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A
CONSTRUÇÃO DO DISCURSO RETÓRICO DE EGRESSOS DE LETRAS
Valdir
Luiz Lopes (Faculdade Associada de Cotia - FAAC)
A qualidade
do ensino de Língua Portuguesa tem sido, há vários
anos, preocupação de profissionais de vários setores
da educação bem como dos governos federal, estadual e municipal.
Parcerias se formam com o objetivo de avaliar e propor soluções
para problemas básicos de leitura e escrita de alunos em diversos
níveis de aprendizagem.
A título de reflexão, recorro ao Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), vinculado ao Ministério
da Educação, para conhecer os resultados do Exame Nacional
de Letras (ENC-Provão) de 2003. Os índices estatísticos
surpreendem na medida em que o desempenho dos 32.640 graduandos avaliados
foi insatisfatório: a média geral nacional obtida pelo conjunto
dos egressoss foi de 19,7 pontos; o valor máximo da prova era de
100 pontos. O documento indica ainda que cerca de 74% não alcançaram
mais que 26,5 pontos e somente 10% obtiveram média acima de 36,0
pontos.
O Provão de 2003 avaliou se o conjunto de graduandos desenvolveu,
ao longo do curso, competências e habilidades para compreender e
aplicar teorias e métodos de ensino de língua e literatura.
A prova foi composta por doze questões discursivas, sendo as sete
primeiras obrigatórias. Das cinco questões restantes, o
aluno deveria responder a apenas três, à sua escolha.
Dentre as questões obrigatórias, a média mais alta
foi a da questão 1, com média de 27,2 pontos, que exigiu
conhecimentos sobre Lingüística e Língua Portuguesa.
Já a questão 7, que tratou de teorias e métodos de
ensino de língua e literatura, revelou ser mais difícil,
com média igual a 13,2 pontos. Apenas cerca de 10% obtiveram notas
iguais ou superiores a 30,0 pontos nessa questão.
Dentre as questões optativas, ressalta a questão 11, cujos
conteúdos exigidos foram também sobre teorias e métodos
de ensino de língua e literatura, que registrou o maior número
de respostas, com média igual a 22,0 pontos. Entretanto, nessa
pergunta 11, cerca de 74% das respostas não alcançaram notas
superiores a 30,0 pontos. A questão 12, ainda sobre teorias e métodos
de ensino de língua e literatura, foi escolhida pela grande maioria
dos graduandos (64,5%), apesar de ter sido considerada, segundo o relatório
do INEP/MEC, como a questão mais difícil da prova, revelando
média de acertos igual a 8,5 pontos. A mediana (zero) indica um
resultado mais surpreendente ainda: mais da metade dos formandos não
conseguiu pontuar na questão.
Como demonstra o relatório final do INEP/MEC, dentre as perguntas
referentes à metodologia de ensino de língua e literatura,
as questões 7 (13,2 pontos) e 12 (8,5 pontos) foram as que apresentaram
os menores percentuais de notas. Cumpre frisar o índice elevado
de média zero para a questão 12! Tais dados nos convidam
a uma reflexão sobre as metodologias de ensino propostas e o papel
do profissional de Letras na sociedade e impulsionam para uma indagação
que nos parece fundamental: que professor de português queremos
formar? Para responder a essa questão, Soares (2000) nos alerta
que devemos considerar os fatores de natureza social, política
e cultural, de um lado; e, de outro, considerar os fatores relativos ao
processo de formação do profissional professor de Português,
se quisermos ter critérios seguros que nos permitem definir o profissional
que se responsabiliza pelo ensino e pela aprendizagem de Português
dos alunos nos níveis Fundamental e Médio.
Tais dados estatísticos chamam a atenção e põem-me
a questionar por que egressos de cursos de Letras não progridem
satisfatoriamente na aprendizagem da língua materna. Essas informações
nos remetem a contextos diversificados de interpretações.
No discurso do senso comum, de um lado, parece que a justificativa estaria
na falta de interesse dos alunos, ainda que se considere as variáveis
regionais, culturais e sócio-econômicas apontadas pelo INEP/MEC;
e, de outro lado, o problema estaria nos cursos de formação
dos professores de português, apesar das novas metodologias de ensino
para a formação inicial e das novas propostas metodológicas.
Não há dúvidas de que os resultados apontados pelo
INEP/MEC merecem nossa atenção até porque auxiliam
na reflexão da condução das práticas pedagógicas.
A meu ver, a qualidade do ensino de Língua Portuguesa (ou Português)
implica necessariamente a formação e a capacitação
de professores, ambas referenciadas por novos estudos e novas propostas
didático-pedagógicas. A qualidade dos cursos de formação
de professores de Português tem repercussão direta na qualidade
do trabalho docente. Nesse sentido, pressuponho que as questões
de ensino de português têm seu ponto principal nos processos
de formação inicial de professores. Apesar do exaustivo
número de publicações e discursos produzidos acerca
da formação de professores , penso que ainda é preciso
sinalizar alguns pontos que nos permitam entender a constituição
dos discursos e as práticas de professores de Língua Portuguesa.
Na esteira desses dados, noto que algumas velhas questões ainda
não respondidas satisfatoriamente instauram um caminho reflexivo
possível. Parece que há, salvo engano, uma retórica
cristalizada no discurso didático-pedagógico do professor
que o impele a repetir o discurso “dominante”, a conviver
com a tradição, o "velho", e a perpetuar um fazer
pedagógico que não suscita dúvidas e lhe transmite
segurança; tais discurso e prática diante da modernidade,
do "novo", apesar de despertarem desconfiança, conferem-lhe
certo grau de prestígio. Continua-se onde sempre se esteve! E o
que permanece? É a retórica do discurso que não muda
ou é a ação do professor? Oficiosamente, ouvimos
de professores um discurso sobre a mudança, sobre a importância
de se conhecer e se "adotar" novas metodologias de ensino, no
entanto observa-se que a prática não se realiza na mesma
proporção.
As questões anteriores levantadas podem parecer bastante amplas,
mas são exatamente elas que, por se colocarem corriqueiramente
em meu caminho profissional, me levaram a refletir sobre a formação
do professor de Língua Portuguesa, a fim de poder ressaltar alguns
aspectos bastante particulares que, por terem natureza cristalizada na
constituição do discurso pedagógico, efetivam e legitimam
esse discurso. Uma forma possível, creio, seria a de verificar
como os discursos se consubstanciam em atos retóricos. Há
uma situação retórica plenamente estabelecida e a
actio (a ação que atualiza o discurso) traz, sem dúvida,
resquícios de uma memória discursiva que precisa ser investigada.
As reflexões tecidas até aqui levam a crer, salvo engano,
na existência de um “ethos” cultural (conjunto dos traços
de caráter que o orador deve revelar ao auditório para causar
boa impressão), constituído para o professor de Língua
Portuguesa, que se dissemina constitutivamente pelo discurso, cujo sentido
se dá no interior de um universo de outros discursos. Há
um contexto cujas interpretações estão, de certa
maneira, condicionadas aos topói (aos lugares retóricos)
e à formação do sujeito-histórico-social.
Há, enfim, uma situação retórica e atos retóricos
significativos que merecem análise acurada. É nesse quadro
de espaço público e espaço político que, no
meu entender, se dissemina o discurso de fracasso ou de sucesso dos professores.
Há valores e interesses envolvidos, há construção
retórica de argumentos para solidificar, no meu entender, um discurso
já estabelecido e conhecido.
Algumas das razões do insucesso escolar são conhecidas pela
reprodução das informações; por exemplo, sabe-se
que há professores que ainda adotam metodologias de ensino que
priorizam a memorização e a reprodução mecânica
de conteúdos rígidos, fixos e distantes das realidades sócio-culturais
e econômicas dos seus alunos; os critérios são, em
geral, “programados” sistematicamente pelo corpo docente e
“aceitos” pelos discentes sem qualquer contestação.
Semelhante abordagem, concebida como tradicional, distancia tanto o professor
quanto o aluno de suas efetivas práticas discursivas e evidencia
uma clara "resistência" ao novo.
Outra razão possível do insucesso escolar é encontrada
nas diferentes formações discursivas. Para Soares (1987)
há o fracasso na e da escola, na medida em que o discurso pedagógico
é expresso em metodologias de ensino e em práticas de professores
que esbarram em suas próprias deficiências de formação
lingüística, textual, discursiva e cognitiva.
Apesar do avanço em pesquisas e estudos nessa área e dos
esforços de professores, vive-se no meio intelectual um sentimento,
ainda, de fracasso. O fato é que se fala, exaustivamente, nos meios
acadêmicos e nos bastidores das instituições de ensino,
em “erro”, em “incompetência”, e até
mesmo em “neutralidade", como marcas cristalinas de um discurso
que afeta, de alguma maneira, o professor de Língua Portuguesa,
ao reproduzir a idéia de que “nada mais pode-se fazer”
pela educação.
A noção de sucesso e ou de fracasso, segundo Lahire (1997),
são categorias discursivas historicamente produzidas pelas práticas
e as formas de relações sociais. Na escola, os casos de
fracasso, ou de insucesso, talvez se justificam porque no universo escolar
o aluno não conhece (ou não tem claro para si) os procedimentos
discursivos e os mecanismos de textualização necessários
para estabelecer a interlocução comunicativa e responder
adequadamente às exigências escolares, quer na sala de aula
na relação professor-aluno, quer nas relações
hierárquicas nos vários setores dentro da escola (diretoria,
coordenação pedagógica, secretaria, etc.).
A prática discursiva na Escola, a meu ver, pauta-se pelo modelo
da reprodução do discurso autorizado; o que significa dizer
que um texto articulado só é aceito se citar o discurso
do outro. “A citação de outros discursos pode ser
ou não explícita no discurso pedagógico, o que torna
mais difícil decidir sobre os limites deles e as vozes que falam
nele.” (cf. Orlandi, 2001: 23). Talvez, por isso, o desenvolvimento
das várias instâncias da escrita, apesar de todos os esforços
de implantação, pouco espaço e programação
têm no âmbito da sala de aula exatamente porque não
representam o modelo esperado e desejado. O certo é que existe
no discurso autorizado uma responsabilização dos professores
em relação à prática pedagógica e à
qualidade do ensino, situação que reflete a realidade de
um sistema escolar centrado na figura do professor como condutor visível
dos processos institucionalizados de educação.
Como conseqüência dessa excessiva dependência da prática
pedagógica, o pensamento coletivo social acaba por contribuir para
a configuração de modelos exigentes e ideais de como deveriam
ser os professores e seus discursos. O perfil de um professor ideal é
configurado por um conjunto de aspectos relacionados com os valores, os
currículos, as práticas metodológicas e práticas
discursivas. Esse raciocínio aponta para o mote do discurso retórico
utilizado por professores e especialistas em educação e
revelam, de alguma maneira, pensamento e discurso pedagógico tautológicos.
Além disso, parece cristalizar valores e tendências no que
diz respeito à formação, à capacitação,
à qualidade e à competência docentes, impedindo, a
meu ver, que os próprios professores examinem de maneira crítica
as suposições ideológicas embutidas em seus discursos
e em suas experiências em sala de aula que eles “ajudam”
a estruturar.
Entendo que conhecer as condições materiais, sociais, culturais
e econômicas, dentre várias outras características
que identificam o “status” do professor e do aluno, não
podem ser usadas como álibi para eximir o sistema educativo de
seu papel na produção do insucesso escolar. Desmistificar
esse discurso tautológico impõe aos professores a conscientização
de que os “mitos” e os “álibis” exercem
papel ideológico. Romper com a circularidade discursiva sobre os
possíveis "mitos do fracasso escolar e da resistência
às mudanças", exige a revisão reflexiva sobre
práticas escolares muitas vezes equivocadas e a clareza dos fatores
que as determinam e as articulam.
Parece-me que esse é o pensamento de Azanha (2000). Em documento
do Conselho Estadual de Educação do Estado de São
Paulo, o professor conselheiro relata que
"há décadas discute-se em congressos, seminários,
cursos e outros eventos, qual a formação ideal ou necessária
do professor do ensino básico (fundamental e médio), numa
demonstração ostensiva de insatisfação generalizada
com relação aos modelos formativos vigentes (...)".Todavia,
afirma o relator do documento, as propostas não ultrapassam "o
nível de recomendações sobre a necessidade de 'sólida
formação dos professores' e da 'integração
de teoria e prática' ". Nessas discussões, conclui,
"desenha-se o 'perfil profissional' dos futuros professores por meio
de um arrolamento de competências cognitivas que deveriam ser desenvolvidas
pelos cursos formadores."
De alguma forma, os debates sobre a formação inicial (ou
continuada) de professores indicam que a mudança de paradigmas
é necessária para construir uma escola com qualidade integrada
às novas exigências sociais e tecnológicas. O mercado
de trabalho, por sua vez, "anda" exigente com os professores
e com os alunos; por tais razões, parece-nos que é imperativo
o aperfeiçoamento de procedimentos didático-pedagógicos
bem como clareza sobre a formação e a qualificação
profissional necessárias aos novos professores que atuarão
numa sociedade que vive sob a égide da informatização
e de novas tendências e recursos tecnológicos.
Neste novo cenário cultural, político e ideológico
é possível encontrarmos outros motes discursivos sobre formação
e prática de professores de Língua Portuguesa. A LDB 9.394/96,
por exemplo, procura fazer uma intervenção significativa
no sistema educacional brasileiro ao apresentar novos referenciais curriculares
e pedagógicos para todos os níveis da educação.
Convém ressaltar que essa intervenção, em primeiro
lugar, contribui para uma nova concepção de ensino a ser
ministrado, com base nos princípios e vínculos entre escola
e práticas sociais; aponta, em segundo lugar, a necessidade de
explorar as competências e as habilidades dos educandos a partir
de novas propostas didáticas, encontradas nos parâmetros
curriculares; em terceiro lugar, sugere a valorização do
profissional professor; e, por fim, propõe a verificação
da qualidade de ensino por meio de processos de avaliação
de cursos e de instituições de ensino superior.
Como podemos observar, o mote do discurso oficial impulsiona a necessidade
de se construir um novo paradigma da profissão professor e um novo
profissional de Letras. É perceptível que as mudanças
educativas, entendidas como transformações ao nível
das idéias e das práticas, põem os professores participando
de atividades no desenvolvimento intelectual e alterando as condições
da escola e dos contextos extra-escolar. Certamente, as novas diretrizes
nos colocam diante de um novo conceito de formação e de
prática docente ao destituir a imagem do "professor tarefeiro"
ou do "professor passador" de informações, de
lições ou de conteúdos desvinculados de necessidades
reais de comunicação.
O discurso formativo, a meu ver, assume características de um discurso
oficial ao estabelecer paradigmas para uma educação renovada
e sintonizada com os novos padrões de produção e
de competências discursivas do professor de português. Esse
paradigma pode ser observado, por exemplo, nas propostas significativas
de programas de capacitação e aprimoramento da Secretaria
de Estado da Educação de São Paulo: o Programa de
Educação Continuada – PEC, nos anos 97/98; e mais
recentemente, nos anos de 2003, 2004 e 2005, o Programa Teia do Saber
e o Projeto Ler e Viver, dentre outros programas importantes oferecidos
aos professores de português. Os projetos e programas, penso, são
importantes na medida em que se propõem repensar a base educacional
a partir da eficiência e da qualidade dos serviços que a
escola pode oferecer à comunidade de forma significativa e coloca
o professor em sintonia com o que há de mais atual (e moderno)
em teorias e metodologias de ensino de língua.
Tem-se, assim, desenhado os motes discursivos que, de alguma forma, se
mesclam e se interpenetram no discurso formativo de professores de português
e, talvez, em momentos diversos de suas práticas. Minha intenção,
com essa exposição, foi traçar uma linha de raciocínio
que pudesse oferecer auxílio às minhas reflexões
sobre o discurso retórico de professores que convive entre posicionamentos
tradicionais e modernos. É importante enfatizar, ainda, que novos
professores estão sendo formados e o discurso que sustenta sua
formação é o da crença nas possibilidades
de melhoria da educação, de melhoria na própria formação
dos professores. Não poderia ser diferente! Caso não acreditasse
em algo, cairiam no imobilismo. A retórica do fracasso, porém,
se superpõe a uma espécie de retórica otimista, às
idéias positivas, disseminando-se com tal força que, mesmo
antes da formatura, o estudante já reproduz a impotência
diante do contexto educacional.
Esse pressuposto me levou a buscar e analisar textos de egressos de cursos
de Letras cujos atos retóricos permitem uma leitura interpretativa
dos mesmos. Interessa-me, agora, não a reprodução
do discurso já conhecido, mas, sim, a constituição
desse discurso. Interessa-me o desvendar dos argumentos que o constituem
e sua construção retórica. Entender o processo constitutivo,
creio, nos levará a refletir com maior segurança sobre os
porquês dos resultados apontados no Relatório do Exame Nacional
de Cursos 2003 do INEP/MEC e suas conseqüências na prática
pedagógica de novos profissionais de Letras.
As análises dos textos permitem dizer que os egressos de cursos
de Letras, no contexto de produção do ENC, reproduziram
práticas discursivas e conceitos "vistos e ditos" na
sua formação acadêmica, sem as necessárias
transposição e adequação didática de
procedimentos discursivos e de estratégias argumentativas. Os novos
professores trabalharam, ao que parece, apenas com a informação
subtraída de contextos e discursos teóricos lidos, sem garantia
dos objetivos propostos pelo Provão 2003. Tal procedimento, de
algum modo, pode ter dificultado muito a possibilidade e qualidade das
respostas exigidas.
Essa hipótese reside na crença de que os enunciados estão
repletos de palavras, ecos e lembranças dos outros enunciados:
a palavra do sujeito pertence também aos outros e preenche os enunciados
alheios. Nessa linha de raciocínio, entendo que o meio social,
o contexto, determinam a norma de uso dessas "palavras alheias"
de que nos apropriamos, assimilamos, reestruturamos, modificamos. Nosso
próprio pensamento nasce e forma-se em interação
com o pensamento alheio, o que se reflete nas formas discursivas e argumentativas.
Na perspectiva bakhtiniana, propõe-se a idéia de que o discurso
se tece a partir de um exterior constitutivo, do discurso do outro, do
já-dito e, assim, opera sobre outros discursos, sobre dizeres presentes
e dizeres que se alojam na memória. O discurso do outro possui,
assim, uma expressão dupla: a sua própria, ou seja, a do
outro e a do enunciado que o acolhe. O objeto do discurso de um locutor,
seja ele qual for, não é objeto do discurso pela primeira
vez neste enunciado, e este locutor não é o primeiro a falar
dele. O objeto, por assim dizer, já foi falado, controvertido,
esclarecido e julgado de diversas maneiras, é o lugar retórico
onde se cruzam, se encontram e se separam diferentes pontos de vista,
visões de mundo e tendências.
Para melhor apreendermos a especificidade dos argumentos, partimos do
pressuposto que os egressos, autores dos textos, têm a capacidade
de usar persuasivamente um discurso para conseguir acordo com o auditório
ou para (procurar) influenciá-lo, utilizando um discurso alheio
como “modelo” sobre como os enunciadores da prova pensam,
por meio de identificação com os valores e verdades aí
cristalizados. Penso que agindo retoricamente, enfatizam-se as verdades
que se harmonizam com os valores e interesses do auditório e minimizam-se
ou evitam-se conflitos, críticas ou sanções.
Por tal motivo e procurando me aprofundar nas análises, restringi-me
ao estudo da questão número 12 por ter ela apresentado algumas
razões fundamentais que me ajudaram a interpretar os dados: primeiro
porque a questão solicitava que os alunos tivessem domínio
de teorias e métodos de ensino de língua e literatura; segundo,
porque a questão era optativa e fora respondida pela maioria dos
graduandos (64,5%), obtendo-se a menor média dentre as questões
optativas respondidas; terceiro, por ter sido considerada a mais difícil,
segundo dados do INEP/MEC; quarto, por pressupor que as respostas dos
egressos podem indicar o proceder do futuro professor dos próximos
tempos.
De posse de tais considerações, debruçei-me na interpretação
dos discursos, procurando conhecer com mais profundidade as circunstâncias
em que se dá a constituição dos argumentos, cujos
esquemas argumentativos encontram-se ancorados em Perelman (1996) e referendados
pelos processos e pelas condições de produção
da Análise do Discurso. É oportuno frisar que estamos certos
de que esses mesmos textos poderiam (e podem) ser analisados de outras
maneiras, conforme outros planos de delimitação e sinalizados
por outros suportes teóricos.
Antes de continuar discorrendo sobre as análises propriamente ditas,
creio ser conveniente apresentar o enunciado da prova, referente à
questão 12, que solicitou conhecimentos e aplicações
de diferentes teorias e métodos de ensino que permitem a transposição
didática dos conhecimentos sobre o ensino de produção
de texto escrito.
"Numa aula de Português, os alunos leram uma crônica
de Fernando Sabino, ‘Vale por dois’, e discutiram o tema,
que é a dificuldade da personagem para tomar decisões, mesmo
que nas situações mais simples do dia-a-dia.
Na aula seguinte, a professora apresentou esta proposta de redação:
‘As
pessoas não são apenas boas ou más. Às vezes
são egoístas, em outros momentos, amáveis; podem
ser indecisas ou extremamente autoritárias, tímidas ou extrovertidas...
Há aqueles que gostam muito de si, outros que se depreciam; há
os que acham que a sua vida vale a pena, outros, porém, ‘que
sua vida não daria nada, nem uma nota de pé de página...’
(Luiz F. Veríssimo).
Dê asas a sua imaginação e escreva um texto ( em 1ª
pessoa), falando de si, do seu jeito de ser e do que acha da sua vida.
Agora é a sua vez!
Seja criativo! Não se esqueça do título!’
Especialistas
do ensino constatam que, em geral, na escola, a produção
escrita resulta mecanicamente da leitura e da discussão das idéias
contidas no texto utilizado. Esse procedimento, considerado inadequado,
pressupõe existir na capacidade de produzir textos 'um saber que
a escola deve encorajar, mas que nasce e se desenvolve fundamentalmente
de maneira espontânea, sem que se possa ensiná-lo sistematicamente'.
(adaptado de Dolz e Schneuwly).
É possível reconhecer na proposta da professora a inadequação
apontada pelos críticos? Justifique sua resposta. “
Observa-se, na descrição do enunciado da prova, que o ENC/INEP/MEC
privilegiou, nesta questão, o conhecimento e o domínio de
conteúdos relativos às teorias e métodos de ensino
de redação. Para a análise da proposta, esperava-se
que, à luz de diferentes teorias, os egressos (retores daqui em
diante) fossem capazes de argumentar sobre problemas relacionados ao ensino-aprendizagem
de produção de textos escritos. Para desenvolver o raciocínio
argumentativo deveriam apresentar certo conhecimento e domínio
sobre o que indicam as diferentes teorias e métodos de ensino de
redação.
A situação retórica estabelecida pelo ENC solicitava
dos retores um posicionamento discursivo em relação ao auditório,
dentre as circunstâncias de produção possíveis
já que, como se sabe, as respostas foram direcionadas a uma audiência
específica (a banca examinadora), porém não conhecida
pelos retores. Tal situação visava uma resposta do retor
que pudesse expressar a posição desse retor em relação
à discussão proposta pela pergunta 12. As relações
de pergunta-resposta, afirmação-consentimento, nesse contexto,
pressupõem garantir, de certa forma, o processo de adesão
desejado. Logo de início, o auditório espera dos retores
uma resposta, uma concordância, uma adesão, uma objeção
ou uma execução. Nesse sentido, os retores, necessariamente,
não precisariam concordar com as premissas vinculadas na questão
12 que norteou a argumentação dos novos professores, bastava
apenas que respondessem satisfatoriamente à pergunta proposta,
isto é, que os retores respeitassem os elementos demonstrativos,
lógicos, que a argumentação comporta.
É preciso considerar ainda que essa situação retórica
coloca de um lado a banca examinadora composta de uma equipe de professores,
com reconhecida experiência e formação tanto na sua
área específica quanto na habilidade de proceder à
correção de instrumentos discursivos, argumentativos e,
de outro, estão os retores oriundos de diversas instituições
de ensino superior de todo território nacional, com perfis culturais
e formação teórica e prática bastante diversificadas.
A situação retórica instaurada é bastante
nítida: o retor precisa assumir uma postura de juiz para concluir
como acertado ou não um procedimento pedagógico. Ao demonstrar
sua adesão inicial, fica em desvantagem: não houve explicitação
da posição da banca examinadora sobre a resposta ideal para
a questão proposta. Assim, o retor desconhece a tese proposta (há
uma resposta “ideal”, que norteou a banca durante a correção,
mas que era desconhecida pelo aluno), e precisará apresentar as
provas técnicas (criadas no discurso e dependentes da Nova Retórica)
para justificar a sua posição.
Por outro lado, o retor coloca-se diante de uma questão (a da prova)
que, como qualquer outra, contém claramente três interrogações
que se completam (Meyer, 1993: 38): “A questão é legítima
e de onde vem? Estamos de acordo sobre o fato ou o próprio objeto?
Que fato é esse?”. Nesse contexto específico, a legitimidade
da questão se impõe pela situação de avaliação:
ainda que a questão seja hipotética, é legítima.
A existência física do fato narrado na questão, embora
simulado, é verossímil. Resta pois, ao retor manifestar-se
a respeito da concordância ou não com o fato em questão.
Deverá ele buscar argumentos que comprovem sua adesão ou
não adesão.
As análises demonstram que houve uma oscilação bastante
nítida entre o “sim” e o “não”,
ao responder à questão 12 proposta pelos examinadores. Tais
respostas pressupõem segurança de quem argumenta. O uso
do raciocínio apodítico, fechado, monossêmico, próprio
do raciocínio das instituições que criam “leis”
que devem ser cumpridas sem contestação, parece confirmar
essa condição dos retores. Dezesseis retores, dentre os
trinta textos analisados na amostra, ao dizerem categoricamente “sim",
procuraram – supõe-se - demonstrar que a tese de adesão
inicial, com a qual o auditório previamente concordou, é
compatível com a tese principal. O que se pôde observar,
porém, em vários outros textos é que, apesar do uso
do raciocínio apodítico e da ênfase dada à
defesa do argumento, nem sempre o desenvolvimento justifica o “sim”
inicial.
O retor é colocado, por força das circunstâncias,
na situação de exame, a assumir dois papéis simultâneos
- é solicitado a julgar como professor, mas está ainda na
faculdade, cursando o último semestre de sua carreira por isso,
também ainda é aluno. Vê-se, no entanto, obrigado
a interpretar uma experiência que ainda, talvez, não tenha,
além de precisar justificar o aspecto teórico dessa experiência
e habilidade que, em tese, teria adquirido nos conceitos de ensino sedimentados
em sua graduação. Além disso, o retor está
sob pressão do tempo para a realização do ato retórico
de modo seguro e eficiente. É evidente que tal contexto de avaliação
colabora para o estresse do retor, colocando-o em confronto com o examinador
e, assim, o obriga a oscilar entre três níveis básicos
de persuasão:
a) precisa convencer por meio de provas lógicas. Tal intenção
o leva a redigir o enfático “sim” inicial. Argumentar
desse modo parece indicar segurança e como o retor sabe que questões
como as do tipo proposto implicam interpretação e justificativa,
inicia o acordo com o auditório, demonstrando segurança;
b) precisa comover, levar o pensamento do examinador a aderir a seu ponto
de vista;
c) precisa “agradar”, pela arte de bem expor suas idéias.
Entretanto, uma parte significativa das respostas analisadas, em verdade,
diz concordar com o ponto de vista dos especialistas, mas acaba por hierarquizar
um raciocínio que identifica os retores serem contrários
à opinião dos especialistas e, de alguma forma, à
favor da proposta da professora. Para esse grupo de retores "apesar
da inadequação" apontada pelos especialistas, o procedimento
da professora pode ser interpretado como positivo na medida em que pode
incentivar a escrita dos alunos. Portanto, esse grupo, em verdade, não
adere às idéias dos críticos.
Os resultados das análises demonstram que, os retores defendem
a idéia de que o texto deve nascer espontaneamente. Partem da idéia
de cerceamento da criatividade em função da ação
da professora. Acreditam eles, supõem-se, que essa é a opinião
dos especialistas. Esse raciocínio equivocado revela que os retores
assumiram seus valores em detrimento das recomendações oficiais.
O que se observou é que os retores, em geral, opinam e não
argumentam. Ao que parece, por desconhecerem os princípios modernos
de educação, os retores buscaram estabelecer o acordo de
uma forma fechada, monossêmica, sem discutir as variáveis,
isto é, a professora citada no enunciado da questão não
procedeu da forma anunciada num modelo conhecido pela maioria dos retores:
não deixou a espontaneidade dos alunos fluir. Assim, a opinião
dos retores funda-se na petição de princípio, uma
vez que procura estabelecer um vínculo entre um ponto de vista
admitido e um suposto modelo também admitido modernamente na opinião
dos especialistas.
O discurso retórico percebido nas respostas dos retores se baseia
em provas e argumentos de autoridade. Todavia, as interpretações
discursivas feitas pelos retores foram, de certa maneira, condicionadas
aos lugares retóricos e à formação do sujeito-histórico-social.
Assim, é possível verificar em vários textos analisados
a presença de um pseudo-argumento, reconhecido como petição
de princípio pela Nova Retórica, por tratar-se de um erro
na técnica da demonstração, uma inépcia da
argumentação, pois age como se o auditório admitisse
o que na verdade não admite. Esse recurso de adesão, como
já descrevemos em momento anterior, consiste no fato de se postular
o que se quer provar: é um princípio de identidade do retor
com o auditório.
Nesse sentido, as análises evidenciam que os retores apresentam
uma opinião que se reporta a um auditório particular. Tal
estratégia argumentativa não tem réplica pois não
persuade; logo, não questiona nenhum interesse pessoal, mas baseia-se
no que este retor admite como verdade. É possível identificar
em vários textos analisados da amostra que a petição
de princípio coloca o retor em contradição com suas
próprias afirmações. Ao que parece, os retores procuraram
criticar os atos realizados pela professora, mas não conseguiram
identificar em seus próprios discursos a fragilidade na exposição
de suas idéias.
As análises evidenciam que os egressos não relativizaram
a situação didática proposta. Na maioria dos textos
estudados, nota-se que os retores admitem um modelo do qual eles também
não tem clareza qual seja. Parece-me que os retores sinalizam com
tal discurso um acordo com o suposto auditório de professores-juízes
(a banca examinadora). Por estar supondo o auditório, é
interessante verificar como os retores apresentam suas crenças
em consonância com as supostas premissas desse auditório.
Sob esse prisma, ao analisarem a atitude da professora, os retores se
viram obrigados a lidar com pesos e medidas de atitudes pedagógicas
das quais muitos, talvez, não tinham experiência. De algum
modo, ativeram-se a um imaginário construído sobre a escrita
na escola por isso reforçam a idéia de que o trabalho da
professora se efetua como inadequado, impróprio.
Observa-se, assim, que uma parte significativa dos retores, para justificar
a adesão às idéias dos especialistas, caracterizam
o professor de português, a partir de verbos e adjetivos que esculpem
o ethos desse professor como um profissional de perfil negativo: "incoerente":,
"repressora", "autoritária", "anti-democrática",
"interfere", "subestima", "pressiona", "tolhe",
"impõe", "não são criativos",
são algumas das características atribuídas à
ação da professora. Apenas em seis textos da amostra, a
análise parece revelar um ethos positivo de professor. A opinião
desses retores pode ser assim traduzida: "As palavras da professora
trarão um certo conforto para produzir um texto"; "A
professora levou os alunos ao mundo da investigação e socialização",
"A professora incentiva a leitura", " A professora estimula
a leitura antes de iniciar o processo de escrita", "A professora
teve um trabalho de suma importância: o desenvolvimento do aluno
como cidadão" e "A professora trabalha com uma proposta
centrada no uso-reflexão-uso".
Tais resultados de análises apontam que os egressos talvez não
estivessem preparados para responder tal pergunta. Ao que parece eles
não tinham embasamento teórico, conhecimentos sobre as novas
propostas didáticas de ensino de língua para discutir propostas
de ensino de texto escrito. Creio que os egressos consideraram a questão
fácil e até mesmo simples, motivo pelo qual respondem de
forma aparentemente singular sem inferir conceitos e conhecimentos enciclopédicos
e acadêmicos. Em suas respostas revelam-se valores e raciocínios
de práticas de ensino traduzidos por uma força argumentativa
que somam sua experiência de aluno à quase inexistente de
docência e, nesse sentido, "sentem" mais do que "pensam"
o fazer pedagógico. O exame os "pega" em um momento muito
significativo de transição entre o que sempre se foi (aluno)
e o que já se é sem praticar (professor).
Outro dado significativo que as análises demonstram está
diretamente vinculado à disposição do raciocínio
retórico. Na maioria das respostas, observa-se que os retores não
fizeram adequações lingüística e gramatical
necessárias ao contexto. Faltou-lhes usar na disposição
do raciocínio retórico, para a boa organização
dos textos, a clareza e a brevidade. A transgressão a esse precedente
resultou na falta de credibilidade sobre o que escreveram. As respostas
encontradas se identificam, além disso, com os chamados entimemas,
uma vez que pulam-se premissas e partem-se para as conclusões.
Verifica-se, ainda, que alguns retores teceram elogios à proposta
da professora (conforme já demonstrado), mas não perceberam
que em seus próprios textos escritos há distorções,
idéias fragmentadas ou justapostas, dentre outras ocorrências
observadas nas análises. Fica evidenciado que os retores, de modo
geral, tentaram usar um discurso persuasivamente para influenciar o auditório,
produzindo, de certa maneira, efeitos retóricos de sentido contrários
ao que se desejava como boa argumentação.
Creio que a grande maioria dos retores teve dificuldades para compreender
a relação entre os diferentes níveis do enunciado:
primeiro, o enunciado propriamente da pergunta 12; segundo, o enunciado
da proposta da professora; terceiro, o enunciado que traz a posição
dos especialistas; e quarto, novamente o enunciado do exame, cuja pergunta
central está indicada, na folha de questão, em negrito.
Ao que parece, os retores também não observaram o auditório
a quem se destinava os textos que produziram, nem mesmo se ativeram ao
objetivo norteador do ENC, amplamente divulgado pela imprensa nacional
à época: avaliar, a partir dos resultados do "Provão",
a qualidade de ensino nos Institutos, Universidades e Faculdades isoladas,
públicas e privadas, de todo o país.
Os resultados obtidos demonstram nitidamente um profundo descompasso entre
o que os alunos aprenderam em seus cursos de Letras e as expectativas
criadas pela banca examinadora do "Provão". Os retores
não organizaram seus argumentos em função de "retor"
e "auditório", num processo discursivo conhecido, em
que as relações de sentido escritas, deveriam ter merecido
atenção de quem, teoricamente, se "propôs"
a participar do ENC.
A construção retórica dos discursos, nesses casos,
exigiu que os argumentos fossem sustentados por “provas”,
baseadas em julgamento de valor retórico da legitimação.
Por isso, os argumentos encontrados nas respostas dos retores, revela
a dificuldade que eles têm para posicionar-se profissionalmente
diante de um problema, ainda que hipotético. Depreende-se das análises
feitas que, para os retores os caminhos para o ensino da produção
escrita são difíceis e até mesmo "indecifráveis",
cuja senha para o sucesso de tal produção está nas
mãos de poucos professores.
Lemos em Perelman (1996), que o ato retórico serve para fazer alguém
mudar de idéia, como também para fortalecer posições
já existentes, para reforçar e fortalecer a opinião
que todos já formaram sobre determinada idéia. Nesse sentido,
as análises revelam que o discurso apresentado pelos egressos traz
à tona a idéia de fracasso pedagógico. De alguma
forma, os retores reafirmam a posição de um determinado
grupo cultural que parece reforçar as crenças de que os
novos professores saem de suas faculdades, terminam seus cursos, sem as
habilidades mínimas e necessárias para responder pelo título
de professor que recebem, como procuraram demonstrar os retores nos textos
11 e 16, respectivamente:
"(...) Quem sabe assim não haja uma queda nos números
divulgados pelo INEP que mostram 59% dos estudantes do país com
deficiência de leitura." e
"Cada elemento de uma redação é importante,
o tema, a organização, a gramática enfim todo um
levantamento que não deve esperar chegar em uma Faculdade para
estudar tudo isso é muito importante e de grande urgência
começar ensinar, estudando hoje, já."
Do ponto de vista retórico, agir retoricamente significa enfatizar
um conjunto de verdades que se harmonizam com os valores e interesses
do auditório e minimizam-se ou evitam-se conflitos, críticas
ou sanções. Infelizmente, parece que não foi esse
o percurso lógico percorrido pelos retores.
Ainda assim, pode-se observar nos textos analisados que os retores se
manifestaram em seus discursos, mesmo por citação do discurso
de outros. Os textos, de alguma forma, refletem a doxa, o mundo da opinião,
onde são tecidas as relações sociais. Por isso, ressalta-se
em vários textos a idéia de senso comum, que se corporifica
no discurso deles. Creio que os retores tomaram para si, o discurso dos
especialistas, como representação da verdade, isto é,
se os especialistas do ensino de língua constatam que pode haver
uma inadequação naquela tipo de proposta para a produção
escrita, então só restava aos graduandos (muitos talvez,
volto a repetir, sem experiência de atuação no magistério)
concordar, declarar a sua adesão com "sim"! É
possível vermos nesse posicionamento que o discurso dos especialistas
se torna, nesse contexto - visto por esse prisma, convincente à
medida que faz com que os retores se sintam, de alguma forma, identificados
com os especialistas, que exercem também o papel de formadores
de opinião sobre os egressos.
Os resultados obtidos permitem ainda observar certos traços de
identidade que consolidaram o ato de adesão discursiva para as
noções quer sejam de fracasso quer sejam de sucesso, em
relação à proposta da professora. De modo geral,
os retores procuraram estabelecer um raciocínio baseado na opinião
de um auditório particular, embora não tenham avaliado o
contexto no qual se inscrevia a sua resposta. Para conseguir atingir o
determinado objetivo, isto é, responder à pergunta proposta
pela banca examinadora, os egressos tiveram que se utilizar de estratégias
discursivo-argumentativas para a organização dos argumentos.
A paráfrase foi o recurso lingüístico mais usado pelos
retores na organização do raciocínio retórico.
O discurso retórico, como procurei demonstrar anteriormente, se
utiliza de tal recurso para persuadir. A questão da prova, que
também se constitui de questão retórica e por isso
monossêmica (a pergunta é fechada uma vez que não
permite a réplica), leva os retores a parafrasear o discurso dos
especialistas. Esse raciocínio retórico contém ainda
o pressuposto (ou a possibilidade) que levou os retores a elaborar o raciocínio
por meio da paráfrase: os retores não têm informações
suficientemente necessárias para responder à questão,
mas por força da situação e da imposição
que o exame representa para a educação nacional acabam por
responder ao auditório por meio da paráfrase.
As análises dos textos evidenciam, e talvez se justificam, o alto
índice de argumento pragmático encontrado nos textos dos
graduandos. O essencial nesse tipo de argumento é que ele pareça
suficientemente garantido para permitir o desenvolvimento da argumentação.
Os retores sabem que o auditório, de alguma forma, admitirá
a solidariedade e a intensidade de suas declarações sobre
o que pensam da proposta veiculada na questão 12. Por isso, uma
saída estratégica usada pela maioria dos retores foi pôr
em evidência a adesão à constatação
de procedimentos de orientação para a produção
escrita, apontada pelos críticos como inadequados.
Tal atitude discursiva permitiu aos retores apreciar a opinião
dos especialistas e colocarem-se favoráveis a tais críticas,
mesmo que tenham confundido semanticamente o sentido dos vocábulos
"espontânea" (com tema livre) e "sistematicamente"
(com habitual), que aparecem no enunciado da prova. Além disso,
essa situação retórica coloca os retores, num certo
sentido, na posição de "inocentar-se" frente à
emissão de juízo desfavorável à atitude da
professora, isto é, a produção escrita resulta mecanicamente
de procedimentos da leitura, segundo apontam os críticos e não
"nós", os retores. Em outro sentido, isso significa dizer
que a quem contestar tal proposição descrita no enunciado
da questão 12 incumbirá justificar. E como "justificar"
a contestação se o retor não tem clareza sobre as
provas? Logo, a adesão por meio do argumento pragmático,
identificado em um número significativo de textos da amostra, parece
que foi o único caminho seguro que restava aos retores, naquela
situação. Interessa à essa estratégia argumentativa,
que é encontrada no uso comum, não a descrição
do real, mas a maneira pela qual se apresentam as opiniões a ele
concernentes. Nesse sentido, as análises dos textos dos egressos
permitem observar que essa premissa não foi contemplada. O argumento
pragmático, que se aplica a ligações de sucessão
que unem um fenômeno a suas conseqüências ou a suas causas,
desempenhou papel essencial para produzir efeitos argumentativos variados
em diversos textos da amostra, já que esses textos revelaram, na
opinião dos retores, haver a existência de uma causa para
a produção mecânica da escrita na escola.
As relações de causa-conseqüência, que as análises
indicam, podem ser aplicadas para justificar o comportamento retórico
dos egressos. Pode-se observar, ainda, que os retores parecem "resumir",
"condensar" como se segue o raciocínio da professora
quando, na verdade, me parece, "resumem", "condensam"
o próprio fluxo de raciocínio. Nesse sentido, nota-se que
os retores se escusam, por assim dizer, pelo "mau comportamento"
da professora para, de alguma forma escusarem a si mesmos.
O argumento pragmático usado pelos retores torna-se válido
nesse contexto do Provão porque realça as conseqüências
apontadas pelos especialistas. Não se discute, nesse momento, se
as conseqüências são boas ou não, já que
para ser aceito pelo senso comum, não requer nenhuma justificação.
Nesse sentido, as conseqüências podem ser observadas ou até
mesmo hipotetizadas, segundo o ponto de vista dos retores ou de qualquer
outro analista.
Embora haja uma incidência maior quanto ao uso do argumento pragmático,
neles a relação de tese e argumento não é
satisfatória, visto que os retores, ao que parece, embora procuram
estabelecer a relação de causa e conseqüência,
não conseguem identificar, relacionar e sustentar, por meio da
argumentação, a inadequação apontada pelos
críticos.
Nos textos analisados não foi possível identificar o quanto
os egressos agregaram de conhecimento durante os estudos na graduação.
Os resultados de análise evidenciam que pouco conhecimento foi
acionado, desnudando a falta de eficiência que se esperava como
critério de formação profissional.
Não nos cabe discutir, neste trabalho, as características
e as condições de natureza sócio econômica
e culturais dos egressos, nem as características dos cursos de
graduação de Letras, até porque são muitas
as variáveis a serem consideradas e por isso mesmo merecem análise
mais acurada. Todavia, entendemos que tais condições de
ensino em muito contribuíram desfavoravelmente, de alguma forma,
para a aprendizagem dos novos professores. Ao que parece, segundo relatório
INEP/MEC já referenciado neste trabalho, o ensino é mais
ineficaz justamente para aqueles estudantes mais carentes. Esses índices
acentuam a baixa qualidade e desigualdade de raciocínio e produção
escrita, como observamos por ocasião das análises dos textos
dos retores.
Os dados analisados revelam o ethos desses novos professores de português,
que não demonstram autonomia intelectual, domínio de termos
especializados e conhecimentos teóricos necessários para
discutir e refletir sobre as condições de ensino de produção
escrita. Pode-se afirmar com certa segurança que parte significativa
dos retores não tem domínio do padrão culto da Língua
Portuguesa, organização do pensamento de maneira apropriada
à situação que o ENC exigia. Faltou aos formandos,
articulação e sistematização de conhecimentos
teóricos e metodológicos para justificar a prática
da professora citada na questão analisada. Os retores, segundo
as análises, não perceberam inferências, pressupostos,
informações implícitas, subentendidos, ambigüidades,
contextualização, por desconhecerem cientificamente, inclusive,
tais nomenclaturas.
As análises apontam, ainda, para a falta de compreensão
dos retores: compreender exige atitude ativa e implica a potencialidade
de uma resposta. Compreender o enunciado da prova quer dizer orientação
em relação a ela, busca de pistas para dar-lhes sentido.
De alguma forma, esse posicionamento pressupunha a réplica por
parte do retor, o que não ocorreu. Em síntese, os resultados
das análises indicam a dificuldade que os retores tiveram para
a transposição didática dos conhecimentos teóricos
que a questão solicitava. Tais resultados corroboram, nesse sentido,
nossa hipótese, o que nos leva à certeza de que é
necessário investir de forma mais segura na formação
discursiva e argumentativa de professores de português.
Vê-se, também, que os egressos "culpam" exclusivamente
a ação da professora caso o aluno não escreva satisfatoriamente.
Justificam tal posicionamento pela falta de "inspiração"
da professora em conduzir a tarefa de maneira positiva. Na opinião
dos retores, agir de tal forma é contribuir para o conformismo
do aluno, levando-o a ter uma visão de mundo muito estreita, já
que não é usado o raciocínio como se deveria. Nesse
sentido, entendemos que o discurso retórico aparece sensivelmente
nos discursos dos retores, ainda que as ações e as opiniões
dos críticos possam indicar novos caminhos.
Tal raciocínio revela, também, a formação
desses retores, qual seja, uma formação para o ensino de
língua segundo os moldes discursivos tradicionais para a operacionalização
de metodologias e aspectos referentes à atuação do
professor em sala de aula. Os retores tendem a refletir, assim, uma posição
conservadora de práticas tradicionais, instauradas por um discurso
evasivo que diz concordar, aceitar a opinião dos críticos,
muito embora não aceitem a metodologia proposta pela professora.
Revela-se, ainda nos textos dos retores, um papel cristalizado de professor
de português, cujo ethos descrito, esculpido, pudemos verificar
pelas análises. A manutenção desse ethos contribui
para o bloqueio de um envolvimento de todos em situações
que poderiam ser significativas para o processo de ensino-aprendizagem.
Sob o prisma da Nova Retórica, cremos ser possível a classificação
de algumas categorias discursivas sobre o que dizem os retores. Assim,
propomos categorizar o discurso dos retores em: discurso do inseguro,
discurso do incoerente, discurso do conservador e discurso de consenso.
Esses últimos, não apresentam contraposição
explícita de argumentos, não oferecem embates discursivos,
embora tenham sido recorrentes, pela freqüência de uso, na
maioria dos 30 textos analisados. Os resultados obtidos nas análises
nos encaminham para a observação de que há um discurso
que acaba por servir de "modelo" ou um discurso que seja o de
"referência" para determinados contextos culturais.
Tais discursos, ao que parece, são/foram "montados",
organizados, constituídos, numa dada situação retórica
cuja identidade é representada, implicitamente, nos tópoi,
nos lugares retóricos, a partir de premissas não tão
evidentes para os retores, mas que se constituem dados hipoteticamente
aceitos por um aparente discurso consensual formado pela convivência
social. Os lugares retóricos revelam, no meu entender, o caráter
cultural dos retores e a maneira como procuraram expor o raciocínio
retórico. As premissas, como se sabe, servem de apoio ao raciocínio
e de mecanismos de adesão ao auditório, não é
"o" raciocínio, nem mesmo "o" argumento. Entretanto,
tais premissas foram apresentadas nos discursos dos retores como o objeto
de consenso de um determinado auditório: a banca examinadora.
Os retores, salvo engano, se manifestaram em seus textos, "cada um
a seu modo", a partir de uma identificação/identidade
dentro de um processo de formação discursiva, cujas representações
estão vinculadas a diferentes momentos intelectuais de suas vidas.
Por trás dessas representações há, evidentemente,
a busca do e pelo sentido sobre o que o outro diz. Considero aqui, naturalmente,
os pressupostos teóricos da Análise do Discurso para compreender
que cada retor é portador de sua historicidade e de experiências
intelectuais, não necessariamente as práticas pedagógicas,
salvo aquelas vivenciadas nos estágios supervisionados, articuladas
no momento da produção de seus discursos. A questão
da identidade se coloca, nesse contexto sócio-ideológico,
como índice de adesão ao auditório. Certamente, tal
interpretação nos remete à formação
social e profissional de todos os envolvidos no ENC; por isso, os sentidos
atribuídos pelos retores se movem entre a paráfrase e a
polissemia. Nos textos analisados, a paráfrase é ressaltada
pelos retores para corresponder a certa estabilização de
raciocínio, tendo em vista a concordância, a adesão
e até mesmo o consenso com o auditório.
O discurso dos egressos, então, traz à tona os reflexos
de um sistema educativo que, por sua vez, desvela a constituição
do ethos do professor de língua portuguesa pelo discurso pragmático
e a petição de princípio, que estão na base
da formação inicial desses professores. Cumpre frisar que
o discurso formador tanto pode direcionar para o sucesso quanto para o
fracasso profissional. Os resultados das análises parecem, nesse
sentido, reforçar o perfil negativo de novos professores e a manutenção
de um discurso e de um ethos, de professor e de aluno, já amplamente
e fartamente conhecidos.
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