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HERÓIS
EM AÇÃO: UMA LEITURA MULTIDISCIPLINAR
Ana
Lúcia Furquim de Campos - PG/UNESP/AraraquaraUNIFRAN/UNI-FACEF/Franca/
SP
Cacilda Comássio Lima -PG/UNESP- Franca/ISEP/UNIESP São
Sebastião do Paraíso/ MG
Maria Madalena Gracioli (PG – UNESP – Araraquara/ FESP/UEMG
– Passos – MG/ FFCL - Ituverava – SP)
INTRODUÇÃO
Este projeto visa
dar continuidade ao trabalho iniciado no ano de 2004, como parte do projeto
Bolsa Mestrado, programa da Secretaria da Educação do Estado
de São Paulo, que tem como finalidade incentivar a qualificação
de seus professores por meio de cursos de mestrado e de doutorado em universidade
públicas ou particulares. Os autores deste artigo, docentes da
Diretoria de Ensino de Franca, beneficiados por esse projeto, optaram
por desenvolver atividades de capacitação para professores
que atuam na 5a série do Ensino Fundamental.
O objetivo principal deste projeto é promover a discussão
com os professores das áreas de Língua Portuguesa, de História
e de Geografia em relação à concepção
de leitura e de todo processo de construção do conhecimento.
Além disso, objetiva-se desenvolver atividades de leitura para
serem aplicadas em sala de aula.
Pretende-se proporcionar a reflexão e análise de diferentes
gêneros discursivos na área de Língua Portuguesa,
com enfoque inicial no gênero das histórias em quadrinhos
e, posteriormente, outros como, charges textos literários e de
divulgação científica.
Num trabalho multidisciplinar, o objetivo é proporcionar aos professores
a possibilidade de desenvolvimento, em sala de aula, de atividades de
leitura que ampliem o conhecimento do aluno e lhe dêem condições
para que possa ter uma postura crítica diante da exposição
de imagens em seu cotidiano, para que compreenda melhor o mundo em que
vive, as ideologias que perpassam o discurso midiático e as possíveis
relações com o conteúdo de disciplinas presentes
no currículo escolar.
A idéia deste trabalho surgiu a partir das queixas freqüentes
nos encontros de HTPCs (horário de trabalho coletivo) e nas reuniões
de planejamento, do desinteresse dos alunos pela leitura e a dificuldade
em ler/interpretar, além das limitações encontradas
no aproveitamento de recursos didático-pedagógicos como
uso do retroprojetor, do vídeo, do rádio, dos materiais
de informática e de fontes diversificadas como revistas, jornais,
internet etc. Em contraposição a essa diversidade de recursos
da sociedade moderna, o professor, muitas vezes, limita-se a utilizar
apenas o livro didático e/ou paradidático como material
pedagógico.
Aliado ainda a essas queixas, os resultados aferidos no SARESP (Sistema
de avaliação do rendimento escolar do Estado de São
Paulo) apontam as dificuldades de leitura como as principais causas do
baixo rendimento escolar, o que exige um redirecionamento em todas as
áreas do conhecimento, visto que todas estão envolvidas
no ato de ler.
Desse modo, para sanar as dificuldades de leitura, faz-se necessário
a utilização de diferentes gêneros do discurso, visto
que a concepção de gênero está focada na idéia
de que há “formas relativamente estáveis de enunciados”
(BAKHTIN, 2000) que provêm de diferentes esferas da sociedade. Em
vista disso, o aluno em seu cotidiano, seja em casa ou na escola, está
em contato com os mais diversos gêneros.
A proposta é relacionar diferentes gêneros entre as disciplinas
envolvidas nesse projeto, o que está em conformidade com o projeto
de leitura proposto pela CENP, como podemos verificar no comunicado de
14/02/05 enviado à Diretoria de Ensino de Franca:
O projeto de leitura,
destinado a todos os alunos, é uma proposta de trabalho que visa
enfatizar a leitura de diversos gêneros como os de literatura popular
de tradição oral, as crônicas, os poemas, os textos
dramáticos, as letras de música, as charges e tiras, e outros
adequados aos alunos do ciclo II. A partir desses textos os professores
deverão iniciar um trabalho diferenciado com os alunos, lendo com
eles, lendo para eles, possibilitando a interpretação oral
e a dramatização dos textos, a realização
de saraus literários, a discussão de filmes e outras atividades
que permitam explorar os jogos de linguagem.
O trabalho teve início
com a realização de uma pesquisa com alunos da 5ª série
do Ensino Fundamental das seis escolas envolvidas no Projeto. Na primeira
etapa, o questionário respondido pelos alunos versava sobre suas
representações acerca da imagem do herói. Com a finalidade
de obter elementos fundamentais para compreensão das percepções
dos alunos, recorreu-se a questionamentos como: o que é um herói?
Quem é o seu herói preferido? Como é seu herói
preferido? Por que você prefere esse herói? Você conhece
algum herói de verdade? Por que ele é um herói?
Estes dados forneceram elementos fundamentais para compreensão
das percepções dos alunos e numa análise preliminar
dos questionários verificou-se que os heróis dos desenhos
animados são os preferidos e que atributos físicos como
a força, a beleza e a inteligência, sobressaem aos valores
e virtudes. Herói é aquele que protege, ajuda e salva as
pessoas, a cidade e até o planeta, é sempre forte, possui
a capacidade de estar presente em todos os lugares em que há alguém
precisando dele, é capaz de derrotar o mal e restabelecer a ordem.
Revela também que o herói possui uma capacidade ímpar
de se colocar ao lado do fraco, do injustiçado. É aquele
que defende o bem e consegue superar obstáculos que os seres humanos
mortais não conseguiriam.
Mostra ainda que os heróis não estão presentes apenas
em personagens do cinema, da televisão, dos desenhos animados e
das histórias em quadrinhos. Na representação dos
adolescentes, eles estão presentes também no seu cotidiano.
Para eles, pessoas comuns são identificadas como heróis
e, nessa lista, o pai aparece como o principal herói presente no
seu dia a dia, seguido pelo bombeiro, pelo médico e pela polícia,
que são considerados heróis porque salvam e protegem as
pessoas.
A figura feminina tem pequena aparição nas representações
sobre herói. A Mulher Maravilha e As Três Espiãs aparecem
com apenas uma indicação entre os 240 questionários
aplicados, como também a figura da mãe é pouco referenciada.
A grande parte dos heróis são homens. A mãe, figura
feminina, quando tida como heroína, é uma figura frágil
que precisa da proteção do homem (pai).
Mesmo que, cada vez mais, as mulheres conquistem espaços e assumam
novas responsabilidades e muitos lares sejam sustentados por mulheres,
que saem todos os dias de casa para conseguir sustentar a casa e os filhos,
elas não são vistas como heroínas.
O segundo questionário respondido pelos alunos abordou suas preferências
sobre desenho animado e leitura de histórias em quadrinhos. Nessa
etapa, foram elaborados os seguintes questionamentos: você assiste
a desenho animado? Quais? Qual é seu desenho animado preferido?
Por quê? Você lê revistas em quadrinhos? Quais? Qual
é a sua revista preferida? Por quê? Você prefere desenho
animado ou revista em quadrinhos? Por quê? Os resultados demonstram
maior preferência pelos desenhos animados, geralmente aqueles veiculados
pela televisão aberta. Entre eles, sobressaem: Dragon Ball Z, Jack
Cham, Bob Esponja, Tartarugas Ninjas, Meninas Super Poderosas. As justificativas
quase sempre recaem sobre o fato de haver luta, ação, aventura
e suspense e por alguns heróis protegerem a cidade, salvarem pessoas
e serem engraçados.
As preferências pelos desenhos animados são explicadas porque
o desenho não precisa ler, há mais ação, som
e movimento, é mais emocionante, parece mais realidade, “porque
pode ficar tranqüilo, só olhando”.
Mas, há aqueles que preferem as histórias em quadrinhos
por serem mais interessantes, a cada página ficam mais curiosos,
porque imaginam os personagens de verdade e porque gostam de ler. Em contrapartida,
alguns afirmam que não lêem porque não têm acesso
a nenhum tipo de revista.
Entre as revistas em quadrinhos a Turma da Mônica (Cebolinha, Cascão,
Mônica, Chico Bento) aparecem na preferência da maioria dos
adolescentes, seguidas pelas produções Disney (Recruta Zero,
Pato Donald, Mickey).
O GÊNERO DO
DISCURSO DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
A perspectiva teórica
adotada são os estudos de Mikhail Bakhtin sobre gêneros do
discurso. Entende-se que, por meio da reflexão e análise
de diferentes gêneros, é possível sanar algumas dificuldades
de leitura, além de proporcionar um trabalho interdisciplinar.
Conforme Bakhtin (2000), os enunciados são construídos por
sujeitos que integram as mais diversas esferas da atividade humana e provocam
no enunciatário uma atitude responsiva ativa, o que caracteriza
a compreensão efetiva desses enunciados. Assim, há diferentes
enunciados específicos a cada atividade humana e eles possuem conteúdo,
estilo verbal e construção composicional relativamente estáveis.
Desse modo, pode-se afirmar que há uma heterogeneidade dos gêneros
do discurso, pois há inúmeras possibilidades de atividades
humanas, o que possibilita a variedade de gêneros discursivos, principalmente
nos dias atuais, em que não só se renovam, mas também
ampliam-se as esferas de trabalho do homem e os meios técnicos
de produção.
Vale ressaltar que o estilo é constituído pela seleção
dos recursos da língua, como os recursos lexicais, fraseológicos
e gramaticais. Assim, ao fazer essas escolhas, o enunciador acaba por
refletir a individualidade de quem escreve. Entretanto, não se
pode deixar de mencionar que há enunciados mais estáveis
que não são muito favoráveis à individualidade,
pois requerem uma forma mais padronizada.
O estilo também está indissoluvelmente ligado ao conteúdo
temático, o qual “reflete e refrata” (BAKHTIN, 1999)
a realidade e a(s) ideologia(s) que permeia(m) um determinado discurso,
e a unidades composicionais, que, nas palavras de Bakhtin (2000, p. 284),
é o “tipo de estruturação de um todo, tipo
de relação entre o locutor e os outros parceiros da comunicação
verbal (relação com o ouvinte, ou com o leitor, com o interlocutor,
com o discurso do outro, etc)”.
Quanto à relação com o enunciatário, na concepção
bakhtiniana, a compreensão de um enunciado constituinte de um determinado
gênero só ocorre quando há uma atitude responsiva
ativa, ou seja, quando o enunciatário responde a esse enunciado
por meio de outro enunciado ou em um ato. Nessa ambiência, pode-se
dizer que, para que haja compreensão efetiva, é necessário
um diálogo incessante entre os sujeitos da enunciação,
entre textos, ou ainda, entre discursos.
Na relação intersubjetiva, não se espera uma resposta
“passiva”, mas uma resposta em forma de aceitação,
recusa, complementação, etc. Nesse incessante diálogo,
a memória pode ser considerada um dispositivo discursivo, pois
não só auxilia na produção de efeitos de sentido,
como também ajuda na compreensão de um determinado gênero.
É nesse jogo da memória que se instaura o lugar de encontros
e de confrontos de sentidos.
Ainda sobre gênero e interação social, o gênero
é produto da história, ou seja, a enunciação
é determinada pelo contexto sócio-histórico-cultural,
obedecendo, assim, a certas condições de composição
de acordo com valores, idéias e crenças da sociedade que
o produz.
Por meio dessa concepção teórica, as histórias
em quadrinhos podem ser consideradas um gênero construído
em uma época em que as imagens passaram a ser utilizadas para a
narrativa de histórias, visto que havia uma alta porcentagem de
analfabetismo e os desenhos eram uma maneira de atingir o público
de massa. Por outro lado, as histórias em quadrinhos vão
surgiram na época do desenvolvimento de meios de comunicação
de massa, como revistas e jornais, e da evolução de meios
técnicos como a impressão de imagens, inicialmente em preto
e branco, depois em cores .
Desse modo, o gênero das histórias em quadrinhos possui uma
composição centrada em quadros (vinhetas) que contam uma
história por meio de imagens, com ou sem texto, ou seja, é
um sistema narrativo composto por duas materialidades distintas, a imagem
e a linguagem verbal.
Assim, na construção composicional das HQs, o intercâmbio
entre linguagens verbal e não verbal contribui para a constituição
do conteúdo temático, transmitindo os mais diversos valores
sociais, ideologias e crenças. A utilização da linguagem
verbal para a complementação das idéias que os desenhos,
sozinhos, não conseguem transmitir ocorre por meio dos diálogos
e pensamentos dos personagens, com a utilização de diferentes
balões, das legendas que expressam o discurso do narrador ou as
categorias espaço-temporais e das onomatopéias ou explosões
sonoras.
Quanto à imagem, a composição dos personagens é
um importante elemento para a construção de sentido, pois
os personagens das histórias em quadrinhos possuem caracterização
e fisionomias peculiares que, muitas vezes, é difícil de
se esquecer delas, como por exemplo: a dentuça da Mônica,
os quatro fios de cabelo do Cebolinha, as roupas verde-amarelas do Zé
Carioca ou as cores e as estrelas da bandeira norte americana da roupa
do Capitão América.
Também é importante que os rostos dos personagens estampem
todas as suas emoções, alegrias, tristezas, surpresas etc.
Outra forma utilizada para indicar algumas sensações e sentimentos,
é o emprego de determinados sinais gráficos, como estrelinhas
para figurativizar dor ou corações para o amor.
Portanto, na esteira das idéias bakhtinianas, a construção
composicional compõe um enunciado relativamente estável,
pois é necessário que se utilizem determinados elementos
próprios do gênero das histórias em quadrinhos. Entretanto,
o estilo, que caracteriza a individualidade do enunciador e reflete as
mais diversas ideologias e o contexto sócio-histórico da
enunciação permite que as histórias em quadrinhos
apresentem diferentes linguagens, formas e personagens.
“NOSSOS HERÓIS”
CHICO BENTO E ZÉ CARIOCA
A pesquisa realizada
com alunos da 5ª série do Ensino Fundamental indica que a
preferência de leitura de HQs nessa faixa etária é
a produção de Maurício de Sousa, especificamente
a Turma da Mônica.
As possibilidades de trabalho em sala de aula com os personagens da Turma
da Mônica são enormes, uma vez que são personagens
inspirados em crianças e jovens brasileiros, retratando assim,
aproximação com seu cotidiano.
Como se trata de projeto multidisciplinar, elegemos o Chico Bento que,
por suas características, permite a realização de
análise em diversas áreas do conhecimento. Trata-se de um
personagem habitante do meio rural, feinho, com fala caipira, dotado de
simplicidade e com traços de ingenuidade que dificilmente se encontra
nos moradores da cidade. Chico Bento está sempre envolvido em trabalho
e atividades de lazer próprias do campo.
Segundo Maurício de Sousa, Chico Bento foi inspirado num roceiro
da região de Taboão, Vale do Paraíba, que ele mesmo
não conheceu, mas cujas histórias hilariantes foram contadas
por sua avó. Chico Bento vai aparecer como personagem secundário
nas tiras de Hiroshi e Zezinho em 1963. Por seu jeito engraçado,
vai aos poucos conquistando o público até ganhar um espaço
próprio, em suplemento semanal publicado no Diário de São
Paulo. Hiro e Zezinho passaram, então, a ser coadjuvantes.
Chico Bento sempre aparece em histórias que contrapõem a
vida simples do campo às complicadas situações que
personagens da cidade levam para a roça. Quase sempre, com seu
jeito simples e ingênuo, Chico consegue mostrar o lado bom e singelo
da vida rural, além de, muitas vezes, tratar de questões
ambientais e sociais.
Desse modo, pode-se associar essas temáticas voltadas para as questões
ambientais e sociais ao gênero das histórias em quadrinhos
como forma de analisar esses textos e levar o aluno a compreendê-los
efetivamente para que a leitura não seja apenas um entretenimento,
mas a possibilidade de reflexão e ampliação de conhecimentos
no processo ativo da leitura.
Como exemplo, apresentamos a seguir as tiras abaixo cujo conteúdo
temático remetem aos problemas que afetam o campo, mas que produzem
conseqüências para toda a sociedade.
Figura 1: Proibido
caçar
Fonte: Disponível em: <http://www.monica.com.br>. Acesso
em 28 abr. 2005.

Figura 2: Plantando
esperança
Fonte: Disponível em: <http://www.monica.com.br>. Acesso
em 28 abr. 2005.
Na primeira tira,
o emprego de recursos próprios das histórias em quadrinhos,
que constituem sua construção composicional, constroem o
que Bakhtin (2000) denomina “conteúdo temático”.
Assim, a caracterização de Chico Bento, suas roupas, seu
chapéu de palha, seus pés descalços e sua fisionomia
de indignação, remetem à idéia de que o morador
do campo preserva a natureza, ao contrário do homem da cidade,
preocupado em extrair madeira para transformá-la em produtos e
obter lucros. O machado, as roupas e o boné representam o homem
em contato com uma sociedade de consumo. Portanto, a expressão
do madeireiro é de espanto diante da raiva de Chico Bento, da placa
“proibido caçar” e das expressões amedrontadas
das árvores. Essa imagem constrói um efeito de sentido de
que as árvores são “vivas”, de forma inversa
à idéia de que elas são matérias inertes e
mortas.
Na segunda tira, a variante lingüística dos moradores da zona
rural encontra-se presente nas falas dos personagens Zé Lelé
e Chico Bento e remetem à idéia de que eles estão
em sintonia com a natureza e com os problemas ocasionados pela devastação
das árvores.
Em sua composição, a tirinha deve ser lida em seqüência
para a constituição do sentido, que, neste caso, ocorre
por meio de uma ruptura do conceito de árvore no diálogo
empreendido pelos dois personagens. Na pergunta feita por Zé Lelé
há a expectativa de uma resposta de Chico que corresponda a seu
conhecimento, ou seja, de que a árvore produz frutos (goiaba, jaca,
manga) Entretanto, Chico Bento, por meio de sua fala, rompe com essa concepção
e diz que está plantando uma árvore de esperança.
A imagem, nessa parte da tira, é uma representação
da natureza destruída, justificando o pé de esperança
de Chico Bento.
O espanto de Zé Lelé demonstra, novamente, a indignação
dos moradores do campo frente ao desrespeito com a natureza, o que contrapõe
à idéia de que o caipira é ignorante e o homem da
cidade é culto, pois o “caipira” conhece as conseqüências
dos problemas ambientais enquanto o homem “sabido” conhece
apenas o lucro que a natureza proporciona.
Nas primeiras edições das histórias em quadrinhos
de Chico Bento, o personagem já vivenciava o tema da reforma agrária
que atravessou todos estes anos e que se mantém atual, como podemos
observar na tira abaixo:

Figura 3: Reforma
agrária
Fonte: Disponível em: <http://www.monica.com.br>. Acesso
em 28 de abr. 2005.
É interessante observar que Chico Bento, nessa tira, é caracterizado
de maneira diferente da atual, com aparência de adulto, magro e
não apresenta em sua fala a variante regional utilizada, principalmente,
pelos moradores da “roça”. Na última parte,
assim como se observa nas tiras anteriores, o personagem, típico
matreiro, conclui a história com um humor simples e “ingênuo”,
mas, de forma inteligente, faz com que o enunciatário dialogue
com a história, participando da construção de sentido
que, nesse caso, é ultrapassar os limites do cômico para
chegar a valores sociais e ideológicos.
Como oposição ao Chico Bento, trabalhamos com o personagem
Zé Carioca, que foi criado no início da década de
1940, por Walt Disney.
Zé Carioca foi criado quando Disney realizou uma grande viagem
pela América Latina, tomando parte de uma campanha promovida pelos
Estados Unidos a fim de conquistar apoio na II Guerra Mundial. Walt Disney,
acompanhado de desenhistas de seu estúdio, criou personagens para
os países visitados, como o Gauchito Voador, para a Argentina,
o Panchito, para o México. Para o Brasil, foi criado o Joe Carioca
(Zé Carioca).
O personagem ficou famoso por protagonizar os filmes Alô amigos!
(Salutos amigos) e Você já foi à Bahia? (The Theree
Caballeros). No Brasil, sua primeira aparição foi na capa
da Revista Pato Donald em julho de 1950. A primeira revista própria
do Zé Carioca foi em 1961 – Zé Carioca, Rei do Carnaval
- representado por um papagaio de terno e gravata, chapéu de palha
e guarda-chuva, com jeitão de malandro inofensivo.
Zé Carioca foi idealizado como um típico malandro brasileiro.
Odeia trabalho, vive correndo de cobradores e mora em uma vila quase que
favelada, a Vila Xurupita. Também sonha em ganhar na loteria, não
perde a chance de roubar uma jaca do vizinho e de filar uma boa feijoada
e, principalmente, não pode ver um rabo-de-saia, vive envolvido
em encrencas como detetive, o Morcego Verde, em sua agência Moleza.
O personagem foi inspirado no papagaio, ave tropical verde-amarela, que
lembra as cores da bandeira brasileira. Representa no imaginário
de seu criador a maneira brasileira de ser e agir, uma das principais
identificadoras do brasileiro – o malandro. É inteligente,
ágil, bem humorado, e, principalmente, engraçado. Representa
a hilariedade picante de nossa irreverente alma latina, ou “atitudes,
hábitos etc que os próprios brasileiros consideram ‘tipicamente
brasileiro’ e que, segundo ainda os nacionais, seria a razão
que faz do Brasil um país sui generis” (SOUZA FILHO, 2001,
p.16).
A priori, Zé Carioca é apenas uma mercadoria da indústria
cultural norte-americana, criado pela marca Disney, com o objetivo de
transmitir valores de um país concentrador da política e
da economia mundial, num regime capitalista, proclamando a redenção
do neoliberalismo e de sua dominação. Como país,
que se tornou líder da Revolução Técnico-Científica,
as histórias em quadrinhos também são utilizadas
como instrumentos dessa alienação e distorção
da realidade.
Zé Carioca foi criado como proposta de intercâmbio cultural
entre Brasil e Estados Unidos, porém há um caráter
ideológico do personagem, concebido num país desenvolvido
e adaptado à realidade brasileira, representando a real dimensão
da proposta de um país imperialista para um subdesenvolvido. Portanto,
representa a personificação do cidadão brasileiro
na visão dos norte-americanos.
O personagem, na roupagem de malandro, vem de um espaço social
complexo e cheio de matizes, dadas às múltiplas facetas
que o termo assume em nossa sociedade, é a malandragem, como afirma
Da Matta (1997, p.269) “socialmente aprovada e vista entre nós
como esperteza e vivacidade, ao ponto mais pesado do gesto francamente
honesto”, e que também figura como sinônimo de irreverência,
preguiça, indivíduo que canta e dança e leva uma
vida de sombra e água fresca. O malandro quebra as normas vigentes
na sociedade, rompe com os códigos sociais pela não integração
ao universo formal e por adotar um modelo que não se enquadra na
totalidade social apoiada na lei e na regra.
A malandragem representa uma subversão de certos princípios
de atuação social, e para o mundo capitalista, representa
um quebra da atividade produtiva, atividade essa que é do mais
completo interesse dos grupos economicamente poderosos, uma vez que esse
grande contingente humano marginalizado e revestido de malandragem é
também “malandramente” explorado pelo capitalista que
constrói a sua riqueza e seu poderio político.
A capa apresentada a seguir configura essa imagem do malandro que caracteriza
o personagem:
Figura 4: Fiado Card
Fonte: ZÉ CARIOCA, 2005, n. 2279, capa.
Na imagem, há
o desenho de um cartão de crédito com a inscrição
“Fiado Card” que figurativiza as transações
comerciais típicas da atual sociedade capitalista. A palavra “fiado”
traz à tona uma característica do brasileiro que, pelos
baixos salários, pelo desemprego e subemprego, adquiriu o hábito
de parcelar suas compras ou utilizar o famoso “pendura” para
pagamento posterior. Entretanto, como o Zé Carioca representa a
figura do malandro, neste contexto, o “fiado card” não
se constitui como forma de pagamento, mas como uma forma de enganar. Desse
modo, Zé Carioca não é a representação
do trabalhador brasileiro “sem dinheiro”, mas exemplifica
o “jeitinho” do malandro brasileiro, disposto a tirar vantagem
em tudo.
Esse discurso é construído de forma a apresentar uma ideologia
capitalista e um imaginário coletivo de que o brasileiro é
malandro. Ler essa imagem é perceber o que não é
dito, é dialogar com essas idéias, é confrontar,
é confirmar, é completar. Nessa relação intersubjetiva,
a imagem é constitutiva do gênero das histórias em
quadrinhos e as escolhas das cores verde e amarelo, dos desenhos e da
linguagem (Fiado Card) unem-se ao todo do enunciado para construir esse
efeito de sentido.
Chico Bento e Zé Carioca, apesar de não possuírem
atributos presentes nos grandes heróis, podem ser considerados
como tais. Chico Bento, herói caipira que, mesmo sendo visto como
ignorante, possui uma singular capacidade intelectual e está sempre
apto para ajudar, defender, perceber e refletir sobre problemas sociais
e ambientais. O leitor identifica-se com seu jeito engraçado de
falar e de agir, torcendo por ele e admirando as soluções
que encontra para a solução das inusitadas situações
que surgem à sua volta.
Por outro lado, Zé Carioca, o herói malandro, cuja vida
é repleta de imprevistos, obedece a instintos, paixões e
possui astúcia suficiente para se dar bem nas mais adversas situações
em que ele se envolve. Sua sagacidade ganha admiração do
leitor que também torce por ele, pois gostaria de ter a perspicácia
desse herói para resolver seus problemas cotidianos.
Como foi mencionado anteriormente, na pesquisa realizada, verificou-se
que os heróis são modelos e, normalmente, crianças
e adolescentes elegem como herói, principalmente o pai, pois ele
é visto como protetor da família, homem forte, trabalhador
e vencedor. Valores como respeito, solidariedade e honestidade, quando
estão presentes em seu cotidiano, são também absorvidos
como modelo.
Dessa forma, tanto Chico Bento quanto Zé Carioca podem ser considerados
modelos. Chico Bento espelha o lado do herói, que é bom,
generoso, disposto a ajudar e lutar contra injustiças. Por outro
lado, Zé Carioca figura o anti-herói por seu lado “malandro”
que é admirado pelas pessoas que, preferem projetar no outro a
assumir a malandragem em si mesmas.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Ao conceber as histórias
em quadrinhos como pertencente à cultura de massa, entende-se que
é um gênero que acompanha o contexto sócio-histórico-cultural
e, portanto, responde aos anseios do inconsciente coletivo. As histórias
em quadrinhos, como forma de produção cultural organizada
sob bases industriais para atingir um grande público, consegue
permanecer no mercado uma vez que reflete a realidade circundante. Por
exemplo, na década de 30, época da Grande Depressão,
conseguiu captar e refletir esperança e confiança. Na década
de 50, durante a Guerra Fria, transmitiu medo, desconfiança e intolerância.
Nos anos 60, refletiu a necessidade de grandes mudanças políticas
e sociais. E nos anos 90, absorveu o clima de insegurança e pessimismo
quanto ao futuro (FEIJÓ, 1977).
Assim, o gênero das histórias em quadrinhos, em cada momento
histórico traz à tona as representações presentes
no cotidiano social. Compreender como se constitui as histórias
em quadrinhos, tanto em sua construção composicional quanto
em seu estilo, é importante para uma leitura efetiva, pois pode
promover o diálogo entre os sujeitos da enunciação,
fazendo com que o enunciatário participe ativamente desse processo.
O trabalho com as histórias em quadrinhos é um recurso pedagógico
que possibilita a compreensão de diferentes momentos sócio-históricos,
como também da época atual, presentes nos conteúdos
escolares. Por outro lado, também propicia ao aluno o conhecimento
desse tipo de narrativa, ou seja, sua forma, sua linguagem, seu estilo
que pode ser comparado com outras formas de narrativa ou, até mesmo,
com outros gêneros (científicos, didáticos, jornalísticos,
literários etc). É a partir das aulas de Língua Portuguesa
que o aluno pode tomar contato com esses gêneros e estudá-los
para, posteriormente, os professores das outras áreas trabalharem
com a leitura desses diversos gêneros em suas aulas, fazendo com
que o processo de leitura seja uma atividade multidisciplinar.
Dessa maneira, pelos exemplos apresentados neste artigo, as HQs podem
ser utilizadas nas aulas de Geografia, de Ciências e de Biologia
para conduzir discussões de temáticas ligadas ao meio ambiente
(desmatamento, poluição, preservação, exploração
de recursos naturais, entre tantos outros). Outras atividades possíveis
são produções de texto a partir das tiras ou, após
a discussão do tema, criações de suas próprias
HQs.
As histórias em quadrinhos são ricas em sua temática,
pois abordam questões políticas, sociais que podem ser exploradas
pelo professor de História, bem como de Geografia, Sociologia e
Filosofia. Como nos últimos anos, o ensino de História,
ancorado na Nova História, tem enfatizado os temas ligados ao cotidiano,
a utilização desse gênero possibilita uma aproximação
com o dia a dia do aluno.
Além do mais, para facilitar e possibilitar o acesso dos alunos
às revistas em quadrinhos, a escola pode organizar, com a colaboração
da comunidade, uma gibiteca.
A proposta de trabalho em sala de aula com HQs visa também quebrar
a resistência de muitos educadores em utilizar novos recursos pedagógicos,
em especial, as histórias em quadrinhos que, como produto da cultura
de massa, sofreu preconceito durante muitos anos,não sendo considerada
leitura apropriada na escola.
Portanto, as HQs, como recurso pedagógico, auxiliam o desenvolvimento
da prática de leitura , uma vez que é um gênero de
fácil assimilação, com linguagem que se aproxima
do cotidiano do aluno, despertando a motivação e o interesse
na construção de novos conhecimentos.
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CITELLI, Adilson. Outras linguagens na escola: publicidade, cinema e TV,
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