Isabel Pitta Ribeiro Machado IFCH – UNICAMP
- Centro Cultural Louis Braille de Campinas (CCLBC)
Justificativa
Se a intenção deste Congresso de Leitura
do Brasil é promover o debate crítico da leitura, temos
aqui não só uma proposta de debate do conteúdo da
Carta sobre os Cegos, mas, principalmente, um debate sobre a acessibilidade
dos deficientes visuais a textos de qualidade que os auxiliem na construção
de princípios filosóficos e noções de cidadania.
A inclusão dos deficientes visuais na sociedade depende de inúmeros
outros fatores além da formação escolar e profissionalizante,
pois certamente eles precisam construir uma identidade cultural e conhecer
seus direitos.
Um indivíduo não pode constituir-se como cidadão
se não tem liberdade nem recursos para informar-se. As pessoas
com deficiência visual dependem de outros para lerem ou fornecer-lhes
material impresso em braille. Desse modo, além de ações
relacionadas à saúde e à educação,
é premente uma ação cultural relacionada à
inclusão digital. Essa é uma ferramenta de apoio para que
os deficientes visuais possam ter independência para realizar suas
pesquisas e, assim, adquirir autonomia intelectual.
A “leitura comentada da Carta sobre os Cegos” foi uma oportunidade
rara na qual os deficientes visuais puderam conhecer uma abordagem filosófica
sobre a metáfora do olhar e refletir sobre diversos conceitos a
respeito da construção do conhecimento.
Essa discussão permitiu a nós, videntes, confrontar o pensamento
de Diderot ao dos deficientes visuais. Aprendemos aquilo que somente os
olhares não-videntes puderam perceber. Nesse sentido, a leitura
crítica da Carta sobre os Cegos foi uma experiência singular,
uma leitura do mundo.
Descrição do trabalho
A “Carta sobre os Cegos” é um estudo
no qual Denis Diderot discute, entre outras coisas, a maneira pela qual
um cego congênito pode adquirir conhecimento, quando começa
a enxergar, depois de fazer uma operação de cataratas. A
investigação sobre o modo que o cego reconhecerá
os objetos e a importância dos sentidos como fonte de conhecimento,
são algumas das questões estudadas pelo filósofo.
A partir da leitura da “Carta sobre os cegos”, escrita por
Denis Diderot, dou início ao meu trabalho desenvolvido, no Centro
Cultural Braille, no qual ressalto algumas passagens e comparo as respostas
do cego de Puilsaux, às de outros cegos entrevistados, alguns cegos
de nascença, outros que perderam a visão ainda crianças,
ou ainda, que a perderam recentemente.
Faço, portanto, conjuntamente com eles, uma revisão comentada
da “Carta sobre os cegos” em pontos considerados fundamentais
para uma compreensão, aproximada ao menos, do universo dos cegos,
que segundo eles, é o mesmo dos que vêem.
Foram entrevistados:
Alexandre Petrocini (cego desde os 7 anos2)
Cosmo Adão França (cego definitivamente com 15 anos, após
um meningite2)
Sidnei Francisco Leite (cego aos 22 anos , por acidente)
Mezaky (cego aos 9 meses por medicamentação errada2)
Jean Brás da Costa (cego congênito)
Carta sobre os cegos
Introdução ao pensamento estético
de Diderot1
Diderot foi o primeiro a pensar no problema da comunicação
e no modo de ver a Arte. Experiências, como por exemplo, ir ao teatro
e tapar os ouvidos para somente observar e tentar “apalpar o sentido
da visão”, eram importantes para o autor, para poder perceber
o que um sentido diz para o outro.
Para Diderot , abstrair é traduzir. O sujeito é o resultado
do trabalho dos 5 sentidos sobre si mesmo, resultado do tempo de nossa
elaboração sobre o corpo e a natureza. O autor destaca a
diferença entre o belo natural e o belo imaginário, e afirma
que a natureza tem como origem o caos: “Somos caos permanente em
busca de ordem, conseguindo resultados transitórios”.
Para Diderot, existe um problema na passagem da poesia para a pintura,
pois a seu ver, a arte tem maior valor em seu esboço do que nas
cores e elas servem somente para adular o espectador. O autor afirma:
“É preciso colocar idéias na pintura, e não
só fazer o retrato perfeito da natureza. Quando você está
pintando, está interpretando as idéias, traduzindo a natureza”.
Diderot considera a vista como o sentido mais superficial e faz elogio
ao tato, como fonte de conhecimento.
No século XVII, raciocinar significava calcular, e Diderot, ao
contrário de pensadores como Spinozza, Descartes e Pascal, que
desconfiavam da imaginação, afirmava: “O que faz com
que homens sejam homens é a imaginação”. Desse
modo, surge então a questão da imaginação
que leva à questão da liberdade artística.
Ao considerar a Estética como, o estudo das percepções
humanas que leva ao que é belo, ocorrem as seguintes questões:
-O que faz com que os indivíduos julguem, ou percebam como belos,
um quadro, uma música, uma poesia, um gesto, um movimento, um toque
das mãos?
-Em cada caso, faz-se uso de um sentido apenas, ou da associação
de alguns deles?
-o que é a experiência do sublime? Quando achamos algo sublime,
o que é que se passa em nossas mentes e corações
em relação ao belo e ao feio?
Se para Diderot, o sujeito é o resultado do trabalho dos cinco
sentidos sobre si mesmo, então é exatamente a associação
desses sentidos, elaborados com o tempo, que determinará a particularidade
da maneira como cada indivíduo percebe o belo e o feio.
Segundo Diderot, quando existem diferenças, tem sentido remeter-se
à lembrança e comparar. É na alteridade, que se conhece
e se reconhece. É fundamental criar parâmetros, para avaliar-se.
Mas no momento da criação de uma obra, o que é necessário?
Para Shopenhauer, o artista tem a intuição imediata da essência,
e sua representação é a obra de arte, é a
capacidade de se auto-esvaziar, e criar algo genuíno. Para Kant,
a verdadeira obra de arte é sem interesse. Em Diderot, no caso
da pintura, é no esboço que está a arte maior.
Até onde nosso intelecto pode servir nossas faculdades, ou até
onde constitui-se com o olhar?
Diderot assume muitos aspectos Lockeanos, como a vista, a audição,
o olfato. Locke repetia o dito aristotélico: “Nada está
no intelecto que não está primeiramente nos sentidos”,
o que significa que tudo aquilo que vem através dos sentidos, é
elaborado de forma própria por cada um, o que torna diversa a intelecção
das coisas.
Leitura Comentada da CARTA SOBRE OS CEGOS
No início da Carta, Diderot encontrando-se na casa
do cego de Puisaux, comenta o cuidado em manter a casa arrumada por parte
dele e de seus familiares, pois existe uma grande dificuldade em encontrar
coisas perdidas, o que os obriga a serem ordeiros.
O deficiente visual, Alexandre, diz que não é organizado,
Jean,cego congênito,afirma que como todos, sofre com as generalizações.
A ordem, diz, é relativa e a desordem não é própria
dos deficientes ou dos que vêem, ou seja, o fato de ser deficiente
não implica em necessariamente possuir determinadas qualidades
ou defeitos.
Diferente de nós, que vemos, o cego, deve estudar pelo tato a disposição
entre as partes de um todo para poder chamar o objeto de belo. Porém,
ressalta Diderot, quando o cego afirma que algo é belo, ele não
julga, apenas se refere ao julgamento dos que vêem: “A beleza
para um cego, não é senão uma palavra, quando separada
da utilidade, e com um órgão a menos, quanta coisa há,
cuja utilidade lhe escapa!”.
Mezaky, cego aos 9 meses, diz que isso é relativo a cada pessoa,
pois gosta de carros e motos e mesmo sem nenhuma utilidade para ele, gosta
de tocá-los e portanto, de suas formas.
Jean diz que Diderot fala como se não houvesse outros sentidos:
“Certamente ele era completamente dependente da visão, não
conseguia perceber com outros sentidos. Nós gostamos de muitas
coisas que não nos são úteis. Algo pode não
ter utilidade, mas acho bonito, através da minha sensação,
do toque, de uma análise do objeto ou de alguém. O meu prazer
está em poder tocar. As pessoas que dependem da visão são
limitadas”.
Nesse momento Jean explode: “Matem Diderot!”, e todos questionam
como pode o autor, mesmo reconhecendo a importância da construção
do conhecimento através do tato, afirmar conclusões tão
generalizadas sobre o cego congênito.
Na Carta Sobre os Cegos, Diderot introduz uma questão: - “Os
cegos não são realmente dignos de lástima, por não
considerarem belo senão o que é bom?”
Os deficientes visuais do grupo discordam, dizem que a linguagem do ver
é para todos, e que tem um sentido muito mais amplo: “Tocando
é mais prazeroso”.
É interessante lembrar quantas vezes, no momento em que vemos um
objeto, o pegamos e dizemos “Deixe-me ver”. Esse gesto denuncia
a necessidade intrínseca do toque no processo da construção
do conhecimento. Os videntes enganam-se ao pensar que se encontra o belo
somente através do olhar. É preciso refletir no que consiste
o “olhar”. Quando temos a vontade de tocar, é como
se fossemos comprovar se “isto” que vimos é também
bom de se tocar, ou talvez perceber com o tato, aquilo que a visão
não consegue transmitir.
Todos os sentidos são como fontes do conhecimento, modificam o
modo de ver as coisas, produzem verdades relativas. Se o olhar engana,
até onde pode-se distinguir exatamente, se o erro está no
olhar, se está em qualquer outro sentido, ou no juízo que
se faz das coisas percebidas?
Os cegos congênitos têm o tato muito mais desenvolvido do
que o nosso. Dizem que temos apenas a vantagem da distância, e eles
devem percorrê-la até o objeto para tocá-lo e sabê-lo.
Mas após esse percurso tudo é igual, e podem então
afirmar: “Conheço isto”.
Portanto, concluem que não são dignos de lástima,
como afirma Diderot, pois a associação de suas sensações
bastam para que considerem algo belo. Acrescentam ainda: “Como dizem
que sou dependente de algo que nunca tive? O visual, sim, depende da visão”.
A visão os ajudaria muito na locomoção, mas não
no conhecimento das coisas.
Jean afirma que a visão engana e o tato não engana: “Eu
tenho a mesma imagem da cadeira, como você. Sei que é torta
em alguns pontos e reta em outros. Apenas tenho que tocá-la, e
vocês, repito, têm a vantagem da distância. Vêem
logo que olham”. Cita o dia em que foi ao Museu ver as esculturas
de Lasar Segal, e que ao tocar a “Materno”, retratou para
os que viam, a figura da mãe com o filho nos braços e sua
cabeça encostada entre seus seios: “Temos outros meios para
ver”.
Jean sentiu o que só ele poderia sentir, com a mesma particularidade,
propriedade de sensações, e diversidade dos que vêem.
Ao perguntar a Alexandre sobre o que é a experiência do sublime,
ele me respondeu que a melhor coisa do mundo é amar e ser amado,
mas não só o amor de eros, e sim todas as formas de amor.
Na Carta, Diderot elogia o cego de Puilsaux quando, ao falar sobre alguns
termos, mesmo não ligando qualquer idéia a eles, tem a vantagem
de jamais pronunciá-los fora de propósito.
O grupo discorda da frase de Diderot “O cego discorre bem e de maneira
justa sobre coisas desconhecidas”. Inicialmente, foi discutido o
conceito de coisas conhecidas e desconhecidas e num segundo momento, afirmaram
ter uma idéia justa sobre os termos que discorrem, pois construíram
tal conhecimento através de suas percepções.
O problema maior está no descrédito por parte dos videntes,
no que se refere à legitimidade da construção do
conhecimento dos deficientes visuais.
Mas o que exatamente significa o conhecimento pleno de algo? Quais os
critérios utilizados para se comprovar esse conhecimento? Todos
nós sabemos que aquilo que vale, é o conhecimento patenteado
pelo recurso visual, o olhar.
Na Carta, Diderot pergunta ao cego de Puilsaux, o que ele entende por
um espelho, e ele responde que “é uma certa máquina
que põe as coisas em relevo longe de si mesmas”. Diderot
diz então: “Nosso cego só tem conhecimento dos objetos
pelo tato”.De acordo com o autor, o cego sabe, pelos relatos dos
outros homens, que é por meio da vista que se conhecem os objetos,
assim como para ele o único modo é o tato, e conclui: “A
vista é uma espécie de tato, que se estende apenas aos objetos
diferentes de nosso rosto, e afastados de nós. O tato nos dá
apenas a idéia do relevo, portanto, um espelho é uma máquina
que nos põe em relevo fora de nós mesmos”.
-“Como o espelho, que repete em relevo, escapa ao sentido do tato?”
Ao perguntar ao cego, o que são os olhos, ele diz:
“Um órgão sobre o qual o ar produz o efeito de minha
mão sobre minha bengala”
Ao falar da memória dos sons, Diderot afirma que os rostos não
nos apresentam tanta diversidade como a que o cego “observa”
nas vozes.
Alexandre, como os outros, diz conhecer uma pessoa pela voz: “Por
exemplo você, é doce mas acho que não sempre, é
firme. Tem deficiente que acha que pode saber a cor do cabelo de alguém
pela voz, se é gorda ou alta. Eu acho isso impossível, porque
a idéia que faço de alguém que acabo de conhecer
é uma associação. A gente sempre corre o risco de
errar. Tenho em minha memória o rosto de uma prima, que tinha a
voz parecida com a sua. Então eu monto uma forma de boca, olhos,
e essa é você para mim. Associo vozes que conheço
com a sua, e essa associação é você.”
Cosmo, cego definitivamente aos 15 anos, diz que a imagem de uma pessoa,
é a sensação que a voz dela nos dá: “Criamos
uma forma, e é onde nos enganamos”. Num certo momento, disse:
“O que mais sinto falta é de ficar olhando os olhos verdes
de minha prima”.
Havia dor em sua voz. É inusitado, sublime, e ao mesmo tempo espantoso,
para mim, depois de algumas horas de conversa, perceber que usei o termo
“dor em sua voz” e não “dor em seu rosto”.
Talvez , naquele momento, eu estivesse começando a sentir na voz,
sensações que antes não havia provado.
Não havia expressão em seus olhos, eles permaneceram tranqüilos,
neutros, mortos, trazendo em minha memória a sensação
dura e de total estranhamento que um dia senti ao beijar a testa fria
de alguém que amava, já sem vida no corpo.
Alexandre perguntou-me: “Mas porque as pessoas dizem que, enquanto
falamos, se olharmos nos olhos do outro, saberemos se está ou não
dizendo a verdade? O que acontece, fisicamente com os olhos, que nos mostra,
nos prova que aquilo que está sendo dito é verdadeiro?”
Fiquei por alguns instantes emudecida, pois não conseguia descrever
características físicas nos olhos, porque talvez fossem,
na verdade, características daquilo que chamamos de “olhar”.
De que maneira, portanto, explicar, para um cego congênito, que
o olhar é algo diferente do órgão olho?
Aquilo que eu afirmava ver nos olhos de alguém, na verdade, era
somente o que eu sentia, o que tornava a afirmação puramente
ilusória. Nós, que vemos, sabemos dos riscos das interpretações
do olhar, mas como explicar para os cegos, que apesar de vermos, podemos
numa mesma circunstância, nos enganar tanto ou mais do que eles?
Qual privilégio nós videntes temos realmente, em comparação
aos cegos, no que se refere à busca da verdade?
Senti naquele momento uma sensação de clausura, de incompetência,
de cegueira, jamais experimentada.
Quando conseguimos sair do conforto de nossas idéias estabelecidas
e colocar-nos no lugar do outro, fazemos associações como
essas.
Os cegos também fazem suas associações, é
evidente. Porém, desprovidas da imagem, o que me leva num primeiro
momento, a pensar que a dor, sem a imagem, acentua-se e concentra-se ainda
mais, pois não se tem outras lembranças na memória
para dissociar, e nem ao menos novas imagens para se distrair. Como deve
ser difícil, para os cegos congênitos especialmente, dispersar
o pensamento.
Quanto controle do raciocínio é preciso? Ou será
que é exatamente a ausência de imagens na memória,
que torna menos forte ou dolorosa uma dor?
Jean disse-me que os videntes cometem um equívoco ao considerar
a imagem um elemento fundamental da vida. Afirmou que quando ele está
triste, busca a distração na mesma proporção
que eu, saindo à rua para conversar com alguém, lendo, ou
ouvindo música.
Diderot ao perguntar ao cego de Puilsaux se ficaria contente em ter olhos,
ele respondeu que, preferiria o aperfeiçoamento do órgão
que possuía - as mãos e braços - do que ganhar aquele
que lhe faltava.
Alexandre diz:“Eu não quero mais enxergar, há algum
tempo atrás eu queria, mas hoje não. Agora me acostumei,
sei me virar. Conto comigo, sou um dos poucos cegos que anda sem bengala
no calçadão, no centro de Campinas. Meu sonho era ser piloto
de corrida. Às vezes eu sonho que estou num carro, passeando numa
estrada”.
Quanto aos sonhos, Alexandre deu o seguinte exemplo:“Sonhei com
minha mochila, mas eu nunca a vi, sei sua forma e é com ela que
sonho, sem cor, mas sei que é preta, porque me disseram”
e conclui que os que vêem, lembram-se de imagens, e os cegos, de
objetos reais tocados.
No que se refere à frase de Diderot: “Casou-se para possuir
olhos que lhe pertencessem”, alguns do grupo disseram que em parte
é verdade, pois é mais fácil se locomover com alguém
que não tenha as mesmas dificuldades. Mas ao mesmo tempo, para
eles é muito difícil namorar alguém que não
seja deficiente, pois o preconceito é grande e alguns já
ouviram dos pais de namoradas, que não querem suas filhas sendo
bengalas de cegos.
Diderot acredita que o estado dos órgãos e dos sentidos,
tem influência sobre nossa metafísica e sobre nossa moral,
e que as idéias puramente intelectuais dependem da conformação
de nosso corpo, o que o leva a questionar o cego de Puilsaux, a respeito
de seus vícios e virtudes. O autor afirma que a moral dos cegos
é diferente da nossa.
Cosmo diz que aquilo que mais aprecia nas pessoas é a sinceridade.
Certamente essa é uma virtude que qualquer ser humano espera dos
outros, mesmo quando não a possui dentro de si.
-Talvez o cego precise, mais do que os outros visuais, dessa virtude?
Não vejo como considerar a afirmação de Diderot de
que “a moral dos cegos é diferente da nossa”. As atitudes
morais são determinadas por um conjunto de fatores que independem
do fato do indivíduo enxergar.
É estranho o autor querer explicar, aquilo que é apenas
possível supor, interpretar. É preciso um exame bem mais
aproximado dos deficientes visuais, para que se possa falar (sem julgar),
sobre um deles, pois é certo que um cego não é uma
raça.
Se certas deficiências determinassem uma raça de seres, poderíamos
então, falar da raça de professores de filosofia, o que
não seria correto, pois dentre eles existem os dóceis, os
rudes, os competentes, os incapazes, os cientistas que sabem ensinar,
e aqueles que só têm competência para ruminar seu saber,
diante de uma classe onde, por sua vez, se encontram tantos outros tipos
diversos.
Diderot afirma que a imaginação de um cego é a faculdade
de recordar e combinar sensações de pontos palpáveis,
e a do visual, a de recordar e combinar pontos visíveis e coloridos,
e conclui que, o cego de nascença tem uma abstração
maior que a nossa.
Jean diz que abstrato é o amor, que não se pode tocar, “a
nossa imagem é real, Deus é uma imagem irreal”.
Sidnei, que ficou cego há pouco, diz que sonha com todas as imagens,
do tempo em que enxergava, mas quando no sonho, lembra que está
cego, de repente tudo escurece.
Todos os deficientes concordam com Saunderson (matemático, um dos
mais renomados cientistas cegos do século XVII), quando afirma
que o tato pode tornar-se mais delicado que a vista, quando aperfeiçoado
pelo exercício.
Diderot destaca na Carta, as seguintes questões, após um
cego congênito ter feito uma operação de cataratas:
1-Ele verá tão logo tenha feito a operação?
2-Caso veja, ele verá o suficiente para discernir as figuras; estará
em condições de dar-lhes ao vê-las, os mesmos nomes
que lhes atribuía anteriormente ao tocá-las; e terá
demonstração de que os referidos nomes lhes convêm?
Segundo Diderot, logo que o cego começa a utilizar os olhos, a
imagem que se lhe apresenta, não passará de um “conglomerado
confuso de figuras e ele não terá condições
de distinguir umas das outras”, e conclui que, somente a experiência
pode ensinar-lhe a julgar as distâncias dos objetos, ou seja, é
preciso que o olho aprenda a ver.
Todos os deficientes congênitos entrevistados no Braille, concordam
que, se um dia chegassem a ver, seria difícil reconhecer um cubo
e um globo à distância, sem tocá-los, pois sua fonte
de conhecimento até então, tinha sido unicamente o tato.
Diderot prossegue a Carta, dizendo que devemos estar atentos às
impressões que os objetos nos causam, e somente a experiência
nos ensina a comparar as sensações, com o que as ocasiona.
Nos corpos, complementa, há qualidades que jamais seriam percebidas
sem o toque, pois às vezes, é o tato que instrui as pessoas
a respeito da presença de certas modificações insensíveis
aos olhos, podendo também ocorrer ao contrário, isto é,
o da vista instruir o tato.
No último dia de estudo, quando terminei a leitura da Carta para
os cegos do Braille, Jean se levantou, foi até o corredor e voltou
com uma frase que ali estava fixada. A frase era conhecida e pertencia
a um livro que eu havia lido na adolescência. Parecia-me poética
e ingênua demais, diante de uma cultura em que o olhar é
a fonte do saber e da realidade.
Se por um lado, Diderot elogia o tato e todos os outros sentidos, como
fontes de conhecimento, por outro, ironicamente se distrai, na indelicadeza
de suas conclusões. Talvez, como disseram alguns cegos, Diderot
seja completamente limitado à visão.
A frase a qual Jean se referiu foi:
-“É com o coração que se vê corretamente.
O essencial é invisível aos olhos”.
(Saint-Exupery em “O Pequeno Príncipe”)
Esse pensamento não é novo para a filosofia, mas o é
para um adolescente. Talvez não tenha valor para o adolescente
cego, pois ele não se utiliza da visão para autenticar seu
conhecimento sobre as coisas, e sim da reunião de todos os seus
outros sentidos, na busca da verdade.
Seria insano, depois de todo esse estudo, e da convivência com pessoas
tão superiores ao lidar com suas limitações - próprias
de qualquer ser humano - alguém se considerar detentor de qualquer
verdade sobre os cegos.
Se o sublime é uma percepção que espanta; se se pinta
com o sentimento; se o belo se manifesta na obra do artista, numa luta
desesperada de oferecer o fruto com graça; se é preciso
ter alma; então, caros filósofos, onde está a certeza?
Merleau Ponty, disse que a única certeza está no movimento,
e Platão, que olhar é recolher o tempo.
E o tempo é de cada um, e ele há de sempre vir, para iluminar
nosso “olhar”.
Bibliografia:
DIDEROT, Denis - Carta Sobre os Cegos- para uso dos que
vêem, 1749.Coleção “Os Pensadores”- Ed.
Abril, 1979.