Maria das Graças Sandi Magalhães,
Universidade São Francisco - USF.
Editados durante décadas, em alguns casos por grandes
empresas multinacionais, contando com colaboradores e ilustradores de
renome e tiragem bem acima da média das obras literárias,
os almanaques de farmácia foram pouco pesquisados até o
momento, em parte em função da dificuldade de se encontrar
esse material. Na década de 1990 algumas pesquisas, que escolheram
como objeto de estudo o almanaque de farmácia, utilizaram coleções
particulares ou dos poucos laboratórios que conservam algum acervo
dos almanaques editados. A maioria dos almanaques utilizados nesse trabalho
também pertence a acervo particular .
Um primeiro aspecto que se destaca no conjunto de almanaques estudados
é a diversidade de publicações, com grandes tiragens,
como no caso do Almanak Xarope São João, que na edição
de 1931 chegou a um milhão de exemplares. O número de empresas
que utilizavam exemplares anuais de almanaques como forma de propaganda
foi se reduzindo ao longo das décadas de 1950 e 1960, como sinaliza
o editorial, na capa interna do Almanaque Catedral de 1967:
Ao ser lançada a primeira edição do ALMANAQUE CATEDRAL
em 1938, centenas de publicações do mesmo gênero circulavam
no país, editadas principalmente pelos laboratórios de produtos
farmacêuticos. Em face dos obstáculos cada vez maiores que,
de ano para ano, foram surgindo, os almanaques de distribuição
gratuita começaram a rarear sempre mais até que, presentemente,
ficamos quase sós, mas continuamos corajosamente na estacada e
assim esperamos prosseguir.
A mudança registrada pelo editorial pode estar
relacionada a diversos fatores, que requerem um estudo específico.
O crescimento da urbanização e da oferta de outros tipos
de publicações, que atendiam aos interesses cada vez mais
diversificados das camadas urbanas, e o desenvolvimento de novos veículos
de propaganda podem ser associados à diminuição do
número de laboratórios que publicavam almanaques na década
de 1960.
O período no qual se insere esse trabalho foi permeado por intensos
debates, relativos ao processo de formulação e disputa de
projetos para o país, momento em que saúde e educação
foram temas de destaque. No período relativo à década
de 1920 e início da década de 1930, intelectuais, sanitaristas
e representantes do Estado foram protagonistas desses debates que envolveram
a constituição da nacionalidade e a necessidade do combate
ao analfabetismo e às doenças endêmicas que atingiam
parte da população brasileira (BOMENY, 1993).
O estudo dos exemplares demonstrou que a indústria de medicamentos,
tanto a nacional quanto a estrangeira, incorporou e divulgou as idéias
relativas ao movimento sanitário. Cuidar da infância, de
sua saúde em especial, adquiriu nos almanaques um vínculo
com a questão da nacionalidade e com os critérios de modernização
do país.
Apesar do número menor de exemplares estudados pertencer à
década de 1920, a presença nos almanaques de elementos dessas
discussões indica que segmentos da sociedade que não são
comumente considerados como integrantes desse processo, tiveram acesso
aos debates que envolviam idéias sobre a raça brasileira,
progresso e ciência, além de regras de higiene para a população,
que podiam ser encontradas nesses impressos.
O movimento que levou Getúlio Vargas à presidência
da República incorporou parte das idéias, que contribuíram
para a consolidação de um Estado centralizado no Brasil.
Esse processo de centralização política se desenvolveu
ao longo das décadas de 1930 e 1940 e teve como uma de suas características
a ênfase maior no papel das instituições escolares,
sinalizando um segundo momento em relação às discussões
que envolveram saúde e educação.
Esse movimento pode ser identificado nos almanaques, se considerarmos
as representações sobre a infância presentes nesses
impressos. Sem abandonar a divulgação dos preceitos higiênicos,
tornaram-se mais comuns nos almanaques as imagens de crianças escolarizadas,
a partir da década de 1930. Alguns almanaques chegaram inclusive
a incorporar o discurso da necessidade de campanhas de alfabetização.
Da divulgação de hábitos higiênicos e dos cuidados
com as crianças, os almanaques passaram progressivamente também
a identificar a infância com a instituição escolar.
Perceber os indícios desse movimento demandou a análise
de um período que abrangesse as décadas de 1920 a 1940.
A educação nos almanaques de farmácia.
Do conjunto de almanaques pesquisados, destacam-se 52 exemplares, entre
os anos de 1922 a 1953, por conterem atividades relacionadas a conteúdos
escolares ou citações ligadas a processos educacionais,
como leitura e alfabetização. Foram publicados por 16 empresas
diferentes, entre laboratórios nacionais ou estrangeiros, além
da Cia. Nestlé. Entre os anos de 1922 a 1930 foram estudados 10
exemplares. O período entre 1931 a 1953 concentra o maior número,
com 42 exemplares analisados.
Um aspecto que chamou a atenção, em relação
ao tratamento dado à infância nesses almanaques, foi o número
reduzido de menções a crianças escolarizadas nas
edições estudadas na década de 1920. No caso do Almanack
do Biotonico, entre 1926 até 1949 (com a ausência dos anos
de 1928, 1933 e 1943), apenas um exemplar menciona a escola, de forma
indireta; mas nenhum deles se refere ao uso de seus produtos para escolares.
Embora a campanha que promovia o fortificante Biotonico Fontoura tenha
vinculado o produto à melhoria do rendimento escolar nas décadas
seguintes, em especial na campanha promocional que usava o bê-á-bá
(PARK, 2003), a ausência de referências no período
anterior a 1950 não deixa de ser um dado relevante.
Em outros almanaques, a partir da década de 1930 e na década
seguinte, aparecem algumas menções às crianças
que freqüentavam a escola, em geral relacionando fracasso escolar
a problemas de saúde. Foram onze referências diretas, entre
os anos de 1931 a 1953. O Almanaque Bayer de 1931 destaca a importância
das escolas, na seção Conheçamos o nosso paiz: “A
instrucção publica primaria é dada em 22.664 escolas;
a secundaria no COLLEGIO PEDRO II e em 25 gymnasios estaduaes e 30 institutos
particulares áquelle equiparados (p.26)”.
Parte dos anúncios representava situações em que
as crianças apareciam na sala de aula, indo para a escola ou saindo
dela. Os desenhos feitos por Kohout no Almanach d' A Saude da Mulher,
de 1932 ilustram a propaganda do xarope Bromil, mostrando o interior da
sala de aula e a saída de uma escola primária. A primeira
figura mostra uma classe mista e embora a professora se apresente como
o centro da imagem, as crianças também se destacam como
elemento ativo da propaganda.
Em relação à imagem dos professores, podemos encontrar
dois exemplos que ainda identificavam o magistério como atividade
masculina. Em 1932, o Almanak Xarope S. João divulgava o fortificante
Vigonal através do exemplo do professor, que recomenda o produto
aos alunos sem ânimo para o estudo. O Almanaque do Biotonico de
1935 trazia a história em quadrinhos "O papagaio da Botica",
em que a personagem principal, Finoca, é apresentada como a "peior
alumna da classe". Nesse caso, o que chama a atenção
é a figura do professor portando uma palmatória.
Resolver os problemas que provocavam o fracasso escolar se tornou uma
das atribuições de diversos medicamentos anunciados nos
almanaques. Podemos encontrar um desses exemplos no Almanaque Guaraína
de 1940. O anúncio era precedido de ilustração, mostrando
um aluno com orelhas de burro, ridicularizado pelos colegas (p.13):
A Casa do Suplício
Veja a tortura moral a que seu filho é submetido
na escola por ser o último da classe. Entretanto, é uma
criança que merecia melhor destino, pois se tem o cérebro
fraco, o seu coração e sensibilidade são perfeitos
e ele chora lágrimas de sangue por não poder acompanhar
seus companheiros nos vivos progressos que fazem.
O atraso de seu filho nos estudos vem apenas de fraqueza geral que êle
sente.
Dê-lhe "Calciovitamina". Faça do seu filho uma
criança sadia, para a qual a escola não mais constitua como
hoje, uma casa de suplício.
Da mesma maneira, a história de Juquinha, intitulada "O Último
da Classe", na edição de 1935 do Almanak Cabeça
do Leão (p.10), recomendava em seu final a "Salsaparrilha
do Doutor Ayer", para transformar o menino, considerado a "vergonha
da família", em “entusiasmado no estudo e decidido a
conquistar, ponto a ponto, a melhor colocação na lista dos
estudantes seus colegas”.
São exceções, mas que podem representar uma mudança,
possível de ser identificada ao se analisar um conjunto de edições
relativas às décadas de 1920 a 1940. Nos almanaques, a escola
passou a ser apresentada, a partir da década de 1930, como um aspecto
importante na vida da criança, a ponto de tornar o mau rendimento
uma "tortura" para ela e também para a família.
Indício também de que em relação à
infância, o discurso sobre progresso incorporou a instituição
escolar de forma mais clara como um de seus elementos, destacando-a da
definição mais ampla de educação, relacionada
em geral nos almanaques do período anterior aos hábitos
higiênicos e aos cuidados com a saúde.
A capa de 1949 do Almanaque do Licôr de Cacau Xavier traz uma representação
da continuidade da política iniciada pelo governo Vargas que, principalmente
no Estado Novo, passou a dar destaque ao papel da escola como elemento
de valorização da nacionalidade. Ao fundo da ilustração
há um mapa do Brasil e sobre ele caminham uma menina e um menino
com uniforme e material escolar. A frase em destaque ressalta a importância
da escola para o país: "É com os pés das crianças
que a Pátria caminha".
As raras referências sobre escolares nos almanaques estudados na
década de 1920 parecem reforçar uma representação
da infância, nesse tipo de impresso, associada aos primeiros anos
de vida da criança. Embora o número de almanaques disponíveis
para a análise nesse período seja bem menor que os da década
seguinte, há indícios de que os cuidados com os bebês,
em função da necessidade da diminuição das
taxas de mortalidade, a campanha pela "regeneração
da raça", ligada às discussões sobre o exame
pré-nupcial e ao aleitamento materno, ocuparam os discursos relativos
à infância nos almanaques durante esse período.
Entretanto, esse indicador não significa que a necessidade de ampliar
os níveis de escolarização da população
brasileira fosse uma invenção do movimento escolanovista
ou da "era Vargas". Segundo Faria Filho, a transformação
da escolarização como condição "natural"
para a vida em sociedade foi um processo que se desenvolveu “ao
longo do século XIX e início do XX (apud DEMARTINI, 2001,
p.125)”.
A crítica à instrução primária aparece
tanto no segundo reinado quanto nos discursos republicanos do final do
século XIX. Em 1889 foi publicado, em francês, o livro L'instruction
publique au Brésil: histoire et legislation (1500-1889), de Pires
de Almeida. O autor, que defendia a monarquia, afirmava que, apesar do
volume de receitas destinado à educação no país,
“é incontestável que, comparando a população
com o número de crianças inscritas nas escolas, o ensino
primário está em desacordo com a escala que ocupa entre
os povos cultos”. (apud KUHLMANN JR., 2001, p.46)
Em seu estudo sobre crianças como agentes do processo de alfabetização
no final do século XIX e início do XX, Zeila Demartini,
utilizando fontes orais, afirma que existia entre as crianças dessa
época, mesmo a que não freqüentavam a escola, uma representação
sobre a aprendizagem da leitura e da escrita. Representações
de origens diversas: obtidas através do convívio com adultos
ou mesmo com outras crianças que passaram pela escola; o acesso
a materiais que estimulavam o aprendizado, como cartilhas, abecedários
e jornais (DEMARTINI, 2001).
Os almanaques de farmácia podem ser incluídos nessa lista
de impressos que promoveram um contato com a cultura escolar, mesmo sem
mencionar a escola de forma direta. Juntamente com a discussão
sobre a higiene e o aleitamento, os almanaques forneciam aos seus leitores
diversos passatempos e curiosidades que se aproximavam das atividades
escolares.
O primeiro aspecto que reforça essa hipótese é a
presença de seções de passatempos que utilizavam
atividades ligadas ao ensino da matemática e da física,
com problemas lógicos e experiências. A edição
de 1930 do Almanak Xarope S. João (p.12), por exemplo, ensinava
aos leitores o conceito de inércia, através de experiência
que propunha retirar uma tira de papel sob um copo cheio. Já o
Almanach Elixir de Inhame de 1926 (p.07) apresentava o problema intitulado
"Os nove pontos" envolvendo conceitos de matemática e
geometria. A seção "Curiosidades Matemáticas"
do Almanaque Nestlé de 1941 (p.06) além de desafiar os leitores
a resolveram problemas matemáticos, indicava operações
que produziam resultados notáveis.
A maioria dos almanaques trazia também assuntos ligados à
geografia ou história, destacando curiosidades, datas comemorativas
com conteúdo cívico e personagens históricos, como
é o caso do Almanaque Nestlé de 1941, que ilustrou os meses
do ano com monumentos ligados a personagens da história do Brasil,
como Tiradentes ou o Marechal Deodoro. Para Vera Casa Nova (1996, p.133)
a presença desses personagens históricos nos almanaques
ligava-se à influência positivista:
Por isso também é tão comum encontrarmos nas páginas
dos almanaques as figuras de Deodoro, Floriano, Caxias, Bilac, sendo exaltadas
por seu patriotismo e por serem modelos exemplares. A reforma da sociedade
e da conduta dos indivíduos era a base da doutrina positivista.
O mesmo exemplar do Almanaque Nestlé (1941, p.29),
trazia como símbolo do mês de outubro um monumento à
criança, com os dizeres “Outubro é o mês das
comemorações da criança. Govêrno e povo sabem
que, na criança protegida, repousa o destino da nação
brasileira”. A escolha de outubro como um mês dedicado às
crianças, e em especial, o dia 12 como o seu dia, foi decisão
do 3º Congresso Americano da Criança, em 1922 e um dos reflexos
do pan-americanismo, que associou a data da chegada de Colombo à
América ao dia da criança. (KUHLMANN JR., 2001).
Havia ainda outro tipo de atividades propostas nos almanaques, que podem
ser relacionadas à educação pré-escolar, como
no Almanaque Bayer, que apresentava a página das crianças
(1932, p.12). Essa seção mantinha o padrão de desafios
geométricos e de ilusão de ótica, usados nos passatempos
destinados a todos os leitores, mas introduzia atividades para as crianças
menores, como as instruções para se desenhar um gato utilizando
botões. Não foi possível acompanhar a permanência
desse tipo de atividade no almanaque em questão, pois não
houve acesso a outros exemplares, com exceção da edição
de 1950. Entretanto, nessa edição, embora não houvesse
mais uma seção específica para as crianças,
há uma página dedicada aos "recitativos infantis"
(Almanaque Bayer, 1950, p.12), o que indica ainda uma atenção
à infância.
Em 1931, o Almanak Xarope S. João reproduzia a atividade de sombras
feitas com as mãos, denominada “sombrinhas chinezas”
pelos editores (p.27). A edição de 1938 do Almanach d' A
Saúde da Mulher (p.27) também propunha a mesma brincadeira.
Esse tipo de atividade, na qual, através de gestos com as mãos,
projetavam-se sombras na parede, num ambiente com pouca luz, havia sido
sugerida por Froebel no século XIX:
Pensando na educação que as mães deviam oferecer
aos seus filhos, Froebel escreveu, em 1844, o livro denominado Muther-spied
und kose-lieder - Jogos para a mãe e canções carinhosas
-, em que o autor conversa com elas por meio de poemas sobre: os sentimentos
da mãe contemplando a criança, as brincadeiras da mãe
com seu filho, a necessidade da mãe observar o desenvolvimento
da criança, a necessidade de conversar e cantar para ela. Na segunda
parte, existem poesias, jogos de linguagem, gravuras e indicações
de como fazer sombras na parede, para serem desenvolvidos com as crianças,
servindo como motes para as conversações (KUHLMANN JR, 2001,
p.115).
A norte-americana Vinhetas Vick, de 1938, trazia, na página
6, a seção O que as crianças gostam de fazer, com
orientações sobre "brinquedos de fácil construcção".
Outra edição, sem data, ensinava às mães como
organizar uma caixa com materiais destinados a entreter as crianças,
a "caixa dos brinquedos", que deveria conter caixas de papelão,
latas, sacos de papel, botões, envelopes, jornais e revistas, além
de papel em branco e "crayons". A idéia de se utilizar
o jogo e a experimentação como forma de aprendizado aparece
nessas atividades, que estimulavam o uso de materiais diversificados.
Outras atividades que dialogavam especificamente com as crianças
podem ser exemplificadas através das instruções que
solicitavam ajuda para uma ave apanhar a borboleta e chegar ao ninho,
sem cruzar nenhuma linha do labirinto (Almanach d' A Saude da Mulher,
1937, p.11). Também no Almanaque do Biotonico de 1934 (p.05) havia
um texto que convidava a criança a colorir os espaços numerados
do desenho para descobrir "De que foge o ratinho".
Ainda em relação às atividades para as crianças
envolvendo brincadeiras destaca-se o Almanaque Nestlé. As edições
de 1940 e 1941 continham problemas lógicos, matemáticos
e geométricos e seções de curiosidades sobre física
e história. Traziam também em suas páginas centrais
ou na contracapa um jogo que promovia os produtos da empresa. As regras
dos jogos não mencionavam especificamente as crianças, mas
as temáticas eram direcionadas a elas.
As regras desses jogos exigiam que os participantes montassem um dado
de papel, conforme o modelo sugerido no almanaque, além de recortarem
as peças que indicariam a posição de cada jogador
no tabuleiro. Em 1940, as páginas centrais do almanaque eram ocupadas
pelo tabuleiro do jogo, que no ano seguinte, em tamanho menor, era apresentado
na contracapa do almanaque. Em 1940, a criança iniciaria o jogo
saindo de casa, passaria pelo campo e pela fábrica da Nestlé,
até chegar à escola, que embora não fosse identificada
como tal, tinha a mesa posta para a merenda, ao lado da bandeira hasteada.
A distribuição da "Merenda Nestlé" doada
às escolas públicas, creches e outras entidades sociais
era uma das estratégias de propaganda da empresa. A merenda continha
uma lata em miniatura do Leite Moça, um pãozinho e um exemplar
do Almanaque Nestlé.
As imagens do jogo da edição de 1941 destacavam animais
africanos e asiáticos, montados por bebês que traziam referências
dos países daqueles continentes, embora não houvesse nenhuma
criança negra. Parecem ter como objetivo valorizar o consumo dos
produtos Nestlé durante a primeira infância, uma vez que
os bebês carregavam mamadeiras e diversos tipos de leite em pó
produzidos pela empresa.
Em 1953, a edição do mesmo almanaque também trazia
um jogo, em suas páginas centrais, fato que pode indicar que a
Nestlé valorizou essa atividade, reservando-lhe espaço em
seus almanaques por mais de uma década. A própria empresa
reconhecia a importância dessa atividade, quando afirmava que "Deante
do sucesso que obteve o jôgo NESTLÉ, publicado há
alguns anos, e dos pedidos que temos recebido, resolvemos publicá-lo
no presente almanaque (Almanaque Nestlé, 1940, pp. 18 e 19)".
Tratava-se em primeiro lugar de estratégia de propaganda dos produtos
da empresa, como forma de memorização da marca e do uso
incorporado ao cotidiano, como na merenda escolar. Valorizar esse tipo
de atividade, entretanto, pode indicar um reflexo da aceitação
do jogo como atividade necessária ao desenvolvimento das crianças.
A implantação de jardins de infância no Brasil, a
partir do final do século XIX, ajudou a difundir a visão
de Froebel acerca dos jogos infantis. O autor concebia o jogo como "a
forma mais pura da atividade intelectual da criança" (BASTOS,
2001a, p. 08). Para o idealizador do jardim de infância, o jogo
motivava e auxiliava o desenvolvimento das crianças, embora sua
definição dos jogos infantis fosse mais complexa:
Os jogos mesmos podem ser: corporais, já exercitando
as forças, já como expressão da energia vital, do
prazer da vida; dos sentidos, exercitando o ouvido, como o jogo de esconder-se;
ou a visão como o tiro ao prato; jogos do espírito, da imitação
e do juízo, como o xadrez ou as damas, etc.; jogos muitas vezes
considerados, se bem que raras vezes têm sido dirigidos ao verdadeiro
fim, até o espírito e necessidades infantis (FROEBEL, 2001,
p.206).
Segundo Bastos, para Froebel há três níveis
de desenvolvimento do homem: "o primeiro - bebê - quando o
interior se manifesta pelo movimento; o segundo - criança - quando
o interior se manifesta pela palavra e pelo jogo; por último, o
terceiro - jovem - quando a escola e a aquisição de conhecimentos
exercem um papel primordial (BASTOS, 2001a, p.8)."
Apesar de apresentarem um conteúdo fragmentado, o que se pode perceber
como ponto em comum nas atividades citadas é o seu caráter
lúdico, valorizando problemas lógicos e experiências
possíveis de realizar no âmbito doméstico. São
indícios que remetem às discussões pedagógicas
propostas por autores como Pestalozzi, Buisson e Froebel, e que repercutiam
no Brasil, desde o final do século XIX. De acordo com Kuhlmann
Jr. (2001, p.200):
Os novos métodos ancoravam-se nas idéias de Pestalozzi,
formuladas no início do século XIX, e que entendiam que
como fundamento absoluto de todo conhecimento, os indivíduos seriam
dotados de uma força de intuição sensível
(Anschauung) e de uma consciência sólida dos objetos em seu
entorno. A aprendizagem ocorreria pela educação dos sentidos...
Idéias que não ficaram restritas aos especialistas,
mas ganharam espaço na impressa, nos discursos e eventos oficiais,
como as exposições promovidas tanto no Brasil, como as internacionais.
Em 1879, o Jornal do Commercio afirmava, referindo-se ao tipo de ensino
adotado nos colégios Menezes Vieira e Aquino,
o que antes de tudo prende a atenção é o método
do ensino intuitivo, que prova que ambos os diretores acompanham o progresso
moderno das escolas elementares da França, Alemanha e dos Estados
Unidos, no Internato Menezes Viera sob o nome de Jardim-da-Infância,
no Colégio Aquino sob a designação francesa - lição
das coisas (leçons de choses) (apud BASTOS , 2001b, p. 42).
Princípios que se encontram também popularizados nos versos
de Bastos Tigre, presentes no livro de recordações para
os pais de recém-nascidos, "Meu Bebê, Livro das Mamães":
O PRIMEIRO COLÉGIO
A escola - jardim da infância...
Nêle prolonga-se o lar.
Que suavíssima fragância,
De flores mil, a exalar![...]
Em vez de livros - brinquedos
Tesoura, papel de côr,
E a massa que treina os dedos
Na arte excelsa do escultor.
De Froebel e Montessori
Á luz da egrégia lição,
Que, ativa, a criança aprimore
O tato, a vista, a intuição.[...]
Virá a seguir a cartilha
O "abc", o "dois mais dois"
Toda a solar maravilha
Do estudo, virá depois.[...]
(TIGRE e ACQUARONE, 1940).
Os almanaques foram também instrumentos de popularização
dessas idéias que se voltavam para educação das crianças
menores, concretizadas, em especial, nos jardins de infância. Embora
vinculadas à puericultura e eugenia, pode-se também encontrar
menções sobre as creches nos almanaques. A propaganda do
Almanaque Nestlé de 1940, considerava que o "emprêgo
dos produtos Nestlé nos lactários, créches e hospitais
é um atestado da preferência que lhes dispensa a classe médica
brasileira..." (p.5). No artigo intitulado "O crime dos paes"
que promovia a "Salsaparrilha do Dr. Ayer", na edição
de 1934 do Almanak Cabeça do Leão, há uma referência
a ação governamental em relação ao emprego
de creches como um dos elementos da "regeneração da
raça":
Crear uma geração futura, forte e sadia,
preparando mais altos destinos para a patria, é hoje preoccupação
de todos os povos cultos.
Para esse fim o Estado interessa-se com a natalidade, prestando assistencia
ás mães, creando "créches", solarios, campos
de gymnastica, etc., protege os desportos de todo o genero, em summa,
tudo faz para que a geração por vir seja dotada physicamente
de condições perfeitas de saude, vigor e efficiencia (p.10).
Esses exemplos demonstram que os almanaques refletiram
o processo internacional de difusão de instituições
educacionais, a partir do final do século XIX e início do
século XX. No caso brasileiro, destacam-se as publicações
e congressos que trataram da educação e assistência
a infância no contexto da Exposição Internacional
Comemorativa do Centenário da Independência, em 1922 (KUHLMANN
JR.,2004).
Mas, podemos também identificar nos almanaques indícios
do processo de "racionalização" científica
que tende, a partir da década de 1920, a substituir a "educação
dos sentidos", conforme constata Kuhlmann Jr., em seu estudo sobre
as exposições internacionais entre 1862 e 1922 (2001, p.222):
A "pedagogia do progresso" superava a inspiração
"filosófica" anterior para se tornar "científica",
apoiada pela Antropologia, a Sociologia, a Psicologia, a Higiene e a Educação
em Saúde. Deixava-se de falar em enobrecer os humildes. Constata-se
ainda uma mudança de ênfase, da educação estética
à educação física. Depois de Pestalozzi e
Froebel, citava-se Herbert Spencer, evolucionista, inspirado no darwinismo.
O papel de explicar a realidade atribuído à
ciência aparece na capa do folheto farmacêutico que promovia
as pastilhas do Doutor Richards (1928) , que apresentava "O Estomago
de Crystal - A Maravilhosa Invenção Que Explica Muitas Cousas".
A "invenção" consistia na reprodução
artificial do funcionamento do estômago humano, através de
um mecanismo transparente, que teria sido construído no laboratório
norte-americano Dr. Richards Dyspesia Tablet Association. Segundo o folheto,
a invenção "permitte á sciencia medica ver e
comprehender exactamente o que causa a maioria das molestias do estomago".
Em 1926, o Almanach Elixir de Inhame fazia a propaganda do Elixir de Inhame
Goulart para a cura da asma entre os portadores de sífilis destacando
as "opiniões de scientistas consumados" em favor do medicamento.
O título do anúncio, Nota Scientifica, é emblemático
da apropriação e vulgarização do conceito
de ciência nos almanaques. Percebe-se nesses exemplos uma união
entre as idéias de ciência, progresso e indústria,
que permitiriam o acesso ao conhecimento e à cura das doenças.
Para Vera Casa Nova (1996, pp.138,139),
o progresso era o outro nome do espírito científico, de
que o almanaque recebe também alguns respingos. Uma mentalidade
científica generalizadora faz aparecer aí a importância
do desenvolvimento científico. (...) Por outro lado, no almanaque,
forja-se uma idéia de ciência, do papel que ela tem e deve
desempenhar na marcha da sociedade industrial.
A representação do "poder" da
ciência, que repercutiu por várias gerações
de leitores dos almanaques, encontra-se no folheto Jéca Tatuzinho,
escrito por Monteiro Lobato, promovendo o Biotonico Fontoura e o Ankilostomina,
fortificante e remédio contra o amarelão, respectivamente.
Na história contada no folheto, para convencer o caboclo a usar
o calçado e medicar-se, o médico mostra, através
da lupa, os vermes que penetravam o pé descalço. O resultado
da experiência está reproduzido na fala do Jéca, que
sinaliza o início da mudança que o transformou, no final
da história, em um fazendeiro rico, o coronel Jéca: "Nunca
mais! Deus me livre! D'aqui p'ra diante dona Sciência está
dizendo, Jéca está jurando em cima! T'esconjuro!..."
(1925, p.16).
Segundo Park (2003, p.64), "o saber científico, redentor de
uma realidade dada como "ignorante", aparece na figura daquele
que dele é investido, o médico, um estudioso, inteligente,
que escreveu diversos livros". As edições do folheto
Jéca Tatuzinho, patrocinadas pelo Instituto Medicamenta Fontoura
S.A., repetiram-se por décadas, sendo que em 1957, segundo informações
da capa, somavam 25 milhões de exemplares.
No caso dos almanaques, a "autoridade" dada pela ciência
servia para a divulgação dos medicamentos e produtos oferecidos
pela indústria farmacêutica ou de alimentos. Mas, indiretamente,
cumpriram um papel de reforçar uma representação
do progresso ligado ao desenvolvimento científico e à vida
urbana.
As atividades que "educavam pelos sentidos" conviveram nos almanaques
com seções que passaram a incorporar o discurso científico,
ao menos nos títulos, como se pode observar comparando-se duas
edições do Almanaque do Biotonico. As experiências
com copos, garrafas e outros materiais, que demonstravam conceitos de
física, aparecem em 1934 na seção "Para passar
o tempo". Em 1937, atividades parecidas receberam o título
de "Sciencia recreativa".
Podemos perceber, através das diversas atividades destacadas, que
os almanaques acompanharam e reproduziram, de forma simplista, idéias
pedagógicas que circularam no Brasil entre as décadas estudadas.
Mais do que substituir ou atualizar, o que parece ser uma tendência
dessas atividades é a incorporação de diferentes
abordagens, mantendo-se o que era aceito pelos leitores, transformando
a linguagem, ou adaptando conceitos.
Considerações Finais.
Quando ele chega a uma cidade qualquer do interior, atravessa
com seu passo firme a pequena praça diante da igreja, tôdas
as portas se abrem para recebê-lo. As crianças correm ao
seu encontro, alvoroçadas e felizes, para ver as “mágicas”
que êle sabe fazer e divertir-se com os curiosos passatempos de
que é farto o seu repertório. As mulheres tratam de consultá-lo
sôbre uma infinidade de assuntos domésticos que, para tudo,
tem êle sempre pronta uma resposta adequada.
Os homens preferem ouvir-lhe as anedotas que - verdade seja dita - são
do mais puro estilo familiar. [...]
Observador atento da marcha das civilizações, assistiu aos
maiores acontecimentos da história e chegou até os nossos
dias senhor de tôda a sabedoria que os maiores cérebros da
humanidade acumularam. Nada disso, porém, o enche de orgulho e
êle... o Almanaque, remoçando-se a cada ano que passa, continua
a percorrer cidades, vilas e povoados, distribuindo os seus conhecimentos
com a prodigalidade de um milionário que sentisse prazer em dividir
com o povo as melhores jóias do seu tesouro (Almanaque Nestlé,
1953, editorial).
Em uma sociedade na qual a informação torna-se
cada vez mais acessível e rápida, via rede mundial de computadores,
como explicar a permanência dos almanaques de farmácia?
Para compreender o espaço ainda ocupado por esse tipo de impresso
e sua contribuição para a história - não só
da infância brasileira – pode-se tomar como referência
o texto de Eça de Queiróz. Segundo o autor, o almanaque
contém "verdades iniciais que a humanidade necessita saber,
e constantemente rememorar, para que a sua existência, entre uma
natureza que a não favorece e a não ensina, se mantenha,
se regularize, e se perpetue (1996, p.1631)". Verdades inseridas
em amplo processo que vinculou a consolidação dos critérios
de modernidade e progresso ao aval científico e à disciplina
composta por regras de higiene, conduta social e preceitos morais que
passaram a definir o sentido de "civilização"
a partir da segunda metade do século XIX.
Ideário que permanece nas edições dos almanaques
de farmácia atuais, como é o caso do Almanaque Renascim
Sadol, que na edição de 2004 apresentava as tradicionais
seções com soluções para os problemas domésticos,
orientações sobre agricultura e jardinagem, além
do horóscopo e do calendário. Nesse almanaque, os conselhos
ligados à saúde continuam presentes na propaganda dos medicamentos:
“mastigue bem os alimentos..., mantenha-se hidratado..., a calma
faz bem à saúde”.
Para Norbert Elias (1994, pp.112,113),
Cortesia, civilidade e civilização assinalam três
estágios de desenvolvimento social. Indicam qual sociedade fala
e é interpelada. [...] O conceito de civilização
indica com clareza, em seu uso no século XIX que o processo de
civilização - ou, em termos mais rigorosos, uma fase desse
processo - fora completado e esquecido. As pessoas querem apenas que esse
processo se realize em outras nações, e também, durante
um período, nas classes mais baixas de sua própria sociedade.
Os Almanaques de Farmácia repercutiram esse processo,
compondo com um conjunto de materiais afins, como os livros de orações,
os manuais de etiqueta, as cartilhas de higiene, guias e manuais médicos
gerais e específicos, como os de puericultura e saúde mental.
Embora estejam incluídos como parte desse "processo civilizatório"
(ELIAS, 1994), ao longo do texto os aspectos ligados a infância
foram destacados. Cuidar e educar foram conceitos explorados nos almanaques
estudados que, extrapolando a discussão relativa à infância,
receberam tratamento diferenciado, de acordo com os protagonistas e interlocutores
dos discursos. Tônicas distintas puderam ser percebidas em momentos
diferentes em relação aos dois termos, mas que desde a década
de 1920 compuseram o debate acerca da inclusão do país no
rol das nações modernas.
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Dr. Ayer). Rio de Janeiro: The Ayer Company of Brasil, 1934, 1935.
Almanaque Catedral. São Paulo: Laboratórios Catedral, 1967.
Almanach do Elixir de Inhame. Rio de Janeiro: J. Goulart Machado &
Cia. Ltda., 1926.
Almanaque Guaraína. Rio de Janeiro: Laboratórios Raul Leite
S.A., 1940.
Almanaque do Licor de Cacau Xavier. São Paulo: Xavier e Irmãos,
1949.
Almanaque Nestlé. Rio de Janeiro: Cia. Nestlé, 1940, 1941,
1953.
Almanaque Renascim Sadol. Joinville-SC: Laboratório Catarinense
S.A., 2004.
Almanach d’A Saúde da Mulher. Rio de Janeiro: Daudt, Oliveira
& Cia. Ltda., 1932, 1937, 1938.
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Alvim & Freitas, 1930, 1931, 1932.
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