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CICLO
DE FORMAÇÃO: UMA EXPERIÊNCIA DESAFIADORA EM RELAÇÃO
À AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM.
Virgínia C. da R.Louzada Launé - Professora da rede municipal
do Rio de Janeiro - Mestranda-FEUFF - virginialaune@terra.com.br
Giselle Fulco - Graduanda-Pedagogia-FEUFF - gisellefulco@bol.com.br
A organização das séries iniciais do município
do Rio de Janeiro no 1o. Ciclo de Formação promove algumas
mudanças significativas no seu cotidiano escolar. De acordo com
a Proposta de trabalho para as turmas do 1o. Ciclo de Formação
e da Progressão (2004), documento oficial produzido pela SME do
Rio de Janeiro, uma organização por Ciclo “pressupõe
continuidade e não ruptura do processo de aprendizagem.”(p.1).
Para que isto aconteça, é necessário “pensar
numa maneira de se criar condições para o aluno desenvolver
e aperfeiçoar, contínua, progressiva e integradamente, o
uso da Língua.”(p1), acreditando que, para apropriar-se da
linguagem escrita, além de ler e escrever, é também
necessário fazer uso das práticas sociais da leitura e escrita,
construindo sentidos e significados.
As crianças, que antes deveriam aprender o código escrito
em apenas um ano, nas chamadas Classes de Alfabetização
(CA), agora têm a possibilidade de fazê-lo em um tempo maior-
os três primeiros anos de escolarização, favorecendo
a continuidade do processo de aprendizagem de cada aluno e aluna. A avaliação,
que na seriação era usada para legitimar o fracasso escolar
e conseqüente exclusão de alguns, passa a ser vislumbrada
como instrumento investigador do processo aprendizagemensino (Alves e
Garcia, 1999) , partindo sempre da premissa de que todos os alunos e alunas
são capazes de aprender, cabendo ao(a) professor(a), enquanto mediador
pedagógico, pesquisar a sua própria prática, a fim
de descobrir os melhores meios para garantir que isto aconteça.
O currículo escolar também sofre essas modificações.
O saber “enciclopédico”, antes valorizado e considerado
como único, embora esteja totalmente desconectado com as reais
necessidades apresentadas pelo cotidiano, passa a ser problematizado e
relativizado. Os saberes produzidos fora da escola passam a ser incorporados
ao que é ensinado na escola e, por conta disto, enchem de significado
o conteúdo ensinado pela escola, que passa a ter maior funcionalidade.
De acordo com Documento Preliminar (Fascículo 1)- 1o. Ciclo de
Formação(2000), documento este que formula diretrizes filosóficas,
políticas, teóricas e pedagógicas para o 1o. Ciclo
de Formação, ainda no prefácio escrito pela então
Secretária Municipal de Educação, “Uma nova
organização do tempo, do espaço social, das experiências
curriculares a serviço do êxito de professores e de alunos
toma corpo e se concretiza em sala de aula.”
Em termos de avaliação, o fator primordial interveniente
na organização da escola em Ciclos é o fim da avaliação
classificatória.Não temos dúvidas de que, num primeiro
momento, práticas excludentes de avaliação ainda
estão presentes nos ambientes escolares. Todavia, isto tem um custo
muito elevado: a contribuição para a manutenção
da ordem dominante desumana e excludente.
A simples existência da avaliação classificatória
acaba por desviar a atenção do professor (e, por conseqüência,
dos alunos, pais e comunidade), que acredita que sua função
é mensurar, definir “o quanto o aluno merece” e não
mais em “o que é preciso para que o aluno aprenda mais e
melhor”. Isto é uma questão estrutural, que, inicialmente,
não depende da vontade individual do professor, pois quando entra
na escola seriada, já existe esta lógica implantada e é
cobrado em fazer esta seleção. Já a concepção
de uma avaliação formativa e diagnóstica (potencialmente
mais emancipatória, dialética, libertadora, dialógica)
é favorecida pelo Ciclo, na medida em que a livra da necessidade
de ter de classificar e reprovar.
Nesta concepção, o diálogo é muito valorizado,
no lugar da submissão do aluno ao professor, dando autonomia ao
aluno de participar do seu próprio processo de aprendizagem. Não
só aluno e professor devem cooperar nessa parceria que a avaliação
formativa supõe, mas também toda a comunidade escolar. A
escola tem que explicar aos pais dos alunos como funciona essa concepção
de avaliação, para que eles compreendam e possam participar
desse processo.
Philippe Perrenoud (1999) coloca o receio dos pais em relação
à avaliação formativa:
“Mudar
o sistema de avaliação leva necessariamente a privar uma
boa parte dos pais de seus pontos de referência habituais - avaliação
tradicional, criando ao mesmo tempo incertezas e angústias”.
(p.148 )
Dentro ainda
da comunidade escolar, é de suma importância os(as) próprios(as)
professores(as) trocarem experiências a fim de aprimorarem suas
práticas e compreensões do modelo formativo, fazendo com
que haja reflexão das suas ações pedagógicas.
Essas trocas de vivências devem, entretanto preservar a intimidade
dos alunos, para não romper o vínculo de confiança
estabelecido. Exatamente por estabelecer uma parceria entre aluno e professor
é que a avaliação formativa não deve ser excludente
e classificatória.
“Como
é evidente, é necessário que o aluno se sinta num
ambiente tal de segurança, experimente uma confiança tão
grande no professor, que seja capaz de se abrir, de mostrar, claramente,
as dificuldades que tem, e para as quais precisa de uma ajuda suplementar,
os assuntos que não sabe, que não estudou, que ainda não
compreendeu.”(Cortesão,1993:12)
Ao considerar
a subjetividade dos alunos no lugar de classificá-los, estabelecendo
o diálogo e dando autonomia no lugar da submissão, valorizando
a cooperação no lugar da competição a avaliação
permite que a comunidade estabeleça as suas prioridades, concretizando
assim, a emancipação no lugar da conformação.
Os alunos também devem participar da observação da
sua aprendizagem, analisar suas produções e constatar seus
próprios progressos.
Segundo Perrenoud(1999), a avaliação deve ser entendida
como um processo amplo da aprendizagem, indissociável do todo,
que envolve responsabilidades do professor e do aluno. O alargamento do
conceito da avaliação nos faz ver suas diversas faces e
como o poder está associado à ela. Mostra o seu fim e os
seus meios. Falar da avaliação no âmbito da Educação
Escolar, no campo da Educação de Direitos, nos leva pensar
a sua função, o papel social do professor, a razão
da existência da Escola. Traz a discussão sobre inclusão
e exclusão, privilégios e direitos, direitos e obrigações,
instrução e formação, que alunos queremos
formar, que escola estamos construindo para a nossa sociedade. A avaliação
é um dos meios pelos quais podemos conhecer os alunos. Ela permite
acompanhar os seus passos no dia-a-dia. Descreve as trajetórias,
seus problemas e suas potencialidades, favorecendo que o trabalho de ensino-aprendizagem
se dê de forma coerente com os objetivos e desejos de professores
e alunos. Nos dá idéia do material humano que temos, das
expectativas criadas ou do que podemos fazer para provocá-las quando
existe clima de apatia. Mostra-nos os conhecimentos que a turma já
acumulou e os que ainda não dominam e, assim as possibilidades
de projetos a serem desenvolvidos.
A avaliação não deve priorizar apenas o resultado
ou o processo, mas deve como prática de investigação,
interrogar a relação ensino aprendizagem e buscar identificar
os conhecimentos construídos e as dificuldades de uma forma dialógica.
O erro, passa a ser considerado como pista que indica como o educando
está relacionando os conhecimentos que já possui com os
novos conhecimentos que vão sendo adquiridos, admitindo uma melhor
compreensão dos conhecimentos solidificados, interação
necessária em um processo de construção e de reconstrução.
O erro, neste caso deixa de representar a ausência de conhecimento
adequado. Toda resposta ao processo de aprendizagem, seja certa ou errada,
é um ponto de chegada, por mostrar os conhecimentos que já
foram construídos e absorvidos, e um novo ponto de partida, para
um recomeço possibilitando novas tomadas de decisões. A
avaliação no sistema de ciclos deve estar a serviço
do avanço e não da retenção do aluno.
Pensando com estas questões e sobre a importância que a avaliação
passa a assumir na escola organizada em Ciclos, nos propomos a discutir
os indícios encontrados em uma experiência vivida por uma
das autoras no ano de 2003, na Escola Municipal Ordem e Progresso, situada
no município do Rio de Janeiro, de uma avaliação
menos excludente e mais solidária, a fim de possibilitar a aprendizagem
de todos os alunos e alunas, principalmente os oriundos das classes populares,
que vêm sendo marginalizados histórica e socialmente do saber
reproduzido na escola. Nos propomos a colocar que este projeto de avaliação
é um dos pilares do Ciclo de Formação. Estaremos
trabalhando com alguns textos produzidos pela turma com a qual a professora
em questão trabalhava, uma turma de Período Final do 1 º
Ciclo de Formação , com algum material oficial produzido
pela Secretaria Municipal de Educação (SME) que se propõe
a discutir o assunto e com alguns autores e autoras que nos ajudarão
a complexificar as questões vividas em sala de aula.
Ao utilizar o material escrito pelas crianças, estaremos usando
como ferramenta metodológica o paradigma indiciário de Ginzburg,
que é um “modelo epistemológico fundado no detalhe”(ABAURRE,
1997:14), que possibilita enxergar as idiossincrasias, a singularidade
de cada criança e de cada texto. Nesta busca, estaremos fazendo
esta leitura indiciária acreditando na premissa que todos os alunos
e alunas aprendem, desde que lhes sejam dadas condições
para que isto aconteça.
A pesquisa no cotidiano escolar suscita muitos desafios.É uma pesquisa
complexa de ser realizada, principalmente por quem está imerso
nele. Muitas vezes nos passam desapercebidos os detalhes, as entrelinhas.
Como é complicado ver o não-óbvio, as pistas, os
indícios! Sob nosso ponto de vista se torna mais simples enxergar
o não-visto quando somos estranhos ao ambiente de pesquisa, quando
não fazemos parte dele. Mas o contexto é o de uma professora
que pesquisa a própria prática. Esta busca tem se tornado
constante, com muitos encontros e desencontros, desconstrução
de certezas “imutáveis” e o surgimento de muitas incertezas...A
instigante articulação entre a pesquisa e a relação
pedagógica, ambas em movimento ininterrupto...Não é
fácil de se fazer, ainda mais quando se pretende fugir da linearidade,
tendo como companheira de viagem à complexidade...Mas o que nos
faz optar por este caminho é justamente o cotidiano vivido nas
escolas, desconcertante, complexo, ambíguo...e em constante movimento!
Realizar uma leitura indiciária é buscar “indícios
imperceptíveis para a maioria”(GINZBURG, 1991:145). Desta
maneira, nos aventuramos a ler o trabalho das crianças (e a intervenção
realizada a partir das produções delas) como um caçador
que procura descobrir, através das pistas deixadas, a sua caça.
Nossa procura é descobrir como elas elaboraram suas questões
para escreverem suas estórias e como o trabalho com estes textos
ressignificou a prática pedagógica, apontando caminhos e
possibilidades de aprendizagem que contemplaram não apenas alguns,
mas a todos os alunos e alunas. Somos instigadas, provocadas a não
desprezar os “procedimentos de pesquisa que captem o movimento e
não simplifiquem a complexidade que tece os aspectos privilegiados
na pesquisa.”(ESTEBAN, 2003:127) e buscamos não nos basear
em “características mais vistosas” para tentar examinar
“os pormenores mais negligenciáveis”(GINZBURG, 1991:144).
Algumas estórias
escrita pelas crianças...
Gostaríamos
de ler as estórias escritas pelos alunos e alunas buscando encontrar
indícios de crianças que, além de dominarem o código
escrito, conseguem também enchê-lo de significado, se constituindo
como autores dos seus próprios textos. A maioria das crianças
da turma escrevia de maneira clara, conseguia fazer com que o outro- o(a)
colega ou eu mesma- entendesse suas produções textuais.
Estaremos trabalhando com a escrita espontânea deles, pois as crianças
poderiam escrever quaisquer assunto que quisessem ( uma vez semana elas
recebiam uma folha mimeografada com a proposta “Agora quem faz a
estória sou eu” e outras vezes eram trabalhadas composições
a partir das estórias contadas e de letras de música trabalhadas).
No final do ano letivo, todas as crianças foram enviadas para a
3a. Série, inclusive as que inicialmente não escreviam de
forma clara, pois já haviam conseguido melhorar a compreensão
dos seus textos.
TEXTO 1:

TEXTO 2:

Como podemos
perceber, existem avanços em relação às duas
composições escritas por Felipe. Na primeira, a compreensão
de seu texto está muito comprometida porque ele aglutina as palavras,
sua letra é muito pequena e comete muitos erros ortográficos.
Durante o ano letivo, Felipe teve a oportunidade de elaborar a sua escrita.
Um ano depois, já na 3a. Série, podemos perceber como sua
escrita está mais compreensível.
Felipe se sentiu à vontade para escrever. Em nenhum momento ele
foi considerado inferior as outras crianças que escreviam de maneira
mais clara que ele. Felipe reconhecia que precisava mudar a sua escrita
porque seus colegas reclamavam que não conseguiam entender seus
textos. Uma das autoras do texto, enquanto professora dele, muitas vezes
precisava chamá-lo para ler porque não conseguia fazê-lo...
Felipe não estava sozinho, esta “melhora” se deu em
um processo coletivo. As crianças se ajudavam e, sem perceber trabalhavam
sob a perspectiva da Zona de Desenvolvimento Proximal (Vygotsky, 1991),
que é “a distância entre o nível de desenvolvimento
real, que se costuma determinar através da solução
independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial,
determinado através da solução de problemas sob a
orientação de um adulto ou em colaboração
com companheiros mais capazes”.( p.97).
As crianças não trabalhavam sozinhas. A cooperação
entre elas era estimulada, pois trocavam seus textos e ofereciam informações
aos seus colegas, dizendo o que poderia ser mudado, que parte não
estava muito clara e, por isso, precisava ser melhorada... A dimensão
coletiva do trabalho estimulou a solidariedade entre elas, e o erro, antes
visto como um fator negativo, passou a ser encarado como possibilidade
de novas aprendizagens.
Uma hipótese que levantamos para o fato de sua letra ser tão
pequena e se sua escrita ser aglutinada é o fato de que Felipe
precisava usar óculos. A professora dele descobriu isto quando
a Coordenadora pedagógica da escola contou que o menino usava óculos,
mas havia ficado sem usá-lo desde que seu irmão mais novo
havia quebrado. Seus pais não tinham dinheiro para mandar fazer
outro. No final do ano seus óculos foram feitos e ele começou
a enxergar melhor. Foi fácil perceber isto em suas estórias.
TEXTO 2:

O texto de
Joanna nos dá algumas pistas de como a turma estava acostumada
a trabalhar coletivamente. É a estória de uma menina (como
ela) que decidiu construir e mobiliar uma cabana pequena na quadra da
escola com a ajuda de seus amigos e amigas, que, em suas palavras, acharam
sua idéia “brilhante”. Diariamente as crianças
traziam madeira para construí-la e quando estava pronta, perceberam
que ela estava vazia. Como não seria tão divertido brincar
assim, coletivamente, elas começaram a trazer brinquedos, roupas
e sapatos velhos... Todos se esforçaram para ter a cabana e todos
puderam usufruir dela até o final do ano.
Joanna é uma criança que gosta muito de ler. Filha de um
dos jornaleiros do bairro, sempre tem em suas mãos materiais impressos,
como livros e revistas. Joanna sempre está lendo alguma coisa,
talvez por isso atualmente esteja aperfeiçoando sua escrita. A
menina é muito cuidadosa com o que escreve, quando errava a grafia
de uma palavra e a professora sinalizava o porquê de estar errado,
dificilmente comete o mesmo erro. Tem um vocabulário vasto e sua
escrita é elaborada.
TEXTO 3:

Alef costumava
escrever suas estórias usando letra caixa alta. Acreditamos que
ele fizesse isso porque a professora reclamava muito da sua demora em
realizar as atividades, já que é mais rápido escrever
em caixa alta do que com letra cursiva. Ele sempre precisava de incentivo
para terminar as outras atividades, principalmente quando usavam o caderno,
pois ele dificilmente terminava de copiar o trabalho do quadro, mas quando
ela pedia às crianças que escrevessem, ele entregava seus
escritos. Levantamos a hipótese de que ele gostava muito de escrever
suas estórias porque a professora sempre pedia aos alunos e alunas
que também as ilustrassem, e Alef adorava desenhar. Suas estórias
não eram muito grandes e os desenhos eram caprichados. Talvez ele
dedicasse um tempo maior as ilustrações, como forma de expressão,
uma vez que ele sabia que demorava um pouco mais para fazer as atividades
escritas.
Neste texto ele reproduz, através de sua escrita, um episódio
do programa chamado “Chaves”. Ele demonstra estar acostumado
a assisti-lo quando diz “ELE SEMPRE TOMA ESPORRO E TOMA CASCUDO
DO SEU MADRUGA”, pois isto acontece em todos os episódios.
Depois desta afirmação, ele se propõe a falar especificamente
do episódio em que Chaves monta uma barraca de suco. Alef se sentiu
a vontade de escrever sobre o que assiste na tevê, provavelmente
um dos seus programas preferidos. Ele se sentiu livre para, enquanto autor,
se inspirar em outra estória para escrever a sua...
Gostaríamos de dizer que esta é a leitura possível
que fazemos destes textos. Confessamos que temos nossos ainda-não-saberes
(Esteban,2001) a respeito da leitura indiciária que nos propusemos
a fazer deles, pois ainda estamos aprendendo a ver além das evidências...(Sampaio,2003)
Não tem sido fácil trilhar este caminho, pois como já
dissemos, a pesquisa no cotidiano desconstroi muitas certezas e instaura
muitas dúvidas... Temos a consciência de que nossas conclusões
são apenas interpretações e que outras diferentes
também seriam possíveis. E que trabalhar com estas produções
textuais permitiu a professora repensar a sua prática, a partir
da reflexão e da ajuda das crianças, que sinalizaram caminhos
e novas possibilidades.
A utilização
do material produzido pelas crianças como fonte de pesquisa da
prática pedagógica
Quatro estórias
diferentes, cada sujeito, em sua singularidade, passa uma mensagem. Narrativas
distintas... Cada criança se sentia livre para arriscar, para escrever
o que quisesse. Todos escreviam... Como sujeitos tão diferentes
poderiam conviver e aprender com as suas diferenças? Esta diferença
poderia potencializar a aprendizagem a todos? A professora poderia intervir
sem tirar-lhes esta liberdade? Como poderia ajudá-las a avançar
e usar os saberes delas para, a parti daí, gerar novos saberes?
Qual seria o seu papel enquanto mediadora pedagógica e como poderia
efetuá-lo da melhor maneira possível?
De acordo com o que já dissemos anteriormente, o trabalho coletivo
era estimulado. Em seus anos de magistério a professora percebeu
que apenas corrigir o texto e devolvê-lo a seu(a) autor(a) não
bastaria. Muitas crianças guardariam seu texto na mochila ou em
qualquer lugar e não dariam uma olhada nele.Poucas seriam aquelas
que usariam as sinalizações feitas por ela para corrigirem
seus erros. Em vista disto começou a buscar alternativas que as
fizessem reelaborar a própria escrita. De início, escrevia
alguns bilhetes, dando algumas dicas para o(a) autor(a) e sublinhava o
erro no texto. Por exemplo, se a criança tivesse esquecido de usar
letra maiúscula no inicio das frases ou dos nomes próprios,
escrevia isso no bilhete e sublinhava a letra minúscula no início
da palavra. Algumas crianças liam seus bilhetes, outras até
respondiam, e por isso achou que estava no caminho “certo”
até o dia em que uma ex-bolsista e aluna da UFF, que estava visitando
a turma semanalmente, viu um dos seus alunos jogar o texto dele fora,
na lata de lixo, provavelmente porque a professora havia sinalizado que
seu texto estava incompreensível (e talvez isto o tenha feito desconsiderar
sua produção textual a ponto de jogá-la fora!).Tal
fato desconstruiu suas certezas e a fez repensar sua prática, mostrando
a necessidade de descobrir outros caminhos, sendo um deles a correção
coletiva dos textos produzidos pelas crianças, pois apenas a mediação
da professora não estava contemplando a todos. E precisava fazê-lo,
pois seu compromisso, enquanto professora, era com todos, não apenas
com uma parte da turma...
Procurando trabalhar com o erro numa perspectiva diferente da menos valia,
com a possibilidade de aprender e avançar em direção
do ainda não conhecido, a professora começou a selecionar
algumas estórias escritas por eles para fazer trabalhar com a turma
coletivamente (um dos objetivos específicos do trabalho com a Língua
Portuguesa encontrado na “Proposta de trabalho para as turmas do
1o. Ciclo de Formação e da Progressão”(2004),
documento produzido pela SME/RJ é: “Produzir e fazer revisão
do texto escrito-individualmente, em duplas, em grupos)”. A fim
de evitar constrangimento, perguntou a eles se seria melhor manter no
anonimato o(a) autor(a) e eles responderam que sim, que não teria
problema em fazer isso desde que ela não dissesse o nome da criança.
Ela passou a escolher, uma vez por semana, uma estória para ser
corrigida com a ajuda das crianças. Copiava a mesma da maneira
que estava escrita no quadro branco e, depois, com o pilot colorido, ia
fazendo as correções com eles. Muitos achavam os erros ortográficos
sem ajuda, mas às vezes a professora precisava sugerir que havia
alguma palavra ou sinal faltando, principalmente nos erros de pontuação.
Aproveitava esses momentos para sinalizar os erros mais comuns que percebia
ao ler o material produzido por eles e elas, como, por exemplo, as crianças
estavam com muita dificuldade em estruturar os diálogos pela falta
da pontuação correta e porque elas escreviam as falas na
mesma linha, dificultando saber quando cada personagem estava falando.
Ao corrigir as estórias, mostrava que era possível escrever
as falas em linhas diferentes, o que facilitava em muito a compreensão.
Usava esses momentos para lembrá-los que escrevemos para o outro,
por isso usamos as mesmas regras de uma língua em comum para que
outras pessoas possam entender a mensagem que estou querendo transmitir.
Não há comunicação quando o outro não
entende...
O resultado foi muito proveitoso porque foi possível perceber que
muitas crianças começaram a se apropriar das informações
gramaticais ensinadas pela professora. Elas começaram a perceber
a sua funcionalidade na construção dos seus próprios
textos. E a elaborar seus conhecimentos para ajudar a correção
deles. Ela ficou tão feliz com o resultado que propôs que
elas trocassem seus textos, para ajudar o colega e receberem ajuda mutuamente.
Explicou que os autores famosos têm uma outra pessoa, o revisor,
cuja função é enxergar o erro que o autor, por estar
imerso no próprio texto, não consegue enxergar. Elas fizeram
isso e mais: começaram a escrever bilhetes, como a professora fazia
inicialmente, dando dicas que elas julgavam necessárias aos colegas.
Esta prática gerou muita solidariedade entre as crianças,
pois ao invés de sinalizar o erro do(a) colega(a) para se mostrar
melhor que ele(a), como até então acontecia, elas começaram
a se ajudar mutuamente. O erro deixou de ter um lugar negativo, de menos
valia, para assumir um lugar importante na aprendizagem, que era o de
sinalizar o que ainda não havia sido aprendido.
Numa etapa posterior, utilizou o mimeógrafo para reproduzir as
estórias, sempre respeitando o anonimato, como foi pedido. As crianças
corrigiam e escreviam as dicas para o(a) colega(a), sempre com o intuito
de ajudá-lo(a) a usar as ferramentas lingüísticas para
melhorar a compreensão do texto. Mais bilhetes surgiram e estes
bilhetes eram entregues ao(a) autor(a), exceto uma vez em que a professora,
que é reflexiva e pesquisa a própria pratica, perguntou
a turma se poderia ficar com os bilhetes. A menina que havia escrito o
texto leu os bilhetes e os entregou depois da leitura.

(Um destes
bilhetes que guardo comigo, escrito pelo aluno Fernando)

(Outro bilhete, desta vez escrito
por Wanessa)

(Bilhete
escrito pela aluna Ellen)
Um dos objetivos
gerais do Ciclo de Alfabetização no município do
Rio de Janeiro é fazer da criança alguém que lê
e escreve criticamente, reconhecendo a função social da
escrita. Como eles já haviam aprendido o código escrito,
pois todos liam e escreviam, mesmo em diferentes estágios, a professora
percebeu que sua função, enquanto mediadora do trabalho
pedagógico, seria oportunizar um maior domínio deste código
que eles já haviam aprendido de várias maneiras, disponibilizando
material impresso, pois sabia que isto ajudaria e favorecendo a troca
de saberes entre eles e elas. Seu objetivo era auxiliar a todos e não
deixar os que não escreviam com clareza pelo caminho. Pôde
perceber um avanço significativo da escrita deles, principalmente
de Felipe. Ver esse avanço foi muito proveitoso e gratificante
para todos.
Muitas crianças não terminaram o ano com a escrita “perfeita”,
continuaram cometendo os mesmos erros, mas a professora pôde ajudá-las
a conhecerem um pouco mais sobre a arte de escrever, consciente de que
adquiri-la se dá em um processo. Elas teriam ainda outros anos
para aperfeiçoá-la, pois estar alfabetizado vai mais além
de dominar o código escrito, é principalmente ler o mundo
e sua palavra.
Realizar semanalmente atividade de escrita espontânea, com eles,
possibilitou uma reelaboração da mediação
e da intervenção pedagógica. A professora pode perceber
a singularidade de cada criança e de seus processos alfabetizadores
quando lia seus textos. Isto a ajudou a “Refletir sobre a avaliação,
repensá-la em sua dinâmica, procurar trajetos nos quais ela
cotidianamente se (re)constrói, como parte de um processo coletivo,
dialógico, imprevisível, complexo(...)”( ESTEBAN:
2001, 191). Com esta atividade, com o seu fazer diário e com a
reflexão referendada neste fazer está aprendendo, a cada
dia, a ser uma professora melhor para seus alunos e alunas.
BIBLIOGRAFIA:
ABAURRE,
Maria Bernadete Marques; FIAD, Raquel Salek; MAYRINK-SABINSON, Maria Laura
Trindade. Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho
com o texto. São Paulo: Mercado de Letras, 1997.
CORTESÃO, Luíza. Avaliação Formativa- que
desafios? In: Coleção Cadernos Pedagógicos. Lisboa:
Edições Asa, 1993.
ESTEBAN, Maria Teresa. Avaliar: ato tecido pelas imprecisões do
cotidiano. In: GARCIA, Regina Leite (org). Novos olhares sobre a alfabetização.
São Paulo: Cortez, 2001.
_____________________ O que sabe quem erra? Reflexões sobre a avaliação
e fracasso escolar. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
GARCIA, Regina
Leite. A difícil arte/ ciência de pesquisar com o cotidiano.
In: GARCIA, Regina Leite (org). Método; Métodos; Contramétodo.
São Paulo: Cortez, 2003.
GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
GINBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário.
In: Mitos, emblemas e sinais.São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
PERRENOUD, Phillipe. Avaliação: da excelência à
regulação das aprendizagens. Porto Alegre: Artes Médicas
Sul, 1999.
PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. Proposta de trabalho para as turmas
do 1o. Ciclo de Formação e da Progressão, 2004.
______________________________________________ 1o. Ciclo de Formação-
Documento preliminar(Fascículo 1), 2000.
SAMPAIO, Carmen Sanchez. Compreender o compreender das crianças
em seus processos alfabetizadores. In: GARCIA, Regina Leite (org). Método:
pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente: o desenvolvimento
dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins
Fontes, 1991. |
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