles. Foi um engano, pois em diversos momentos, com a leitura de determinados fatos vividos pela menina Raquel, surgiam discussões acaloradas sobre família, universo adulto, visões de mundo, futilidades, todas situações vividas por Raquel. Noutros momentos, instalava-se um silêncio denunciador de interrogações que por certo não quisessem compartilhar com ninguém.
Para elucidar esta questão nos reportamos à afirmação de Jauss, (1994, p. 59), de que em uma obra literária, a escolha do herói não é aleatória, o herói tipifica o padrão comunicativo de uma identificação esteticamente mediada. Os heróis se definem, portanto, não apenas por suas ações, mas pelas respostas desencadeadas no público, razão pela qual vêm a constituir o fio teórico escolhido pelo leitor.
Entendemos que os nossos leitores se identificaram com a personagem central Raquel, quanto aos seus anseios, medos, questionamentos. A identificação ocorrera num nível mais profundo, o dos sentimentos, anseios e sensações.
Nos livros que trazem relatórios sobre a vida diária de adolescentes, a identificação também pode ocorrer, no entanto, não é profunda como no caso da literatura que mexe com os sentimentos. As identificações proporcionadas em A bolsa amarela, causam reflexões para uma a posterior identificação, que parte do interior dos leitores para a conquista do mundo exterior. O aluno-leitor vivenciou momentos de introspecção que o levou a experimentar uma leitura que provoca sentimentos, avessa às posturas conformistas e submissas que muitos livros propõem. Esta leitura privilegiou os padrões de integração situados não nas normas transmitidas, mas sim nas reações provocadas pelo comportamento das personagens. A relação de Raquel com o mundo que a cerca, seus desgostos, desejos, crenças, dúvidas, sutilmente serviram como estímulo para que seus leitores realizassem questionamentos.
Por meio da socialização da leitura, percebemos como aconteceram os estranhamentos e como os espaços vazios deixados na história foram sendo preenchidos de formas bastante distintas. Cada aluno que falava sobre alguns temas abordados, apresentava uma opinião diversa da dos colegas. Isto nos mostrou que cada indagação ou participação diferia, de acordo com as vivências e leituras de cada um. Houve aquele que questionou mais sobre a família, outro sobre os desejos da menina, outro sobre a condição feminina... Estes questionamentos diferentes proporcionaram riqueza à leitura socializada do livro. O leitor, na medida em que lê, se constitui, se representa, se identifica. A questão da compreensão não é só do nível da informação. Faz entrar em conta o processo de interação, a ideologia. (Magda Soares, In Zilberman & Silva, 1991). E aqui falamos de ideologias subjacentes às leituras realizadas a partir de um mesmo texto que se multiplicou em vários textos, de acordo com as leituras realizadas por cada aluno.
Após a leitura do livro os alunos se reuniram em grupos e produziram textos que se tornaram livros. Citamos alguns exemplos: A bolsa amarela: como tudo começou – conta a história de como a bolsa amarela pode ter sido produzida: seu tecido, suas costuras, suas amizades anteriores...; Pensamentos costurados – trata-se da história de um cachorrinho que tinha pensamento costurado e foi parar na casa dos consertos, onde conheceu a família de Lorelai; As compras de tia Brunilda –apresenta a história de tia Brunilda, antes de se casar e de como ela era tratada pelas crianças na escola onde estudava; Uma ilha diferente – conta sobre o relacionamento do galo Terrível e da linha que costurava seu pensamento, do casamento dos dois e dos galinhos que nasceram; As penas de Terrível – conta as aventuras das duas penas que o galo Terrível perdera na praia antes de fugir para o mar; As aventuras de um alfinete bebê – trata-se das aventuras vividas pelo alfinete bebê que vivia na bolsa amarela, nesta história ele consegue ajudar um garotinho que fica preso em um hospital, porque seu irmão ciumento o trancara; Meu diário amarelo – é um livro, no qual as autoras juntaram a idéia de diário e a história de Raquel e de Alexandre e escreveram um diário para Raquel que conta como ela se encanta com a coragem da personagem Alexandre de A cada da madrinha.
A quantidade de títulos produzidos é maior, no entanto, ficaria muito extensa se citássemos todos neste trabalho. No entanto, é preciso deixar exposto que o maior número de histórias foi sobre o alfinete bebê que vivia na bolsa de Raquel, embora não entendamos o porquê destas escolhas. Os meninos preferiram escrever sobre aventuras, casos a serem descobertos; já as meninas preferiram escrever histórias de amor, ciúmes, amizade relacionadas a esse personagem.
Corremos o risco de influência da leitura de um colega se impor a do outro, o que pode ter ocorrido diversas vezes. No entanto, percebemos que isto não foi o suficiente para desmerecer o exercício de leitura socializada e da escrita dos textos que se seguiram. Pelo contrário, serviu como incentivo para a produção e pronunciamento e troca de questionamentos que diferiam de acordo com a vivência e conhecimento de mundo de cada aluno.
Promover a leitura de A bolsa amarela foi mais que oferecer aos alunos condições para a formação do hábito de leitura foi oferecer uma leitura significativa e não conformista, incultida de padrões e comportamentos infanto-juvenis. A bolsa amarela sugere significações diversas que podem ser assimiladas pelo leitor, de acordo com o seu nível de amadurecimento-leitor. Ler este livro significou também ter acesso a uma série de questionamentos sublinhares que percorrem todo o texto.
Ler A bolsa amarela tornou-se uma leitura contra a corrente, por oferecer aos alunos a oportunidade de conhecer, interagir com um texto avesso à mesmice, porque se trata de um texto que provoca, causa estranhamentos, desperta curiosidade, rompe com esquemas, abre caminhos, propõe audácias de linguagem e leitura.
Não pensamos na proibição da leitura do livro de entretenimento, dos diários, dos seriados. Nada disso, cada um pode ler o que gosta. O que nos chamou a atenção foi o fato desses livros serem os únicos lidos por nossas crianças nas escolas. É imprescindível que eles também leiam e em maior quantidade, textos criadores, que tragam o prazer de pensar, interrogar, sonhar, ligar-se com o resto da humanidade, textos que brinquem com a sonoridade das palavras, que aproximem conceitos díspares, que desenvolvam a inteligência e o espírito crítico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JAUSS, H. R. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994.

LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1994.

MACHADO, A. M. Contracorrente: conversas sobre leitura. São Paulo: Ática, 1999.

NUNES, L. B. A bolsa amarela. Rio de Janeiro: Agir. 1988.

PEREIRA. R. F. & BENITES, S. A. L. À roda da leitura: língua e literatura no jornal Proleitura. Assis: Cultural Acadêmica, 2004.

ROSENFELD, A. Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva. 1985.

ZILBERMAN, R. & SILVA, E. T. da. (org.) Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1991.

ZILBERMAN, R. (org.) Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

 
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