Francilda Araújo Inácio (CEFET/PB)
Álvares de Azevedo se sobressai no contexto do Romantismo brasileiro
por buscar transpor limites, questionando amarras impostas por preceitos
literários em voga. Significativa parte de sua obra demonstra que
ele não se limitou a relacionar-se com o objeto literário
tão somente pela via da representação, mas realizou
uma crítica da linguagem poética romântica, refletindo
a sua composição de forma consciente e sistematizada. O
fato de assumir esteticamente o receituário dos ultra-românticos
e seus traços, como o subjetivismo, o egocentrismo e o sentimentalismo,
não o impediu de, a certa altura, colocar-se à frente de
seu tempo questionando tal receituário e propondo claramente mudanças
estéticas.
Mesmo tendo aderido ao cânone romântico, tematizando a mulher,
o amor e a morte, utilizando, para tanto, os recursos disponíveis
naquele momento estético, Álvares de Azevedo sabia da precariedade
de tais recursos a ponto de rir deles. Através da atitude auto-irônica,
o escritor romântico em vários momentos de sua obra transforma-se
num crítico consciente da linguagem de que se serve, mediante uma
prática literária que se autoquestiona, questiona a ficcionalidade,
privilegiando a si própria como auto-representação.
Esse fenômeno vem caracterizar fundamentalmente uma literatura que
recusa a ilusão dominante na literatura tradicional durante séculos:
o objeto que o poeta diz não é independente da linguagem
que o formula. Assim, a linguagem já não traduz a realidade,
e sim cria uma nova.
A proposta de dissipação do “mundo visionário
e platônico”, que se efetiva na segunda parte de Lira dos
Vinte Anos, principalmente mediante poemas que apontam para o trânsito
do prosaico na poesia e para a ironia, vai ecoar particularmente com intensa
força em Noite na taverna (1855) , que representa, no conjunto
da obra azevediana, a culminância de um projeto consciente de dessacralização
da estética da “monodia amorosa”, em detrimento da
“sátira que morde.” Embora seja a mais editada, não
apenas nas obras completas de Álvares de Azevedo mas também
isoladamente, Noite na taverna tem ocupado uma posição discreta
na fortuna crítica do escritor romântico, contando com um
número ainda pequeno de estudos substanciais a seu respeito. Ademais,
algumas inquietantes considerações da crítica acerca
de Noite na taverna, que destacam sua “singularidade” e o
seu “secreto encantamento”, definindo-a, não raro,
como “composição extravagante”, aguçam
a nossa curiosidade e dá-nos a certeza de que a obra carece ainda
de estudos de maior profundidade.
O caráter de excepcionalidade atribuído a Noite na taverna
reside no fato de, a nosso ver, esta ter sido uma obra elaborada no sentido
de problematizar uma certa tradição literária em
voga, propondo conscientemente um movimento de dessacralização
de uma escrita nos moldes do Romantismo canônico. Neste sentido,
essa obra constitui marco diferencial dentro de um processo de inovação
na obra azevediana, não apenas por lançar mão do
HIBRIDISMO ESTILÍSTICO mas por possibilitar uma guinada operacional
rumo à corrosão de uma concepção de literatura
vigente, promovida pela utilização deliberada de recursos
como a INTERTEXTUALIDADE e a METALINGUAGEM.
Esses fenômenos estilísticos levam a efeito um “deslocamento”
da obra em relação à arte escrita da época,
um avanço representativo rumo a uma escrita que se afastasse da
representação pura e simples, deflagrando e trazendo à
baila discussões acerca da literatura vigente.
Buscando uma nova forma de escrita literária, Álvares de
Azevedo, num procedimento intertextual pouco comum, dialoga com obras
e autores consagrados da tradição, principalmente os da
tradição européia, indo mais além: utiliza-se
deliberadamente desse intertexto, assumindo o simulacro, nos termos definidos
por Gilles Deleuze como uma reversão, uma ruptura direcionada à
criação. Seguindo um movimento de recusa da representação,
o simulacro - essa força produtiva, inventiva e descentralizadora
- confere-lhe uma orientação futuritiva que se opõe
à tendência de a cópia voltar ao passado originário,
para reproduzi-lo sem diferença e, portanto, sem crítica,
não se tratando de uma reprodução pura e simples,
mas da produção de algo diferente.
Isto significa romper com as hierarquias, afirmar a diferença,
pois enquanto o simulacro dispensa essa relação legítima
e originária para viver de uma falsa semelhança, que abre
caminho a uma dessemelhança generalizada, há um afastamento
progressivo e incontrolável com relação ao centro,
à Idéia. Afastando-se do centro, o simulacro, é,
pois, uma potência para afirmar a divergência e o descentramento.
No plano literário, além de questionar o estatuto de ficcionalidade,
como um todo, o simulacro efetua o deslocamento da propriedade do texto,
a eliminação dos gênios-donos da escrita e a quebra
de qualquer hierarquia de gênero e autor, ao empreender um movimento
que descentra a escrita literária vigente.
A cópia com crítica, isto é, o simulacro, abre caminho
a outro fenômeno que põe em crise a mímesis da representação
– entendida como o correlato a uma visão anteriormente estabelecida
da realidade - em detrimento de algo que surge do conhecimento da produção
escritural, do processo consciente de feitura, que se desnuda no trabalho
com a linguagem.
O grande salto empreendido por Álvares da Azevedo em Noite na taverna
é o de que a questão entre cópia e originalidade/imitação
e espontaneidade é levada às últimas conseqüências:
as retomadas, os recursos intertextuais são articulados de modo
a atuarem na obra como um procedimento estilístico, um “jogo
elaborado”, que, sorrateiro, irônico e disfarçado de
solenidade, libera suas reflexões sobre a arte e sobre seus padrões
vigentes.
O diálogo e o aproveitamento das obras da tradição
assumem na obra, portanto, uma configuração inusitada: articulam-se
mediante utilização deliberada de recursos estilísticos
pouco canônicos, como o kitsch, a citação, o pastiche
e a paródia, através dos quais Álvares de Azevedo
empreende a imitação da imitação, sendo que
- é importante frisar - ele o faz com crítica, transcendendo
as estreitas fronteiras da imitação servil e problematizando
a tradição que imita, a sua retórica e seus exageros:
tais recursos estilísticos avultam como estratégias criativas
de diálogo intertextual com outras obras, como forma de realizar
uma crítica aos próprios clichês românticos.
A ironia é outro recurso que possibilita ao poeta romântico
tornar-se o próprio crítico de sua obra, sendo responsável
por uma espécie de profanação, já que possibilita
a intervenção crítica na elaboração
da obra. Princípio em si complexo e de múltiplas conotações,
a ironia pode ser compreendida na tessitura de Noite na taverna como elemento
responsável pelo controle da subjetividade e do excesso de sentimentalismo.
Numa forma especial de episteme, Álvares, no rastro
da modernidade, empreende um movimento escritural em que a obra se debate
sobre si mesma, desnudando a forma com que é feita, enveredando
por um processo compositivo em que se contempla ativamente, configurando
um redimensionamento no modo de elaboração do tecido literário,
agora não tão apenas representação, mas construção
consciente.
Apostamos principalmente na proposição de que, criticando
os fundamentos do romantismo canônico a partir de uma visada que
permite ao seu autor “rir” da estratégia criadora praticada
naquele momento, Noite na taverna reflete conscientemente sobre o seu
estatuto ficcional, pondo em evidência o ato da escrita e questionando
criticamente as convenções. Esse é o traço
que diferencia Álvares de Azevedo dentre os escritores de sua época:
àquela altura ele teria inovado em relação ao romantismo
a que pertencia em direção à sensibilidade escritural
de descentramento, diferenciando-se dos contemporâneos em proposta
estética e em desempenho lingüístico e temático.
Ratificando a teoria binômica de Azevedo, Noite
na taverna compõe também o rol de suas obras que se caracterizam
pela fusão de universos lingüísticos e textuais distintos.
Através da mistura de linguagens, pelo trabalho de citação
e pela opção pelo kitsch e pelo pastiche, a obra viabiliza
um questionamento das convenções clássicas, antecipando
a superação de Álvares de Azevedo em relação
ao Romantismo.
Nesse sentido, essa obra pode ser considerada de relevante representatividade
no contexto da produção azevediana, no que se refere a uma
proposta estética de revisão da tradição em
voga e à proposição de novas possibilidades para
a escrita literária da época. Ademais, a utilização
de um humor que requer “finura” e “força analítica”
pode abrir, por outro lado, o campo de possibilidade para uma leitura
diferente da obra de Álvares de Azevedo, uma leitura que possa
ver o ainda não-visto, abalando pelo menos um pouco o mito crítico
de que a sua produção é unicamente da ordem do pessimismo,
da dúvida e do negativo.
A despeito de não considerar o byronismo como ponto central em
Noite na taverna, achamos que a obra recobre outras perspectivas: um olhar
que extrapola o momento histórico e estético do romantismo,
através do trabalho com a linguagem em processo, trazendo à
baila os exageros não apenas os byronianos, mas os do próprio
romantismo, desmistificando clichês os quais ele mesmo utilizou
(e como utilizou!), ao levar mais longe uma atitude de contestação,
através de uma subversão estética consciente.
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