Rita de Cássia Silva Kauling - Escola de
Educação Básica Silveira de Souza
Eu sou professora de Língua Portuguesa em uma Escola
Fundamental da Rede Pública Estadual, no centro de Florianópolis,
Santa Catarina. Nossa clientela é formada por crianças e
adolescentes entre os 7 e 18 anos aproximadamente. Em sua grande maioria
são oriundos de núcleos familiares muito pobres, residentes
nos morros que circundam o centro da cidade.
Periodicamente promovemos encontros com as famílias e reuniões
de pais com professores. Nestes eventos é relevante o número
de avós que vêm representar ou substituir seus filhos (pais
dos alunos). Porque eles estão no trabalho, estão doentes,
estão na prisão, morreram de AIDS ou vítimas do tráfico,
ou eles simplesmente não assumem responsabilidades porque não
têm maturidade para fazê-lo. Incluímos nesse elenco
também os inúmeros casos de filhos de adolescentes, que
acabam sendo criados pelos avós.
Observei que os alunos com avós presentes, há exceções,
apresentam bom desempenho escolar, comportamento mais equilibrado e maior
senso de responsabilidade. Além de destaque em outros detalhes
importantes no funcionamento da escola como, por exemplo, freqüência,
uso do uniforme, disciplina, etc. Constatei que estes mesmos alunos, são
os que apresentam o pensamento criativo mais fluente, a palavra mais fácil,
a escrita mais clara e objetiva, os que melhor se comunicam.
Paralelamente, dentro de um contexto sócio-econômico familiar
muito diferente do vivenciado, convivo com mulheres aposentadas ou ainda
em atividade profissional, que estão dedicando meio período
do seu dia ou determinados dias da semana para cuidar de seus netos. Dessa
forma auxiliam seus filhos na complexa tarefa de criar e educar seres
humanos evitando que as crianças sejam confiadas às creches
e escolinhas desde a mais tenra idade. Mesmo porque creches e escolas
de qualidade custam caro e pesam muito no orçamento doméstico
das famílias.
Esse conjunto de aspectos reais observados na vivência e na prática
docente, me reportou a algumas obras da literatura, onde a figura dos
avós comparece substituindo ou coadjuvando a ação
paterna ou materna. Tal fato está antropologicamente respaldado,
pois sendo o homem a criatura mais frágil da natureza, incapaz
de sobreviver aos primeiros anos sem assistência e desvelo, é
natural, que sejam os avós, um segundo par de pais, um reforço
substancial para o desempenho desta tarefa. Inúmeros são
as obras literárias que nos trazem casos de avós às
voltas com seus netos, quer na ficção, quer na realidade.
Jean Paul Sartre, filósofo e escritor francês, em seu livro
autobiográfico As palavras, passa em revista sua infância
vivida na casa dos avós maternos. Seu avô, um intelectual
lúcido e rigoroso, transmitiu-lhe amor e respeito pela literatura.
Plantou no coração do neto a semente da vocação
de escritor e da descoberta do sentido moral e social do ofício
que o transformou em um dos maiores escritores de seu tempo. Ainda garoto
orgulhava-se quando o editor apontando para a prateleira dizia: “Estes
aí, menino, foi teu avô que os fez. Que orgulho! Eu era neto
de um artesão especializado na confecção de objetos
sagrados, tão respeitável quanto um fabricante de órgãos,
quanto um alfaiate eclesiástico” (1964, p. 32).
Outro francês famoso, Vitor Hugo, eternizou nos versos A quoi je
Songe, a saudade de seus netos, quando esteve exilado na ilha de Madagascar
em 1837.
Em relatos autobiográficos o colombiano Garcia Marques relembra
a amizade singular vivida com o avô em cuja casa viveu sua infância:
A avó governava a casa, uma casa que depois ele
recordaria como grande, antiga, com um pátio onde ardia nas noites
de muito calor o aroma de um jasmineiro e inúmeros quartos onde
suspiravam às vezes os mortos (...). Circunstâncias muito
especiais tinham feito dele um menino perdido num universo de pessoas
adultas, esmagadas por lembranças de guerras, penúrias e
esplendores de outros tempos. (1982, p. 89).
A literatura nacional tem sido pródiga na representação
dos avós e sua influência na formação e desenvolvimento
dos netos. Nas primeiras décadas do século XX Monteiro Lobato,
num gesto de profundo respeito e legitimidade da criança, concede-lhe
uma avó capaz de unir a fantasia à realidade: Dona Benta.
Antes de moralizar, a simpática avó quer ensinar pela diversão
e guiar a inteligência de seus netos pelo prazer e pela imaginação,
o que fica comprovado na obra Reinações de Narizinho.
É no universo ficcional do Sítio do Picapau Amarelo, com
um elenco de personagens diferenciados em termos de sexo, idade, etnia,
classe social, credo, valores e experiências, que acontece a história
de Lobato. A proprietária do Sítio é D. Benta, simpática
velhinha de cabelos brancos. Na pequena casinha branca, com flores na
janela, ela vive em companhia da neta Lúcia, a menina do narizinho
arrebitado, ou Narizinho, como todos a chamam.
“Narizinho tem sete anos, é morena como jambo, gosta muito
de pipoca e já sabe fazer bolinho de polvilho bem gostosos”.
Na casa também vivem Tia Nastácia negra de confiança
tão velha quanto D. Benta, e Emília uma boneca de pano,
que depois de engolir uma pílula milagrosa passa a falar, falar,
falar pelos cotovelos. Para completar o grupo chega da cidade, para passar
férias no sítio, o primo Pedrinho, menino de boa índole.
Pedrinho que tem 10 anos, vai-se dando a conhecer através do que
fala, do que faz, do companheirismo e do endosso às travessuras
de Narizinho.
O Sítio do Picapau Amarelo é um espaço singular.
Lá inexistem barreiras entre os adultos e os pequenos, a quem é
dado o direito de divergir e aos adultos o de apontar-lhes os erros. Os
pequenos perguntam e recebem informações que os capacitam
criticar, ver a realidade e dela partilhar. Nesse espaço multidimensional
tudo é natural, não existe o dogmatismo ou o autoritarismo.
Figura inequívoca a avó, D. Benta, exerce liderança
sobre o grupo com a sabedoria adquirida no seu muito viver, o desprendimento
do amor e a capacidade de comunicação simples e direta.
Compreendendo que as funções de instruir e educar também
são pertinentes a sua condição de avó, ela
se vale de um caminho metodológico que lhe permite uma maior aproximação
com as crianças: a narrativa de contos e histórias.
À noite, após o jantar, Tia Nastácia acende o lampião
da sala e chama – “É hora, gente!” Todos vêm
postar-se em redor de D. Benta, sentada em sua cadeirinha de pernas serradas,
para ouvir-lhe uma história. Então, ela apresenta a seus
ávidos ouvintes, de modo acessível e prazeroso as idéias
filosóficas, literárias, políticas, artísticas
e científicas em todas as suas manifestações.
Os contos de fadas, as lendas, fábulas e histórias na voz
da avó trazem para o sítio inúmeras personagens imaginárias
com as quais as crianças se comunicam, se divertem e brincam. Constroem
um universo mágico onde a combinação de fantasia
e realidade abre perspectivas para a compreensão do mundo do ponto
de vista da infância. Também os pequenos contam histórias
nos serões do sítio. Como não poderia deixar de ser
suas narrativas são as mais criativas e inverossímeis. Mas
eles contam com a aquiescência da avó que se incorpora à
fantasia dos netos e participa das aventuras imaginarias deles, relevando
tolerância, autoridade com justiça e respeito à criatividade
lúdica dos mesmos.
Com o auxílio das personagens antropomórficas das histórias,
D. Benta, sabiamente vai capacitando seus netos à distinção
entre o bem e o mal, entre o certo e o errado e para o perdão,
como comprova o diálogo entre a boneca Emília e Cinderela:
- Que é que aconteceu para sua madrasta e suas
irmãs, afinal de contas? Um livro diz que foram condenadas à
morte pelo príncipe, outro diz que um pombinho furou os olhos delas...
- Nada disso aconteceu – disse Cinderela. Perdoei-lhes o mal que
me fizeram – e hoje já estão curadas da maldade e
vivem contentes numa casinha que lhes dei, bem perto do meu castelo (1965,
p. 178).
Esse conjunto de aspectos faz de Pedrinho e Narizinho
os representantes de uma infância feliz, vivida em proximidade com
a figura da avó que lhes concede amplas oportunidades de realização.
Cunhadas nos moldes da valorização do pensar, sentir, querer
e dizer vencem os limites do sítio do Picapau Amarelo e projetam-se
em centenas de outras crianças, por eles influenciadas.
Em tempos mais recentes (1992), a escritora catarinense Maria de Lourdes
Krieger em seu livro Vovó quer namorar, também apresenta
uma avó envolvida com a educação de sua neta. Porém,
com uma atitude mais condizente com os modelos preconizados pelos avanços
tecnológicos e comportamentais.
Frosina, a avó nada ortodoxa da ficção da escritora,
é apaixonante. Estando em uma idade em que as outras mulheres de
seu tempo assumem o peso dos anos, abandonam seus sonhos e se dedicam
ao crochê, ao bordado e aos doces que agradam os netos, ela foge
completamente ao convencional. De sapatos de salto alto, maquiada e vestida
jovialmente, a viúva Frosina quer namorar, acalentando esperanças
próprias de futuro em sua mente arejada.
Residindo com a filha, o genro e a neta, Letícia, compõe
a família com singularidade. Dentro de um convívio nem sempre
harmonioso, já por conta de seu comportamento pouco recomendado
para senhoras idosas, segundo sua filha, no entanto exerce papel de relevância
no grupo. Ela estabelece com a neta adolescente uma ligação
saudável e fecunda, através das histórias reais de
sua vida, que vai contando aos poucos, quando a ocasião é
propicia, sem intenções disciplinares ou pedagógicas.
Em linguagem simples e confidencial, revela passagens de seu viver como
mulher, esposa, mãe e cidadã fortemente carregadas de energia
humana e por isso mesmo inesquecíveis.
- Foi Eugênio pros outros; pra mim Maugênio,
proibindo passeios e danças e cavalos, tudo que sempre gostei,
que ele me conheceu gostando [...]. – Esse Maugênio tentou
me ensinar a ser contida nos afetos, nas emoções, a ser
tão diferente do que me conheceu. Às vezes, eu pensava que
se sentia Pigmalião, o responsável por mim. Detestava segredos,
principalmente nos outros (1990, p. 12-19).
Em desabafo fala sobre o seu casamento sem felicidade
com o juiz “Maugênio” que a impediu de viver espontânea,
alegremente seu temperamento. A avó adverte a sua ouvinte para
o lado negativo das emoções contidas, dos afetos castradores,
das personalidades introspectivas e incapacitadas para a visão
e percepção das diferenças e respeito ao modo de
ser de cada um.
A sabedoria adquirida por Frosina na tanta vida que viveu, nos sorrisos
que já sorriu, nas alegrias e lágrimas que espalhou ou sufocou,
nos sustos, nos sobressaltos, são de inestimável importância
emocional e humana para sua pupila. No desenrolar de sua vida, provavelmente,
muitas vezes, Letícia vai usufruir os ensinamentos ouvidos nas
histórias da avó que ao completar 70 anos, confidencia à
neta perplexa, que está enamorada e aguarda nervosa, a visita do
seu ‘gato’. “-É um gato. Com toda a idade, gatíssimo
– como vocês dizem. Tem outras aí de olho nele. Mas
cheguei primeiro” (p. 21).
Então, há quem possa indagar: Que lição uma
neta aprende de uma avó de cabelos brancos, tão cheia de
idade – só nos olhos um brilho jovem – que inventa
ilusões e quer namorar? A maravilhosa lição da superação
da dor das perdas e desenganos e a coragem de abrir-se para novos relacionamentos,
para novas tentativas de felicidade.
Essa relação avó e netos, apresenta-se como uma triste
lacuna nas memórias de Salim Miguel, outro escritor catarinense
em seu livro Nur na Escuridão.
No círculo familiar do escritor Salim Miguel tão comovedoramente
descrito em seu romance autobiográfico, há uma lamentada
ausência – avós. Em seu capítulo inteiramente
dedicado a esses personagens carismáticos, objeto de nossos estudos,
o escritor comenta a tanta falta que estes fizeram à sua infância.
O menino Miguel e seus irmãos, filhos de imigrantes libaneses não
conheceram nenhum dos quatro avós a que por lei da natureza cada
criatura tem direito. Movidos pela inveja, principalmente quando as crianças
da vizinhança falavam dos avós carinhosos, dos brinquedos
que ganhavam das visitas que lhes faziam, eles interrogavam os pais. Necessitavam
saber qual a razão, porque motivo não tinham avós
como as outras crianças? Pouco adiantava a mãe explicar
que ficara órfã ainda menina, que os pais do marido ficaram
no Líbano. Sem nunca terem visto os pais de seus pais, os filhos
de seu Miguel e de dona Tamina sentiam-se desamparados e diminuídos
sem essa referência antropológica e afetiva, inexplicável
falta: “Então, íamos aos poucos inventando avós,
dando-lhes personalidade, uma fisionomia própria, só que,
por vezes, mutável, adaptada às circunstâncias, recriando-as
à medida que cresciam. Por vezes se assemelhavam aos das outras
crianças, por vezes lembravam seres míticos, resultantes
de uma complexa alquimia extraída de conversas a que se adicionava
personagens de livros, da fantasia menor ou maior de cada um”.
As crianças em seus devaneios diziam: logo nossos avós vêm
nos visitar e trarão muitos presentes.
Em outras ocasiões fabricavam – inventavam
cartas da Argentina, dos Estados Unidos, da Austrália, do México,
até do Líbano. Numa elaboração minuciosa,
fundiam avós de amigos com figuras entrevistas em jornais, em revistas,
em álbuns, em livros ilustrados, adaptações que não
pudessem ser identificadas (MIGUEL, 2000, p. 119-120).
Contudo ficavam sempre insatisfeitos com a colagem que
não se corporificava. Então, como resolver o complexo problema
de se fabricar uma avó, um avô condizente: necessitavam de
avós para se sentirem iguais aos outros, para se integrarem mais
solidamente ao universo. Mais tarde, os pequenos libaneses em contato
com os livros de Monteiro Lobato, desejaram ter para si uma simpática
avó como D. Benta, com a mesma cabeleira branquejante, o mesmo
riso, a mesma alegria de viver, a mesma imaginação, a mesma
palavra fácil.
Salim Miguel recorda que em algumas ocasiões, quando eram questionados
sobre o assunto, seus pais, como para consolar os filhos apresentavam
tios; irmãos da mãe, uma irmã do pai e expunham com
orgulho alguns velhos retratos. Mas de nada adiantava, pois tios jamais
podem substituir avós.
A leitura das obras referendadas permitiu intertextualidade com a prática
pedagógica, ou melhor, com o cotidiano vivido numa sala de aula
com alunos de 6ª série, com os quais lemos, trocamos idéias,
produzimos textos e outras atividades: entrevista com avós de alunos,
aplicação de questionário cujas respostas confirmam
a relevância da presença dessas figuras na constelação
familiar. Cumpre declarar que outras atividades continuem sendo realizadas
no transcurso das aulas.
Para comprovar o interesse que o tema despertou nos alunos, vale a pena
registrar alguns trabalhos por eles executados.
1. Criação de texto
Jéssica – 6ª Série
O nome de minha avó é Julia, ela é baixinha, magra,
tem 82 anos de idade.
Ela faz muitas comidas gostosas e costura, ela é uma boa dona de
casa.
Minha avó é também um boa amiga para mim, ela conversa
bastante comigo, me dá muitos conselhos.
Ela também é bastante religiosa vai bastante à igreja.
Ela mora em frente a minha casa, nós temos uma relação
muito boa.
2. Minha Vó Inês
Rejane Prestes – 6ª Série
Minha avó é morena, baixinha e gordinha. Ela tem 55 anos,
o nome dela é Inês. É dona de casa, lava, passa e
cozinha que é uma beleza. E ela é muito bondosa.
Adora ela e o meu vô e minha bisavó também. Ela cuidava
de mim quando eu era pequena, me levava para a creche no colo dela.
Somos muito felizes, ela sempre me paparica e sempre me defende das coisas
erradas que eu faço.
Teve um dia que ela passou mal e foi parar no hospital, quase tive um
troço. Mas tudo voltou ao normal e ela voltou a fazer os bolinhos,
as comidas boas, só de me lembrar do cheiro, já fico com
água na boca.
Tudo ela faz com amor e muito carinho. E minha vó bisa também
é muito bondosa fazendo sempre coisas gostosas.
Minha vó mora comigo, meus pais e meus irmãos na rua Professor
Anacleto Damiane. Minha avó sempre esteve presente nas horas difíceis
como segundo minha mãe diz. E a minha vó costura.
3. Criação do texto
Anderson – 6ª Série
O nome da minha vovó é Madalena. Minha avó tem 60
e poucos anos não é tão gorda nem tão magra,
ela gosta de costurar roupas.
Ela viaja para lugares diferentes adora cozinhar e conversar com seus
amigos da velha idade, ela adora ir ao Shopping Beiramar. Ela se relaciona
bem com as pessoas, ela adora aprender coisas novas como: fazer torta
de maçã e de morango, ela é separada há muito
tempo.
Ela adora ensinar coisas da vida e ela é bem compreensiva com os
netos, a vó faz de tudo para que as filhas e filhos fiquem felizes.
Ela vai à igreja, um dia na semana, a religião dela é
umbandista.
Minha vó mora na rua Servidão Berreto, perto do Supermercado
Imperatriz, ela é aposentada, os filhos e netos moram perto dela
e a melhor coisa do mundo é acabar o muro. E ela pergunta sobre
a escola se eu estou bem na aula, ela raciocina bem e ela adora fazer
brincadeiras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GARCIA MÁRQUEZ, Gabriel. Cheiro de goiaba. Rio
de Janeiro: Record, 1982.
KRIEGER, Maria de Lourdes. Vovó quer namorar. São Paulo:
FTD, 1992.
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo:
Brasiliense, 1965.
MIGUEL, Salim. Nur na escuridão. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.
SARTRE, Jean Paul. As palavras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.