Adriana
Alves de Souza Madeira - Pós Graduação - UFMS/ Universidade
Federal do Mato Grosso do Sul.
É
no encontro com qualquer forma de literatura que podemos oportunizar e
transformar nossa própria experiência de vida. Nesse sentido,
a literatura apresenta-se não só como veículo de
manifestação de cultura, mas também de ideologias.
(ZILBERMAN, & LAJOLO, 1986)
Até pouco tempo, a literatura infantil era considerada como um
gênero secundário, e vista pelo adulto sob duas óticas
apenas: ou era tida como um brinquedo ou deveria se deter no aspecto moralizante.
A valorização da literatura infantil como formadora de consciência
é bem recente e para tratar desse tema e a relação
entre a interpretação do texto literário e a realidade,
não há melhor sugestão do que pesquisar Lobato, o
escritor que impulsionou o mercado editorial brasileiro e que deu início
a uma literatura voltada para o público infantil de forma genuinamente
nacional.
Em 1917, Lobato vendeu uma fazenda que herdara em Taubaté e foi
com a família para São Paulo, onde passou a ser proprietário
da Revista do Brasil e fundador da Editora Monteiro Lobato & Cia.
sendo esta depois transformada em Companhia Gráfico-Editora Monteiro
Lobato.
Em 1924, um racionamento de energia levou a firma à falência,
mas no ano seguinte Lobato volta ao mercado editorial com a Companhia
Editora Nacional que viria a ser a pioneira das editoras modernas do Brasil.Ela
foi inaugurada com a obra “Hans Staden: meu captiveiro entre os
selvagens do Brasil”, publicada em 1926.( cf. Furacão na
Botocúndia,1997) .
Marqueteiro, Lobato inventou estratégias para multiplicar a venda
dos livros, dando-lhes embalagem para serem vistos como mercadoria. A
Godofredo Rangel, seu fiel correspondente escreveu:
Mando-te
um Staden, a edição primogênita da nova Companhia,
por coincidência, o primeiro livro que se publicou sobre o Brasil,
é obra realmente interessante e merecedora do sucesso que tem tido
.A edição inicial é de 3 mil e está no fim.”Lobato.
(cf. Furacão na Botocúndia,1997)
Por se tratar
de um marco referencial da obra lobatiana que caracterizou o autor como
pioneiro no mercado das letras, a obra adaptada para o público
infantil denominada “Aventuras de Hans Staden” foi o objeto
de estudo desta pesquisa que se inicia através da análise
do texto lobateano e tem a pretensão de avançar por meio
de todo levantamento da fortuna crítica e de referências
à obra .
O percurso histórico de uma obra que perdura no tempo sendo reeditada
desde 1557 justifica o iminente sentimento de pulsão formal que
enaltece o trabalho de pesquisa e recepção crítica
deste texto .
Hans Staden surgiu como referência a Lobato a partir da tradução
francesa da obra similar em conteúdo intitulada História
de uma viagem à terra Brasil de Jean de Lery.
Em carta não publicada de Paulo Setúbal a Monteiro Lobato,
tece elogios a obra, como transcrevemos:
20 de julho de 1926, São José dos Campos.
(...) o Lery
é um colosso. Você deu-lhe vida nova conservando o laborar
chaico. Sua bella obra você está realizando. Bravos! Bravos!
Eu tenho muita coisa sobre os holandeses que poderia servir inclusive
o Barbeus.
Depois conversaremos.
O surgimento
de Aventuras de Hans Staden se explica por intermédio do sucesso
obtido pela tradução do texto de Jean de Lery, e de acordo
com levantamento solicitado pelo próprio Lobato em 1945 à
Cia Editora Nacional, constam no acervo lobateano em torno de 66 obras
traduzidas pelo autor. Dentre estas, destaca-se Hans Staden para o público
infantil.
Em, O Homem e a Obra (1947), Gilberto Conte diz:
Antes de
Lobato as traduções, as raras traduções que
apareciam, eram feitas por anônimos e muitas vezes assinadas apenas
com iniciais. Nenhum homem de Letras dava a honra de traduzir. O traduzir
era tido como arte inferior ao escrever, quem acabou com essa cisma foi
Monteiro Lobato.
Se Staden
produziu um texto autobiográfico, fez uma tentativa renovada e
fracassada de dar voz aquilo que não fala, de trazer aquilo que
está morto à vida. As aventuras de um náufrago alemão,
escritas em 1ª pessoa foram traduzidas e posteriormente adaptadas
por Lobato que deu várias vozes ao herói alemão.
Ele não mais fala por si, há narradores para seu texto que
o fazem sob uma ótica diferenciada daquela em que ele viveu.
Desse modo, ao cunhar o conceito de antropofagia em Hans Staden como estratégia
para discussão da cultura e do poder, Lobato formulou sua abstração
da realidade, propondo a reabilitação do primitivo ao homem
civilizado, dando ênfase ao selvagem, devorador da cultura alheia,
transformando-a em própria, desestruturando oposições
dicotômicas entre o bem e o mal.
A representação do índio até então
se completava apenas em dois patamares:
a) bárbaros e sanguinários
b) incultos e subservientes
Sob essas perspectivas a literatura infantil lobateana revela-se adequada
para queda dessa temática recorrente e através de Pedrinho
D. Benta recorda em uma das páginas de Hans Staden a fábula
do leão que observa uma estátua na qual o homem derrota
o Rei das Selvas que exclama: “esta imagem seria muito diferente
se tivesse sido esculpida por um leão”
Lobato desse modo mostra aos leitores que a História é feita
para o tempo não por quem a vivencia mas sim por aqueles que a
escrevem. O olhar do outro pode ser considerado uma resposta cultural
que se desvincula do que não é estranho à cultura
branco indígena. A nacionalidade brasileira tornou-se autêntica
e ao mesmo tempo se desconstrói ante o diálogo que Lobato
mantém com Staden. Diante desse descompasso cultural, o olhar do
leitor pode se sobrepor à possibilidade de que a literatura não
é um fato consumado e imóvel, mas que se constrói
a medida que se desarticula do outro.
Quando Lobato apresentou a tradução de Hans Staden fez uma
nova leitura da obra, pois além de entender e compreender, realizou
uma recriação do texto. Desse modo, podemos entender a tradução
como uma superação do original, pois está associada
à teoria da recepção. Traduz-se com o objetivo de
se aproximar a obra ao público.
Entretanto, para Lobato, somente a tradução de Hans Staden
não fez com que sua recepção surtisse o efeito desejado,
então decide (impulsionado por inúmeros fatores) produzir
a adaptação do texto para as crianças. O prefácio
da 3ª edição traduz parcialmente os objetivos lobateanos
que viriam a impulsioná-lo para recriação da obra
destinada ao público infantil:
Hans Staden,
meu captiveiro entre os selvagens do Brasil
3ª edição-1927
Texto ordenado
literariamente por Monteiro Lobato- Cia Ed. Nacional.
Prefácio
“Documento mais precioso não há, relativo à
terra brasileira em seus primórdios do que as presentes memórias
de Hans Staden. Náufrago acolhido pelos lusos em São Vicente,
viu-se um dia esse alemão nas unhas dos tupinambás , retido
como presa de guerra durante meses, sob a ameaça terrível
de ser devorado de um momento para o outro. Defendeu-se Staden com as
armas da astúcia e conseguiu implantar no ânimo supersticioso
dos índios a crença de que o protegia visivelmente um Deus
mais poderoso que os Maracás. Escapou , regressou à pátria
e lá publicou em 1557 a narrativa ingênua da sua tragédia
fornecendo assim ao historiador futuro, e ao antrophólogo o melhor
documento sobre os homens e costumes do Brasil de 1550.”
Mas esta obra de valor inestimável, que devia andar no conhecimento
de todos os brasileiros, viveu até hoje resctrita aos estudiosos,
e sem divulgação por falta de uma coisa só: ordem
literária. Sem a tal, tempero por mais interessante que seja não
consegue uma obra vulgarizar-se.
Com a actual edição fazemos uma tentativa neste sentido.
Com absoluto respeito ao original, ordenamo-la literariamente de modo
que lucrasse em clareza e facilidade de leitura, sem prejuízo do
caráter documentativo, uma obra que até nas escolas devia
entrar, pois melhor que nenhuma daria aos nossos meninos a sensação
do Brasil menino.
Os nomes próprios e as palavras e phases em língua da terra,
que Staden fixou, aparecem corrigidas de acordo com a lição
do mestre doutíssimo que é Theodoro Sampaio, nas notas com
que enriqueceu a tradução de Alberto Lofgren publicada,
em 1900.
Para Linda
Hutheon , literatura e história são indiscerníveis,
uma vez que as duas são formas narrativas nada transparentes em
termos de linguagem ou de estrutura. Assim, as narrativas ficcionais e
factuais possuem o mesmo valor em relação à realidade
que assumem representar.
Para Bachelard a imaginação literária e a realidade
concreta do mundo servem para ilustrar a fruição integradora
e transformadora da criação literária. Se Lobato
criou em Hans Staden, o fez através de uma alegoria concreta de
mundo, capaz de integrar o real com o surreal, transpondo valores e ideologias
que até então estavam reduzidas a um mero descompasso histórico
e cultural .
Arrojo , não define a história como uma indagação
da realidade, mas como sua origem. A verdade histórica para ela
não é o que a sucedeu, é o que pensamos que a sucedeu.
Assim, Lobato produz, recria sua tradução primeira, agora
as personagens do Sítio do Picapau Amarelo interagem com o alemão
e o prefácio da segunda edição assim se apresenta:
Prefácio da segunda edição de Aventuras de Hans Staden
As aventuras de Robinson Crusoé constituem talvez o mais popular
livro do mundo. Da mesma categoria são estas de Hans Staden.
Se as de Robinson tiveram a divulgação conhecida, proveio
de passarem às mãos das crianças em adaptações
conforme a idade, e sempre remoçadas no estilo, de acordo com os
tempos. Com as de Staden tal não sucedeu__ e em conseqüência
foram esquecidas.
Quem lê hoje, ou pode ler o livro de Defoe na forma primitiva em
que apareceu? Os eruditos. Também só os eruditos arrostam
hoje a leitura do original das aventuras de Staden.
Traduzidas ambas, porém, em harmonia moderna, toante com o gosto
do momento emparelham-se em pitoresco, interesse humano e lição
moral. Equivalem-se.
Anos atrás tivemos a idéia de extrair do quase incompreensível
e indigesto original de Hans Staden esta versão para as crianças
__e a acolhida que teve a primeira edição, bastante larga,
leva-nos a dar a segunda. Trazia à guisa de prefácio estas
palavras que ainda não são descabidas:
É inestimável o valor das memórias de Hans Staden,
o aventureiro alemão que esteve prisioneiro dos tupinambás
oito meses durante o ano de 1554. Representam o melhor documento daquela
época quanto aos costumes e mentalidade dos índios. Em vista
disso, Dona Benta não poderia deixar de contar a história
de Hans Staden aos seus queridos netos_como não poderão
as outras avós e mães deixar de repetí-la aos netos
e filhos.Para facilitar-lhes a tarefa , damos ao público este apanhado
, em linguagem bem simples, no qual seguimos fielmente a obra original
.
O grande valor do livro de Hans Staden para nós do Brasil é
que é o primeiro aparecido no mundo sobre a nossa terra. A primeira
edição foi dada em Marburgo na Alemanha, em 1557, isto é,
57 anos apenas depois do descobrimento de Pedro Álvares Cabral.”
Monteiro Lobato
A discussão em torno desses paradigmas e as coerções
ideológicas que os constituem, faz como vimos em Fiorin (1990),
o itinerário pelo discurso, que não se esgota no interior
do próprio texto, mas se projeta na história .É preciso
sempre levar em conta o intertexto para se ler o texto .
A pesquisa e a reflexão sobre a literatura infantil produzida por
Lobato em Hans Staden se justifica nesse projeto pela intenção
de implementar uma interface entre a discussão acadêmica
sobre a qualidade dos textos que o grande público obtém
e a articulação de uma política de descobrimento
e valorização de nossas raízes culturais.
Assim também em toda sua obra infantil, o interesse principal não
está somente no desenvolvimento do enredo, nos episódios
de uma história, mas, ao contrário, no estudo da repercussão
que os fatos têm sobre a consciência das personagens.
As ações transcorridas no texto destinam-se a ilustrar características
sociais e da cultura nacional. Dessa forma as personagens do Sítio
do Picapau Amarelo interferem no enredo como se fossem as vozes dos leitores
realizando as inferências textuais necessárias á continuidade
da história contestando a linguagem literária padronizada
.
Personagens e narradores desenvolvem assim um mesmo tipo de prática:
aventuram-se através da imaginação buscando romper
com a barreira da palavra, com o rotineiro mundo lógico, voltado
unilateralmente para os fatos observáveis a narrativa lobateana
é motivada pela perspectiva da sutileza e baseia-se também
na pormenorização dos detalhes e nas citações
dos diálogos entre os interlocutores textuais.
Essa pesquisa tem a pretensão de servir como instrumento de reflexão
para todos que concebem a literatura não pormenorizada por clichês,
mas que abriga em seu interior uma atitude crítica referencial
e ao mesmo tempo de distanciamento. A obra infantil pesquisada não
se preocupa em moralizar ou alegorizar conceitos e preconceitos sociais.
Seu objetivo se aproxima da realidade para denunciá-la e não
simplesmente representá-la .
Diante dessa perspectiva, tratar do tema canibalismo/antropofagia no limiar
do século XXI, coincide com a teoria da intertextualidade. Em As
flores da escrivaninha, Leyla Perrone Moisés diz:Os candidatos
à devoração, antes de serem ingeridos, tinham de
dar provas de determinadas qualidades, já que os índios
acreditavam adquirir as qualidades do devorado. Há então,
na devoração antropofágica, uma seleção
como nos processos da intertextualidade.
E os tupinambás não devoraram Staden. Assim, ambos tornaram-se
vitoriosos, os tupinambás que tiveram sua cultura retratada através
das letras para a história (já que eram povos ágrafos)
e o alemão Staden que permanece na literatura mundial (sem ter
sido escritor ou literato, pois ditou suas memórias a um médico
para que este as escrevesse).
Desse modo, podemos perceber a integração de uma velha cultura
em um novo contexto, em função das necessidades da ideologia
que os aplica. Ou seja, existe um caráter mediador da linguagem
no texto que rearticula motivos clássicos diante de exigências
históricas. A “mirada estrábica” -usando a expressão
de Ricardo Piglia- traduz o caráter seminal e transcultural que
o tema antropofagia estreita com a literatura dentro da pós-modernidade.
Cardoso diz que o valor artístico literário proposto pela
biografia não satisfaz plenamente às expectativas de nenhum
dos circuitos culturais (o midiático, o acadêmico, os alternativos),
mas atende a uma parcela das exigências diferentes de cada um deles),
dessa forma Hans Staden pode ser considerado como a representação
de uma conexão entre a autofiguração, memória
e autoconsciência cultural