Bruno Cardoso Lages – Universidade Federal
do Rio de Janeiro - UFRJ
Em julho de 2004, visitando a Estação Pinacoteca,
em São Paulo, uma feliz coincidência deu origem a meu projeto
de mestrado. Cheguei, sem saber, no momento exato em que um grupo se preparava
para iniciar uma visita monitorada na companhia de uma arte-educadora.
A mostra intitulava-se “Encontros com o Modernismo”, com 75
obras do museu Stedelijk, de Amsterdã, e 20 trabalhos do acervo
da Pinacoteca. Combinei comigo mesmo que me juntaria ao grupo por alguns
minutos e depois decidiria se continuaria ou não com eles.
Logo na primeira sala, reconheci um quadro do pintor francês Mondrian
e caminhei em sua direção. Havia no chão uma estrutura
em madeira que lembrava enormes peças de dominó com o lado
maior sobre o chão, arrumadas como se, ao empurrar a primeira,
fôssemos derrubar as outras. Os blocos de madeira serpenteavam em
S bem no meio da sala, obrigando-nos a contorná-los se quiséssemos
chegar ao Mondrian. Confesso que por um momento passou pela minha cabeça
pular a estrutura, que a princípio me pareceu uma espécie
de banco onde os visitantes poderiam sentar-se a fim de admirar as obras,
como é comum em museus e galerias de arte. Nessa hora, a voz da
arte-educadora se fez ouvir e passei a prestar atenção ao
que ela dizia. Seus gestos apontavam para um outro quadro e eram seguidos
pelos olhos atentos do grupo que, em respeitoso silêncio, parecia
muito interessado no que a monitora dizia. O quadro era feito de figuras
geométricas, como peças de um quebra-cabeça, e revelava
ao olhar observador uma cena familiar, ainda que recortada. Era uma catedral
gótica, cujas partes encontravam-se recolocadas em lugares improváveis:
abóbadas ogivadas no lugar de janelas; vitrais onde deveria estar
o chão; colunas saindo das paredes. Tinha-se a impressão
de se estar olhando dentro de um caleidoscópio. A monitora fazia
perguntas:
- O que vocês estão vendo?
- Parece uma igreja, respondia um visitante.
- É uma igreja comum?, voltava a perguntar.
- Está recortada, dizia uma outra pessoa.
- Concordo. Como vocês entendem a obra?
- Como um questionamento, uma jovem senhora que parecia estar gostando
muito do quadro respondeu.
- E o que está sendo questionado?
- Coisas clássicas...a arquitetura clássica talvez, respondeu
a jovem senhora.
- Talvez. Vocês vêem alguma relação entre esse
quadro e a obra que está no meio da sala?
Nesse momento fui tomado por um enorme alívio, pois só então
compreendi que o “banco” que tinha me atrapalhado a chegar
perto do quadro do Mondrian era, na verdade, uma instalação
na qual, por muito pouco, eu não havia literalmente pisado. A arte-educadora,
entre perguntas e comentários, foi construindo um sentido possível
para a instalação, usando o quadro como contraponto: assim
como o quadro, as peças de madeira tinham algo a dizer sobre nossa
relação com o conceito de espaço. O quadro desconstruía
uma imagem que simbolizava um momento de gênio arquitetônico.
As catedrais góticas são representantes da harmonia da forma,
da leveza e da simetria na idade média. Já a instalação
provocava a reflexão a partir de uma experiência mais imediata.
Sua presença transformava nossa exploração do espaço
da sala, chamando nossa atenção para si mesma e para os
quadros ao mesmo tempo, uma vez que ao contorná-la, ficávamos
estrategicamente colocados em relação a eles.
Durante a visita, tive oportunidade de viver outros momentos como esse,
em que não só a intervenção da monitora enriquecia
minha percepção das obras, mas também a interação
com as pessoas do grupo que, animadas, faziam perguntas e comentários.
Foi uma tarde imensamente agradável, marcada pelo prazer da descoberta
compartilhada com outras pessoas.
Dias depois, ainda carregava comigo as impressões daquela visita.
Junto da lembrança boa, porém, trazia um incômodo:
a sensação de que se eu não tivesse chegado no momento
em que uma visita monitorada começaria, minha experiência
não teria sido tão enriquecedora. E comecei a pensar mais
demoradamente sobre o que de fato havia acontecido naquele dia. Dei-me
conta de que cada quadro, instalação, escultura, fotografia
estava onde estava por um motivo; que havia uma sintaxe das obras, que
nenhuma era vizinha da outra por acaso; que elas dialogavam entre si e
que, no fim de todas as contas, a mostra se fazia gesto e mensagem (O’Doherty,
1996). Entendi, por fim, que havia uma curadoria por trás da exibição.
Na verdade, há sempre um curador por trás de toda mostra.
A palavra curador, a princípio, designa um especialista capaz de
cuidar de um acervo, certificando-se de que as obras sejam preservadas
contra a ação do tempo e do manuseio inadequado. É
o curador-cuidador. Acontece que quando as obras estão expostas,
elas contam uma história, apresentam visões de mundo, sentidos,
conceitos. Tudo porque alguém as leu de determinada forma e resolveu
apresentar para o público a sua leitura. O curador se apresenta,
assim, como curador-leitor.
A figura do curador-leitor não é nova. Ela existe desde
quando as coleções de arte européias tornaram-se
públicas e os museus, além das funções de
coletar, conservar e pesquisar, passaram a também exibir. Acontece
que depois de séculos de exposições que eram aproveitadas
principalmente por uma elite informada, houve necessidade de tornar as
coleções verdadeiramente públicas, não só
no sentido de fisicamente acessíveis, mas também compreensíveis
para pessoas que não fossem especialistas em arte. No início,
o curador expunha para um público alfabetizado na linguagem altamente
especializada da crítica de arte. Quando, ao lado do trabalho de
curadoria, diferentes instrumentos passaram a ser utilizados como reveladores
da leitura que o curador fez das obras em exibição, a curadoria-leitura
ganhou sua dimensão pedagógica e a ida ao museu passou a
ser uma atividade menos esotérica. A curadoria pedagógica
consiste, assim, no uso de “textos de parede, folhetos, catálogos,
áudio-guias e principalmente no trabalho interpessoal de visitas
monitoradas realizado por educadores” (Grinspum, 2000), entre outros
recursos utilizados com fins pedagógicos. Sua principal função
é tentar fazer com que a curadoria por trás do arranjo inteligente
de uma exposição seja revelada aos visitantes, interferindo
na relação desses com os trabalhos em exibição.
Como resultado, espera-se que haja uma abertura de espaço para
o questionamento, para a desestabilização do olhar, muitas
vezes ingênuo, do público médio, assim como a criação
de condições para que esse público possa vivenciar
suas próprias epifanias, seus momentos de “admiração
e espanto” aristotélicos diante de uma obra.
Nesse ponto, uma questão se colocou para mim de forma muito clara
e a busca por respondê-la transformou-se em projeto: pode existir
uma curadoria pedagógica do texto literário? Em caso afirmativo,
qual a relevância dessa abordagem na formação de leitores?
Em que consiste tal curadoria e como implementá-la?
É natural que se faça um paralelo entre a situação
do visitante dos museus e a do leitor. A figura do leitor se constitui
em relação ao texto que pretende lê, assim como ao
contexto no qual se situa no momento da leitura. Existem três grandes
abordagens para o estudo da relação entre esses elementos
no ato da leitura, que são, segundo Leffa,
(1) as abordagens ascendentes, que estudam a leitura da perspectiva do
texto, onde a construção de sentido é vista basicamente
como um processo de extração; (2) as abordagens descendentes,
com ênfase no leitor e que descrevem a leitura como um processo
de atribuição de significados; e, finalmente, (3) as abordagens
conciliadoras, que pretendem não apenas conciliar o texto com o
leitor, mas descrever a leitura como um processo interativo/transacional,
com ênfase na relação com o outro. (Leffa, 1999)
De acordo com a abordagem ascendente, o leitor é um mero receptáculo
passivo do sentido do texto, que, por sua vez, existe de forma absoluta,
estática, guardando a falsa promessa de conferir ao seu decodificador,
independentemente de quem ele seja, sempre o mesmo sentido. Quanto à
abordagem descendente, a crítica que se pode fazer diz respeito
a uma visão por demais relativista da leitura, em que o sujeito-leitor
é quase onipotente e qualquer sentido produzido por ele será
válido, o que na realidade não ocorre. A virtude da abordagem
interacional está em superar as limitações das abordagens
anteriores, sem negá-las totalmente, adicionando ao processo da
leitura o elemento social, com foco na interação. Um dos
pressupostos básicos contemplados pela abordagem interacional e
que vale a pena ressaltar é a teoria dos esquemas, segundo a qual
as experiências do leitor e o conhecimento por ele adquirido encontram-se
previamente organizados numa espécie de repertório do mundo,
fundamental na fase descendente do processo de leitura (Leffa, 1999:26).
Tais experiências e conhecimento são ativados pelo texto,
sobre ele projetados e, não raro, por ele modificados, expandidos
ou confirmados (Nutall, 1996).
A semelhança do processo de leitura com o que acontece no museu
pode ser descrita da seguinte forma:
1. Em ambas situações o sentido pode ser construído
a) na interação entre a obra e o leitor/visitante; b) na
interação de leitores/visitantes entre si e c) na relação
que se pode estabelecer entre uma obra e outra.
2. Nos dois processos existe uma tendência à elitização
de seus participantes. Alberto Manguel, no seu livro “Uma História
da Leitura”, descreve os primeiros leitores da palavra escrita como
uma classe muito poderosa:
“Os escribas deviam ter consciência do poder extraordinário
conferido pelo fato de serem leitores de texto e guardavam essa prerrogativa
ciumentamente. Com arrogância, a maioria dos escribas mesopotâmicos
terminava seus textos com esse colofão: ‘Que o sábio
instrua o sábio, pois o ignorante não pode ver’”
(Manguel, 1996:211).
3. Tanto a literatura, objeto de estudo da curadoria de leitura que se
pretende realizar, quanto a arte exposta em museus e galerias, são
possíveis objetos do verbo ler, quando a ele se confere uma dimensão
que vai além da leitura decodificadora da palavra e atinge a leitura
do mundo em suas três dimensões: sensorial, emocional e racional
(Martins, 1982).
4. Tanto a literatura quanto a arte em geral são objetos de definição
difícil e perigosa. No caso específico da literatura, Terry
Eagleton chega a dizer que:
“Não existe uma essência da literatura. (...) John
M. Ellis argumentou que a palavra ‘literatura’ funciona como
a palavra ‘mato’: o mato não é um tipo específico
de planta, mas qualquer planta que, por uma razão ou outra, o jardineiro
não quer no seu jardim. ‘Literatura’ talvez signifique
exatamente o oposto: qualquer tipo de escrita que, por alguma razão,
seja altamente valorizada. (...) ‘Literatura’ é, nesse
sentido, uma definição puramente formal, vazia. Mesmo se
pretendermos que ela seja um tratamento não pragmático da
linguagem, ainda assim não teremos chegado a uma ‘essência’
da literatura (...) (Eagleton, 1985:12 e 13)
5. A partir da ausência de uma essência, as definições
de literatura e arte serão sempre contexto-dependentes. Objetos
de arte, uma vez definidos como tal, se prestarão sempre a muitas
possibilidades de leitura. O curador é, dentro de uma proposta
pedagógica, o autor de uma das possíveis leituras. E a revelação
de sua leitura para o visitante tem a dupla função de compartilhar
uma interpretação possível, mas também, e
pode-se dizer principalmente, sugerir modos de ver a partir dos quais
outras interpretações poderão surgir. Com a ‘literatura’
o mesmo poderia acontecer. Curadores não faltam, sob nomes diferentes,
dependendo do contexto: crítico, professor, intelectual. Esses
curadores produzem diversas curadorias. O que falta são os meios
de colocar essas curadorias ao alcance de um número maior de pessoas
e abrir espaço para que elas possam vir a ser, de forma mais consciente,
curadoras de suas próprias leituras. Assim como numa mostra os
objetos de arte falam entre si, a intertextualidade será de grande
importância num contexto de leitura como evento social. E assim
como diferentes instrumentos e mídias são convocados para
revelar a curadoria de objetos de arte numa mostra, esses mesmos recursos
poderão ser utilizados num evento de leitura onde se queira trabalhar
com o conceito de curadoria pedagógica.
Poder-se-ia dizer de um projeto de curadoria pedagógica da leitura
do texto literário que uma de suas conseqüências é
o cerceamento da liberdade de interpretar do leitor, como uma amarra paternalista.
Tal crítica parte de uma premissa que pode e deve ser problematizada:
a da liberdade do sujeito de interpretar o que lê. Stanley Fish,
por exemplo, defende que o sujeito é muito mais ‘assujeitado’
pelo que ele chama de comunidade interpretativa do que sujeito propriamente
de suas opiniões acerca do mundo. A título de ilustração,
conta uma história extraordinária em “How to recognise
a poem when you see one” (“Como reconhecer um poema ao vê-lo”,
na tradução para o português) (Fish, 1982). Nessa
época, ministrava dois cursos na Universidade Estadual de Nova
Iorque, um às 9:30h e outro às 11:00h, no mesmo dia e na
mesma sala. Ao final da primeira aula para uma turma de estilística,
Fish passa uma tarefa no quadro escrevendo o sobrenome dos autores cujos
textos espera que os alunos leiam até o próximo encontro.
A turma seguinte fazia um curso sobre poesia religiosa inglesa do século
XVII. Treinavam o reconhecimento de símbolos cristãos e
de uma suposta intenção poética por trás deles.
Fish deixara a lista de nomes no quadro e, sem maiores explicações,
disse para seus alunos que se tratava de um poema religioso e que gostaria
que eles o interpretassem. O que se seguiu foi uma sucessão de
atos interpretativos brilhantes. A começar pela forma dos versos
no quadro, que por acaso estavam dispostos em T, que tanto poderia ser
uma cruz como uma árvore, am ambos os casos servindo para confirmar
a natureza religiosa do poema. A seguir, buscaram na etimologia dos nomes
significados que ora eram relacionados com a forma do poema, ora com um
sentido religioso. Por fim, um dos alunos chegou ao extremo de contar
as letras mais freqüentes e concluir que essas eram S O N, que formam
a palavra “filho”, em inglês, numa clara referência
a Jesus Cristo. Para Fish, porém, os sentidos construídos
pelos alunos eram, no mínimo, previsíveis. Não porque
estivessem no texto para serem inequivocamente extraídos. Afinal,
se os alunos não estivessem habituados a lidar com simbologia religiosa,
talvez não tivessem sido capazes de ver tanto. Por outro lado,
também não se pode dizer que o sentido estivesse nos alunos,
sujeitos livres a autônomos. O contexto em que os alunos estavam
inseridos, um curso de poesia religiosa, num momento em que a autoridade
máxima – o professor – aponta para um texto e diz:
“eis um poema, vamos interpretá-lo” – tornava
os sentidos por eles construídos virtualmente inescapáveis.
O sentido havia sido ditado pela comunidade interpretativa da qual faziam
parte.
Tão interessante quanto o que Fish nos conta sobre essa experiência
é o que ele não conta. Por exemplo, será que ao final
da aula ele diz para os alunos que o que eles haviam passado os últimos
minutos interpretando como se fosse um poema não passava de uma
lista de nomes para uma tarefa de casa? Qual teria sido o efeito desse
dado em seus alunos?
A curadoria pedagógica da leitura não pretende tolher a
suposta liberdade do leitor de interpretar, até porque essa liberdade
é algo difícil de definir e de encontrar. Ao contrário,
busca promover a leitura como evento social, a fim de que membros de comunidades
interpretativas distintas possam compartilhar pontos de vista, ampliando
o número de sentidos inescapáveis possíveis de serem
construídos para um determinado texto, num determinado contexto.
Fish deixa em aberto a possibilidade de podermos participar de mais de
uma comunidade interpretativa ao mesmo tempo. Espera-se, deste modo, que
o leitor participante de eventos de leitura como evento social possa transitar
entre comunidades diferentes, ampliando seu repertório de sentidos
inescapáveis, tornando-se leitor-curador ele mesmo. Não
pelos sentidos que inventa, já que a invenção pode
ser quimera romântica de uma época em que o sujeito era uno,
mas pelas articulações que, na descoberta de si mesmo como
sujeito fragmentado, verdadeiro monstro cultural (Silva, 2000), é
capaz de orquestrar.
A curadoria pedagógica da leitura pretende também criar
um espaço para que o texto aconteça como jogo. Segundo Iser
(1989) um dos espaços do jogo
é aberto pelo esquema. Um esquema, como Piaget afirma em sua teoria
do jogo, é o produto de nosso constante empenho em nos adaptarmos
ao mundo em que estamos. (...) Em vez de facilitar a adaptação
ao mundo físico, os esquemas podem ser usados para moldar coisas
de outro modo inapreensíveis ou de que queremos dispor dentro de
nossas condições. Assim como os esquemas nos capacitam a
nos acomodarmos a objetos, assim também nos concedem assimilar
objetos de acordo com nossas próprias inclinações.
Quando ocorre essa inversão, abre-se o espaço do jogo. (...)
O movimento do jogo sucede quando o esquema deixa de funcionar como uma
forma de acomodação e, em vez de tomar sua forma do objeto
a ser imitado, impõe uma forma sobre aquilo que está ausente.
Noutras palavras, o esquema de acomodação copia o objeto,
ao passo que o esquema de assimilação modela o objeto de
acordo com as necessidades individuais. O jogo, portanto, começa
quando a assimilação desloca a acomodação
no uso dos esquemas e quando o esquema se converte em uma projeção
de maneira a incorporar o mundo em um livro e cartografá-lo de
acordo com as condições humanas. Iser (1989:111)
Iser continua descrevendo o jogo do texto, suas estratégias, suas
regras e seus fins. Diz que no movimento da acomodação para
a assimilação podemos atingir significados que vão
além do pré-dado, ou seja, vão além dos sentidos
previamente estabelecidos pela comunidade interpretativa de que fazemos
parte. Há ainda uma colocação de Iser que, na tradução
para língua portuguesa, contém uma sugestiva ambigüidade:
“Quanto mais o leitor é atraído (...) a jogar os jogos
do texto, tanto mais é ele mesmo jogado pelo texto.” (Iser,
1989:115) O leitor ser “jogado pelo texto” pode tanto se referir
ao fato de a comunidade interpretativa já conter o sentido do texto,
caso em que o leitor é manipulado e assujeitado, como pode querer
dizer que a experiência do texto como jogo é capaz de transformar
o lugar ocupado pelo leitor, podendo jogá-lo para fora de sua comunidade
interpretativa, ainda que momentaneamente. Se o jogo vai ter um sentido
limitador ou transgressor vai depender, segundo o autor, de os jogadores
utilizarem regras reguladoras ou aleatórias (Iser, 1998:114).
Através da curadoria pedagógica da leitura, pode-se estabelecer
um clima de leveza interpretativa capaz de permitir que o leitor se desloque
através de múltiplos pontos de vista. Italo Calvino (1998),
ao buscar uma definição para seu trabalho de quarenta anos
de ficcionista, diz ter sempre tido a leveza como meta, e cita Perseu
como um possível alter-ego. O mito não poderia ser mais
apropriado para definir o que se pretende com a curadoria pedagógica
da leitura. Decidido a levar a cabeça de uma das três górgonas
de presente de casamento para o rei Polidectes, Perseu coloca-se diante
de um grande desafio. As górgonas eram monstros terríveis,
com serpentes no lugar de cabelos, e quem olhasse diretamente para elas
transformava-se imediatamente em pedra. Com ajuda de Hermes, que lhe guiou
por todo o caminho, e de Palas Atena, que lhe deu um escudo de bronze
e um capacete que fazia com que ficasse invisível, Perseu se aproximou
da Medusa, a única das górgonas que não era imortal,
e de um só golpe cortou-lhe a cabeça. O sucesso de Perseu
deveu-se, principalmente, ao fato de ter chegado perto do monstro olhando
o reflexo de sua imagem refletido no escudo de bronze. No âmbito
da leitura como evento social, em que o texto é jogado pelos leitores
e esses pelo texto, Perseu é uma feliz de metáfora de leitor.
Pode ser que na aventura da leitura, um leitor, como Perseu, deseje escapar
de virar pedra, e queira ir além dos sentidos literais ditados
pela comunidade interpretativa a qual pertence. Vale a pena lembrar que
a palavra literal vem do termo grego lithos, que por sua vez quer dizer
pedra. Assim, para não virar estátua de si mesmo, o leitor
não olha diretamente para o texto; aborda-o através de seus
reflexos, imagens projetadas pelos espelhos de outros textos, de outras
mídias e de outros leitores.
No jogo do texto, arena é caleidoscópio, e os espelhos somos
nós.
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