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A
ESCOLA DO CHICO BENTO: UMA ANÁLISE CULTURAL
Adriana Lemes - Universidade Luterana do Brasil
– ULBRA
O presente trabalho origina-se de uma parte da dissertação
de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação
em Educação (PPGEdu) da Universidade Luterana do Brasil,
defendida pela autora em maio de 2005. O objetivo desta pesquisa é
analisar a representação docente presente nas histórias
em quadrinhos de Mauricio de Sousa, em específico nas revistas
do Chico Bento, para identificar, através da recorrência,
qual a imagem de professora chega às mãos (e mentes) de
crianças (e de adultos), legitimando significados postos em circulação
nesses artefatos culturais.
Pela incursão no campo dos Estudos Culturais Pós-modernistas,
autores como Stuart Hall, Marisa Vorraber Costa, Rosa Hessel Silveira,
Tomaz Tadeu da Silva, entre outros/as, orientam teoricamente as análises
das representações circulantes nas historinhas do Chico.
Apoiando-se nesse terreno teórico (dos EC ), que se interessam
pelas questões de representação, identidade e poder,
busca-se focalizar dimensões específicas da identidade da
professora
Através de análise textual, a figura da professora é
destacada de seu contexto a fim permitir o estudo da composição
da personagem que carrega consigo o estereótipo da professora tradicional
e conservadora, enfatizando o perfil físico, psicológico
e profissional que, em composição, produzem os significados
correntes.
Em relação à questão da representação
da docência, vale lembrar Silveira (2002, p.8):
As representações de professora e de professor
oscilam em nossas culturas ocidentais urbanas entre a conveniência
de se preservar o valor e a dignidade da profissão de professora,
seu alegado caráter de sacrifício e dedicação,
dentro de uma imagem mais geral de seriedade da instituição
escolar, e a visão burlesca, na qual a instituição
é vista como abrigo de professoras “histéricas”,
irritadiças, com alunos impertinentes(...)
Dentro desse enfoque teórico, interessa destacar,
nas imagens encontradas, as recorrências, as continuidades, os traços
mais marcantes, articulando-os com representações circulantes
em nossa cultura
As mudanças nas concepções de educação,
a utilização de novas tecnologias no campo pedagógico,
o incremento da incorporação das práticas educativas
pautadas pelo discurso da construção do conhecimento e outras
modificações dos discursos pedagógicos, sugerem-nos
a busca por essa representação de professora.
As representações presentes nas obras são tomadas
como constituidoras de significados sobre os elementos analisados, sendo
o conceito de representação um dos pilares teóricos
dos Estudos Culturais. Para Hall (apud Silveira 2002) ”representação
é a produção de sentido através da linguagem
(...) e [nela] não há uma simples relação
de reflexo, imitação ou correspondência um-a-um entre
a linguagem e o mundo real”.
No trânsito das Hqs entre os leitores pode ocorrer um processo de
naturalização dessas representações, que,
deixando de ser questionadas, ganham estatuto de verdade.
Nessas histórias, dirigidas a leitores jovens (mas que atingem
a uma variedade de público ilimitada), é o conjunto de signos
que marca e identifica como tal, a professora.
É necessário ressaltar que não há a pretensão
de avaliar a postura docente ou sua prática pedagógica,
mas evidenciar as representações, provocando a problematização,
para que, com a reflexão, as redes de significados que vierem a
ser levantados possam auxiliar para que as relações entre
esses elementos possam ser melhor entendidas a partir desse e em diversos
outros artefatos culturais.
A professora do Chico
A função docente, nas histórias do Chico Bento, é
desempenhada pelo estereótipo consagrado de mestra. Trata-se da
representação da professora tradicional circulante nos produtos
culturais de nosso cotidiano. Como não podia deixar de ser, a docência
é atribuída a uma personagem feminina, reforçando
a feminização do trabalho docente : Dona Marocas, a professora
da escola de Chico Bento, em todas as histórias, apresenta compondo
o mesmo visual - cabelo amarrado em coque, óculos, sapato baixo,
brincos discretos, roupas que alternam entre conjunto saia/ blusa e vestido,
mas ambos na altura dos joelhos - é representada, também,
por uma composição carregada de “emblemas” da
profissão, como livros, réguas, e materiais afins.
Quando Louro (2002) descreve as antigas professoras, reconstituídas
através de imagens fotográficas, parece estar descrevendo
Dona Marocas:
figura severa, de poucos sorrisos, cuja afetividade estava
de algum modo escondida.(...)Roupas(...) abotoadas,(...)cabelo em coque,
costas retas (...), munida de uma vara para apontar o que está
escrito no quadro-negro; quase sempre de óculos.(...)Disciplinadora
de seus alunos e alunas.
A própria deferência no tratamento, remonta,
segundo Louro, às primeiras escolas, onde a professora era tratada
por “Dona”, como comprova um relato datado de 1877, no qual
uma jovem brasileira justifica seu ingresso no Magistério, por
orientação da professora, Dona Maria das Dores da Silva
Cardoso (p. 463).
1 O visual e o sensual
É interessante observar como Eisner (2001, p.100) refere-se ao
trabalho do artista seqüencial ao elaborar a forma humana, nos quadrinhos.
Diz ele que o “corpo humano, a estilização da sua
forma, a codificação dos seus gestos de origem emocional
e das suas posturas expressivas são acumulados e armazenados na
memória, formando um vocabulário não-verbal de gestos”.
Daí a importância de se analisar os detalhes com que Mauricio
de Sousa compõe a personagem da professora, apontando elementos
que podem ser significativos na representação docente nos
quadrinhos e seu alcance percebido pelo leitor.
Citada por Daniela Ripoll (2002), Guacira Louro aponta para a necessidade
de se demonstrar que
não são propriamente as características sexuais,
mas é a forma como essas características são representadas
ou valorizadas, (...) que vai constituir, efetivamente, o que é
feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico.
Ou seja, a questão do vestuário e a expressão
corporal, propriamente dita, podem levantar questões interessantes
sobre a regulação dos corpos e das sexualidades e sobre
a demarcação do que é feminino e do que é
masculino.
Ainda que mantenha características básicas de um modelo
mais “clássico” de docência difundido entre nós
, Dona Marocas subverte a imagem assexuada com que é retratada,
freqüentemente, nos mais diversos artefatos culturais, a professora,
ao ser representada com uma dose de sensualidade que poderíamos
entender como incomum à professora tradicional da zona rural. Ela
aparece de batom vermelho, suas roupas, embora nos comprimentos usuais,
são bastante coladas ao corpo, delineando suas formas bem marcadas
de acordo com o padrão de beleza da mulher brasileira: os seios
fartos e empinados, as nádegas volumosas em proporção
à cintura fina. A pele das partes visíveis do corpo é
clara, sem marcas, demonstrando uma certa preocupação da
professora com seu corpo. Em nenhum momento das histórias analisadas
faz-se referência à sua idade, mas a ausência de rugas,
a estrutura do corpo e o modo de vestir podem sugerir uma mulher entre
25 e 30 anos.
A professora chega a aparecer de biquíni na história em
que flagra Chico nadando ao invés de estudar. Ainda assim, não
se desfaz dos óculos e de alguns recursos como o quadro-negro e
a ponteira , e o que se percebe é que o garoto não demonstra
nenhum estranhamento ao ver a professora de biquíni, tampouco registra-se
constrangimento entre os dois, desinstaurando qualquer relação
de apelo erótico entre professora e aluno, ao contrário
do que é analisado por Daniela Ripoll (2002) , quando remete à
questão do amor e da paixão não-filial do aluno pela
professora como fator de influência no desempenho escolar do mesmo.
Fora da sala de aula, a professora mantém o mesmo visual profissional,
sempre carregando seus livros, reforçando a imagem da professora
que vive dedicada à profissão, leva trabalho para casa,
sempre está envolvida com livros e cumpre, em tempo global, sua
missão, reforçando, segundo Louro (2002, p.466), “a
representação de professora ideal – a grande mestra
– dedicada integralmente aos alunos e completamente afastada de
outras relações afetivas”.
Nas revistas examinadas, de 1995 a 2005, sempre encontramos a professora
representada da mesma forma, demonstrando a intenção marcada
do autor em manter na figura da professora seu perfil atemporal, da professora
tradicional da zona rural, recatada, mas sutilmente sensual; assim como
não segue as tendências ditadas pela moda, também
resiste às inovações pedagógicas, como se
poderemos ver na seção Práticas Docentes. Nesse sentido,
reafirmamos a postura do autor quando, ao propor uma substituta, apresenta
outra professora (Dona Benairdes) com o mesmo estilo: recatada, mas sensual.
Dona Marocas, freqüentemente, nos quadrinhos de Mauricio de Sousa,
aparece acompanhada pela figura da maçã. De acordo com o
dicionário de símbolos , a maçã é o
símbolo figurado do conhecimento, do saber, de ciência, da
revelação. De outra forma, Bettelheim (1999), lembra que
“em muitos mitos e contos de fadas, a maçã representa
o amor e o sexo, nos seus aspectos benevolentes e perigosos” e ressalta,
ainda, que “o vermelho da maçã evoca associações
sexuais”, referindo-se à parte vermelha da fruta como erótica.
De forma ingênua, podemos considerá-la, também, apenas
um clichê a mais, a reforçar a figura estereotipada da professora
e o hábito de os alunos oferecê-la, carinhosamente à
professora, especialmente à das séries iniciais. Ainda no
dicionário de símbolos consta a informação
de que, na mitologia escandinava, a maçã é fruto
que mantém a juventude, é símbolo de renovação
e de frescor perpétuo, o que justificaria a juventude, marcada,
da professora.
Parece que a professora do Chico cumpre um regulamento escolar que nos
é lembrado por Louro (2002, p.460), “de se trajar de modo
discreto e severo” (ainda que, nesse ponto, subverta, a seu modo,
a regra),” manter maneiras recatadas e silenciar sobre sua vida
pessoal”, pois nada é dito sobre sua família, seu
estado civil, se mora com os pais, se tem namorado, se quer ter filhos,
qual sua formação profissional, sua religião, seu
salário, etc. Essa representação de professora é
muito adequada para
fabricar e justificar a completa entrega das mulheres
à atividade docente, serve para reforçar o caráter
de doação e para desprofissionalizar a atividade. A boa
professora estaria muito pouco preocupada com seu salário, já
que toda sua energia seria colocada na formação de seus
alunos e alunas. Esses constituiriam sua família; a escola seria
o seu lar e (...) de certa forma, essa mulher deixa de viver sua própria
vida e vive através de seus alunos e alunas; ela esquece de si.
(idem)
Para Eisner (2001, p.100), “quando uma imagem é
habilidosamente retratada, ao ser apresentada ela consegue deflagrar uma
lembrança que evoca o reconhecimento e os efeitos colaterais sobre
a emoção. Trata-se aqui,(...) da memória comum da
experiência.” O aspecto universalizante que Mauricio de Sousa
cria, a partir de sua personagem, para a função docente,
pode contribuir para que a representação da mesma aproxime-se
ou afaste-se do estereótipo mostrado, dependendo da experiência
individual. A “leitura” da postura ou da “linguagem
corporal” da professora pode desenvolver a habilidade de reconhecimento
de diversos indicadores externos de sensações internas.
Para o precursor da Hq moderna, “nas histórias em quadrinhos,
a postura do corpo e o gesto têm primazia sobre o texto. A maneira
como são empregadas essas imagens modifica e define o significado
que se pretende dar às palavras”.(Idem, 2001, p.103).
2 Práticas docentes
Freqüentemente posicionada em frente ao quadro-negro, a postura da
professora reflete a metodologia que tradicionalmente é associada
à docência: olhos fechados, indicando a propriedade e seriedade
com que expõe seu saber, recorrendo, muitas vezes, à ponteira
para indicar o conteúdo, no quadro-negro, seguindo roteiro pré-estabelecido
registrado em livro ou em folha de papel.
É relevante ressaltar, nessa seção, a recorrência
da imagem da professora dando aula sentada à sua mesa. Em diferentes
momentos e situações, inabalavelmente, permanece sentada,
ereta, frente aos alunos.
a) A dona da verdade
De olhos fechados e dedo em riste, a professora expõe seu conteúdo,
sem intervenções dos alunos, atribuindo, com seu tom magistral,
maior veracidade à sua exposição.
De seu discurso, podemos depreender o tratamento tradicional que dá
aos conteúdos, entre outros, quando afirma, com propriedade, terem
aprendido tudo sobre o corpo humano. O contexto marca tão intensamente
que o sujeito da ação é a própria professora,
que nem mesmo a escolha pela conjugação do verbo na 1ª
pessoa do plural, convence de que tenha havido alguma coletividade no
ato. Para Silveira (1996), “a utilização de tais formas
professorais [nós] simula uma relação de aproximação
concreta de posse entre conteúdo e aluno/professor.”
b) Diz aí...
Predominantemente a professora é retratada dirigindo-se oralmente
aos alunos, seja através da técnica de perguntas, seja induzindo
a respostas “prontas”, ressaltando a memorização
dos conteúdos, sem evidências da incorporação
de novas estratégias que levem a uma maior problematização
sobre as informações. A propósito, Silveira (1996)
observa que a “verificação do conhecimento”
é uma das funções do uso da “estrutura lingüística
de pergunta”, indicando que “o uso da “pergunta pedagógica”é
um dos instrumentos mais freqüentemente utilizados para o exercício
do controle sobre o processo pedagógico, por parte do(a) professor(a”).
(Grifos da autora). Vale ressaltar a perplexidade da professora frente
às respostas não esperadas/desejadas.
c) Professora inovadora (?)
A professora parece não convencer quando faz tentativas frustradas
de aliar o lúdico ao tradicional na sistematização
de conteúdos. Os alunos, por exemplo, demonstram estranhar essa
metodologia não usual da professora, pois as ações
da mestra mantêm a formatação tradicional e conservadora,
implicando incongruências, por exemplo, entre “brincadeira”
e dedo em riste, com tom de superioridade, bem como entre o convite à
brincadeira, por um lado, e a atribuição de “nota”
à mesma, por outro. Para os alunos, é evidente, através
da pronta reação ao convite, a desvinculação
de “aula” com o “brincar”, vistos como dois acontecimentos
completamente dissociados no tempo e no lugar.
d) Responsável
Uma das histórias analisada aponta para um aspecto bastante recorrente
da profissão docente, qual seja a elevada carga horária
da professora, sendo que, pela manhã, ela trabalha com a turma
(de alfabetização) de Chico e, durante a tarde, atende outra
turma não especificada. Além disso, o compromisso que tem
com as turmas é bastante observado, visto que o Chico estranha
o fato da professora alegar estar doente, como se isso fosse algo incomum.
2.1 A aula
a) Monotonia
Além de reforçar a idéia de que Chico esteja na classe
de alfabetização (pois a professora o faz escrever o alfabeto
no quadro), a atividade é tão enfadonha que o aluno chega
a dormir, o que, com um tom de ironia, é recorrência freqüente
desse personagem.
O sono durante as aulas, situação freqüentemente retratada
em relatos humorísticos sobre escola, constitui o sinal visível
do aborrecimento e do tédio do(s) aluno(s) em situação
escolar.
A representação do aluno chateado em aula serve de representação
em variados artefatos culturais que tratam da escola e temas escolares.
No Conto de Escola , de Machado de Assis, por exemplo, o aluno, tal qual
Chico Bento, de primeiras letras, prefere outras atividades a participar
da aula:
Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agra que
ficava preso, ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo e
o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo,
o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano.
Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças
da escola, no claro azul do céu, (...) um papagaio de papel (...).
E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática
nos joelhos.
Note-se que os contextos dos alunos são diferentes, mas a sensação
é a mesma. Contrapõem-se zona urbana e zona rural, em épocas
distintas, porém a aula, a escola provocam, nos alunos, sentimentos
afins.
b)Vigiar...
Diversas passagens que retratam a figura da professora à porta,
recepcionando os alunos ou despedindo-se deles a seguir sugerem inspiração
do olhar foucaultiano que estabelece relações entre disciplina,
controle e vigilância; o cuidado que a professora dispensa aos alunos
envolve a distribuição dos mesmos nas dimensões do
tempo, espaço e agência. (Silveira, 2002). Foucault examina
o uso de instrumentos simples, como o olhar hierárquico; sem dúvida,
o olhar vigilante da professora onipresente. (Idem)
Até fora do horário escolar a professora aparece cobrando
que o Chico Bento esteja envolvido, de alguma forma, com as atividades
escolares, sobrepondo essa obrigação ao lazer.
Como nos afirma Silveira (idem), o cuidado e a vigilância da professora
podem ser exercidos na dimensão tempo, do horário das ações
(...) .De certa forma tem-se uma espécie de professora-relógio,
sempre atribuindo nota à pontualidade dos alunos, disciplinando
e estabelecendo seus limites.
c) E punir...
Dona Marocas se apresenta, em diferentes situações, infligindo
penas a ações inadequadas de seus alunos, em especial, do
Chico Bento.
O fato de o aluno dormir na aula e a turma respondendo, em coro, às
perguntas da professora, induzia o aluno, já sonolento e disperso,
a um estado de relaxamento tão profundo, que o fazia roncar. Essa
ação espontânea e incontrolável de seu estado
físico, propiciado justamente pela forma com que a professora conduzia
a aula, fez com que o aluno fosse punido. O objetivo desse ato punitivo
seria o de expor, o aluno infrator, à frente da turma, cerceando-lhe
as ações; privando a criança em idade escolar (ativa,
dinâmica, inquieta) de seus movimentos. Já no castigo, insistindo
na falta, para total irritação da professora, o aluno recebe
a segunda punição: escrever cem vezes a mesma frase (ditada
pela professora) a fim de apropriar-se da autoria da afirmação,
demonstrando arrependimento pelo mau comportamento, implicitamente comprometendo-se
a não incidir no erro. É importante observar que, na escrita
do Chico, geralmente marcada pela oralidade, predomina uma transcrição
da fala correta (como o r final de dormir) da professora. Para o aluno,
a professora verbalizara cem vezes, a fim de, com a repetição,
ele não esquecesse de que havia errado e como não deveria
fazer mais. Essa forma de castigo, tão tradicional quanto os estereótipos
de escola, veiculados nos mais diversos artefatos culturais, predominou
por muito tempo nas práticas escolares.
Na mesma revista, de modo a ressaltar a face punitiva
da professora, a mestra é flagrada induzindo o aluno ao recorrente
banquinho, destacando como esse objeto mantém seu lugar e função
específicos e demarcados na sala de aula, tão naturalmente
disposto, quanto as classes, o quadro-negro, a lixeira, as janelas, etc.
Vale apontar o vocabulário coloquial, produzido pelo nível
de irritação da professora, para dirigir-se ao aluno, e
a atitude submissa (com ombros baixos, olhos tristonhos, balançando
a cabeça sem nada dizer) do mesmo ao, resignado, cumprir sua pena.
3 Externando sensações
a) Positivas
Em poucas situações a professora é retratada expondo
o conteúdo, sorrindo, terna, para com os alunos. Em algumas vezes
a professora demonstra paciência ao explicar e carinho na condução
de algum diálogo; aparece, uma vez, atenciosa, dispondo-se a atender
um aluno com dificuldade após o término da aula, aconselhando
e propondo um ensino individualizado.
c) Negativas
A relação que se estabelece entre a figura da professora
descontrolada e a cultura escolar, remete-nos, pela incidência,
à construção de uma identidade fortemente marcada
por essa característica, para generalizar o corpo docente. Análises
dessa ocorrência podem ser aprofundadas em obras como as de Silveira
, que analisa o discurso escrito de obras de literatura infantil, a partir
das representações dominantes, apresentando seções,
como Quanto mau humor! que, dentre outras seções, analisa
a faceta repressiva e destemperada das personagens professoras. Nessa
linha, destacamos o perfil descontrolado de Dona Marocas.
O primeiro sinal demonstrativo de irritabilidade, constituindo a figura
de uma professora braba, se dá pelas mãos na cintura e as
sobrancelhas franzidas. Outras atitudes reforçam o caráter
carnavalesco imprimido pelo autor/desenhista para fazer com que o ridículo
e o grotesco constituam fonte de humor constante (Silveira, 2002). Assim
caracteriza-se a professora como descontrolada emocionalmente, com direitos
a chiliques (idem), ridicularizando a função docente.
4 Produção textual
A forma com que a professora propõe essa atividade está
longe de ser comparada à abordagem contemporânea de produção
textual, prescrita, por exemplo, pelos Parâmetros Curriculares Nacionais,
principalmente no que tange à proposta, em si. A recorrência
ao tema livre, sem estímulo visual ou de referência (ação
já realizada ou debate sobre tema, por exemplo) reforça
a perspectiva de fracasso escolar, causado pela desmotivação
para a escrita, pela visão de escrita como um castigo, espaço
de incompetência lingüística, de vazio, de branco, podendo
fazer com que os leitores tenham as mesmas sensações, identificando-se,
prontamente, com as personagens.
5 A avaliação
Reforçando o caráter tradicional da representação
pedagógica, a professora avalia, quantitativamente, todos os aspectos
de desenvolvimento dos alunos. Exercendo soberanamente o poder de avaliar
(quantificar), a professora demonstra tristeza ao atribuir notas altas
e satisfação em atribuir notas baixas.
6 A cola
O tratamento dispensado pela professora à prática da cola,
assume o caráter de exagero.Em dia de prova, a “revista”
nos alunos, em busca de cola, é prática corrente. Vale ressaltar
que, em todas as buscas, a professora consegue apreender as colas e esse
ato nunca atinge o sucesso.
7 Linguagem correta
A professora não compactua com seu grupo a fala regional. Seu nível
de linguagem, mesmo oral, é o padrão, o que a distancia,
de certa forma, dos alunos. É interessante notar que a professora
não tem preconceito lingüístico, pois não foi
observada correção à fala dos alunos ou qualquer
espécie de repressão expressiva.
Considerações finais
Ao finalizar este texto, retomamos um de seus pressuposos, que é
o de que qualquer investigação sob a ótica dos estudos
Culturais não se presta à emissão de julgamentos
ou, para a área da Educação, como foi o caso desse
estudo, para o estabelecimento de prescrições de práticas
educativas. A proposta consiste, sim, em destacar, nos mais diversos artefatos
culturais, aspectos impregnados de significados diversos que, contextualizados,
inseridos em nosso cotidiano, passam-nos despercebidamente.
A análise dos gibis do Chico Bento, do quadrinista Mauricio de
Sousa, enquanto texto cultural, mostrou-nos um jeito de “ver”
a professora e a problematização dessa figura traz à
tona representações que têm sido difundidas, naturalizadas
e cunhadas, atuando na construção da identidade do/a professor/a
dos pequenos alunos leitores, e na elaboração da idéia
do que é/pode ser a professora e suas práticas; além
disso, esse gênero (Hq) tem tido uma penetração bastante
grande dentro e fora do campo educacional, disseminando “verdades”,
dentro do formato de um produto de entretenimento.
Para Wortmann (2002), “trabalhar com representações
implica descobrir e interpretar entendimentos dos sujeitos sobre “o
mundo real”, buscando aproximá-los de “modelos e padrões”
já definidos”. A autora esclarece que, na perspectiva pós-estruturalista,
segundo Tomaz Tadeu da Silva, a representação é entendida
como inscrição, marca e traço. Para esse autor (apud
Wortmann, 2002), o significado, aquilo que é supostamente representado,
nunca está plenamente presente no significante; a representação
– como processo e como produto – nunca é fixa, estável,
determinada, é um sistema de significação e os processos
e as práticas de significação são fundamentalmente
sociais. Ainda segundo esse autor (idem), é em sua inserção
em um sistema de significação que a representação
adquire sentido.
Citando Hall, Wortmann (idem) acrescenta que a importância dos sons,
palavras, notas musicais, gestos, expressões e roupas para a linguagem
não vem do que esses elementos são, mas do que eles fazem,
de sua função; eles constroem significados e os transmitem
– eles significam e a produção e a circulação
de significados dá-se na linguagem e na cultura. Nessa vertente,
tomamos as representações de escola e seu universo, presentes
nas histórias em quadrinhos do Chico Bento, como constituidoras
de significados sobre tal instituição e de sujeitos envolvidos
com a mesma, ressaltando que esse exame é apenas uma das muitas
opções possíveis para discuti-las.
A professora é representada como protagonista de um ensino “tradicional”,
percebendo-se, nas histórias, a referência a métodos
de ensino considerados “ultrapassados” de acordo com as novas
“tendências pedagógicas”. A solicitação
de redações (e não produções textuais),
bem como o tratamento a ela dispensado (de rígida cobrança,
de valoração quantitativa e falta de contexto), além
da ênfase à memorização de conteúdos,
a utilização de um único instrumento de avaliação
(prova), a intensa investida contra as “colas” e a aplicação
do castigo são exemplos de prática docente há muito
discutida.
Com o vestuário atribuído historicamente às professoras
(de recato, pudor, decência, virgindade..), pode-se pensar na relação
que as histórias estabelecem entre as questões de gênero
e sexualidade e a imagem “clássica” da docência:
a professora jovem, bonita, recatada, mas sensual; aparentemente solteira,
por não haver referência a nenhuma ligação
afetiva ou de qualquer espécie e que, nesse nível de ensino,
não desperta qualquer espécie de atração física
nos alunos. Ao inventar sua professora, Mauricio de Sousa institui e veicula
sua representação “ideal” de mulher docente
O posicionamento corporal frente ao quadro ou frente à turma e
a utilização que faz dos recursos didáticos e das
técnicas de ensino é um traço característico
da concepção mais tradicional de professora. As ameaças,
os gritos, o descontrole, podem revelar o imperativo na cultura escolar
relativo à manutenção da disciplina ou da autoridade
do/a mestre/a.
Por outro lado, apesar de não considerar o ritmo de aprendizagem
diferente de aluno para aluno, a professora surpreende por aceitar, dada
a ausência de repreensão, a diversidade lingüística
de seus alunos, não demonstrando tomar a gramática-padrão
como a única forma (e “correta”) de expressão
oral e escrita. Surpreende, também, pelo relacionamento (longe
de ser afetivo) com seus alunos, tidos como da fase de alfabetização,
subvertendo a relação entre maternidade e docência
das séries iniciais, que está presente em outros artefatos
culturais e que integra também um discurso corrente sobre afeto
e educação.
Através das histórias em quadrinhos, todas essas representações
são difundidas mesclando prazer e entretenimento com a fascinante
demonstração da arte e criatividade do autor, o que justificaria
a ascensão desse gênero a um patamar mais atual tanto na
literatura quanto na arte.
A reflexão que se propôs sobre como os gibis representam
a escola e sua relação com as posturas pedagógicas,
reflete justamente a preocupação dos Estudos Culturais em
mostrar o quanto os artefatos culturais contêm pedagogias culturais,
ligadas a determinadas representações e “conceitos”
veiculados. As histórias em quadrinhos do Chico Bento, ao enfatizar
características marcantes dos personagens e determinadas práticas
educativas para significar claramente um ensino tradicional, “conservador”,
conseguem particularizar as ações e transmitir conceitos
de modo bastante eficiente, como igualmente acontece com as charges, as
piadas, os livros de literatura infantil, a TV e diversas produções
culturais onde também “se criam e recriam significados sociais”
para as mais diversas questões e “produzem-se e reproduzem-se
valores culturais” sobre as mesmas, “articulando e rearticulando
identidades” (Wortmann, 2002).
Resta a sugestão de se investir em análises dos diferentes
artefatos, buscando “dimensões para aprofundar o estudo das
representações da docência” (ou de outros papéis
social/culturalmente desempenhados), “de suas contradições,
inconsistências, associações esdrúxulas e práticas
escolares” (entre outras). (Silveira, 2004)
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