Milena Magalhães
A partir de alguns textos de Jacques Derrida sobre a hospitalidade
e a amizade, esta comunicação desenvolve uma reflexão
sobre o ato da leitura. O acolhimento de algo é basicamente restrito
pelas leis da hospitalidade. Se de um lado verificamos a aceitação
ao estranho (no caso, o texto), de outro não esquecemos a sua estranheza.
Nesse movimento, estamos sempre construindo novos textos, acrescentando
a ele um ponto de singularidade, se singular ainda somos. Se há
ausência de significado único, há também divergências,
remissões, repetições, destinadas a modificar o sentido,
num jogo indefinido de situações.
Ora ele não guardou intacto um só fragmento
de meu corpus e se o seccionou ou dele retirou alguns pedaços foi
justamente para não guardá-los, para deixá-los cair
como peles inúteis à inteligência de meus textos,
para apagá-los em suma, depois de ter selecionado, decidido esquecer,
incinerar a frio, levando consigo, assim como minha mãe cala meu
nome, a unicidade de cada uma, literalmente, de minhas frases senão
de cada uma de minhas palavras pois ele guarda palavras, justamente, palavras
francesas, decupa e circunscreve as palavras e mesmo os conceitos ...
Jacques Derrida
Fala. Aviso. Pedido de desculpa. O certo é que
não ocupo o lugar de pesquisadora das áreas que envolvem
a questão da leitura. Sou tão-somente uma leitora, envolvida
não com o “ter que dizer” sobre a leitura, o ato mesmo
de ler, mas com o “ter que dizer” sobre aquilo que leio. Se
digo agora sobre a leitura, é apenas levada pelo impulso e por
uma série de questionamentos sobre o nosso lugar na Universidade.
Antes, contextualizar. Meu título A leitura ainda pertence a nós?
E o que dizer dela..., com as reticências mesmo, para deixar claro
o vazio que se instala nesta pergunta e que perdurará mesmo depois
de uma incerta resposta, derivou-se do chamamento feito pela leitura do
texto dos coordenadores do seminário Leitura e Produção
no ensino superior, presente neste congresso: Da interdição
à autorização da escrita; mais especificamente um
parágrafo perfurou meu estado de leitura. O que se segue: “...concluímos
que refletir sobre a leitura e produção no ensino superior
passa pela necessidade de tematizar o advento de uma passagem que vem
se tornando cada vez mais rara: o momento em que um sujeito abandona sua
dificuldade para escrever palavras que lhe sejam próprias e se
autoriza a iniciar e a sustentar uma produção.” Perfurar:
fazer furos em, penetrar, furar, define o Aurélio. Perfurar meu
estado de leitura significa aqui me ter feito mudar de rumo, rota, lugar.
O trabalho com o qual eu imaginava me inscrever neste seminário,
algo como A leitura segundo Umberto Eco, feria mortalmente os ideais deste
seminário. “A leitura segundo alguém” é
uma posição – imposição – cristã,
bíblica; servil, subserviente, pois. É por aí então
que começo – já tendo começado. Advirto que
os objetivos do resumo – objetivos estes feitos no momento mesmo
da dor da perfuração – possam não ser alcançados.
O “a partir de alguns estudos de Jacques Derrida” é
aqui mero apêndice, necessidade ainda de ancoragem. Não pretendo
dizer o que é leitura para Derrida nem fazer nenhuma relação
que ele já tenha feito entre leitura e hospitalidade. Aventuro-me,
antes, pela viagem perigosa de relacionar algumas palavras que parecem
fazer sentido juntas: amizade, hospitalidade, acolhimento, tendo no seu
fundo a leitura deste filósofo. Na verdade, um começo de
homenagem, não como sepultamento da sua importância sobre
mim, mas como lembrança. Homenagear um morto é sempre matá-lo
uma segunda vez, mas lembrar de um vivo, do que está vivo em mim,
é trazê-lo para próximo. Viagem perigosa e inesgotável;
logo, incompleta.
E não vou falar de qualquer leitura, mas da minha, da que faço
com essas palavras e com outras. Pensemos então, inicialmente,
no vocábulo eleição, pois elegi algumas palavras,
e não outras. E mais uma vez, o dicionário: Eleger: preferir
entre dois ou mais; escolher, mudar de... Se há um primeiro ato
que disponha uma leitura, este é o da eleição. Entre
um texto e outro, preferimos um ou outro, escolhemos um e outro, um ou
outro. Mas eleger é também ser eleito, escolher é
ser escolhido. Não há via única. E eleger, escolher,
preferir deriva sempre do percurso que fazemos, dos humores, das tensões
que constituem nosso caminho. Para ler, é preciso escolher. Abrir
o livro, condição primeira. Ou abrir o link, se se preferir.
Quebra da condição. Daí a eleição ser
também mudança, possibilidade de mudança. Se há
uma razão para ler – e é preciso que haja –
deveria ser a de acolher o estado de mudança que uma leitura pode
vir a proporcionar. Pode vir, mas não necessariamente virá.
Daí por que o vocábulo “recepção”
não dá conta de dizer o que seja leitura, porque ler não
é apenas receber – atitude passiva.
A recusa em acolher uma leitura muitas vezes advém da dificuldade
de se entendê-la, quando na verdade deveríamos pensar que
é justamente porque não entendemos que ainda continuamos
a ler. Não há uma hospitalidade incondicional – embora
deva ser esta a ética desejada – porque há esse desencontro
entre o que diz a lei e o que diz a ética. Há a “lei
do texto” e há nós – sujeitos em constante suspensão
de entendimento. Para não haver essa distinção, precisa
haver uma junção entre o texto e o leitor, mas a relação
entre texto e leitor é sempre conflituosa, ou deveria ser. Porque
há um nós e há o outro, embora este não esteja
presentificado ou se presentifique apenas na leitura – ser fantasmático,
mas que nos obriga a escolher, a acolher. Ora, é sempre o outro
que nos dá o escrito para que se constitua essa relação
de amizade, que deve ser a do texto e do leitor. Não há
e não poderá haver acolhimento se não nos despregarmos
um pouco de nós. O senão é por que geralmente se
espera da leitura um apaziguamento das dúvidas, dos tremores, dos
temores. É o fantasma do sentido que teima em reviver de várias
formas possíveis. A obrigação do sentido, a necessidade
de controle da situação, embota as possibilidades geradas
pela suspensão dos sentidos. Os efeitos de imprevisibilidade do
novo anulam-se. Ler é, antes, um desafio, um desprogramar-se das
expectativas, mas quem se lembra? Por isso, o “lugar teórico”,
ao deixar de ser lugar de acolhimento, produz tantas distorções
nas leituras. Por causa do esquecimento da condição humana
viramos robôs programados a aceitar apenas aquilo que está
no programa, neutralizando qualquer diferença que embaralhe, suspenda
ou mesmo altere o programado. Não é raro na Universidade
ouvirmos frases do tipo: “Não leio este autor porque não
faz parte do meu universo teórico”. Frase estranha que revela,
em vez de fidelidade, uma alienação ao diferente, por vezes
oposto, como se não fosse na diferença que a palavra se
constitui. Conformar-se com o conhecido, por meio de um cegamento a outros
textos, a outras leituras que não as que estão dispostas
no seu círculo programático é sempre o risco que
deveríamos evitar a qualquer preço. Entretanto, é
o risco mais tolerado por todos; por isso geralmente se produz hoje tão-somente
um armazenamento de informações com o objetivo de apenas
corroborar o que, antes, já se presumia saber. Armazenam-se, ordenam-se
informações, nunca perplexidades. Essa ordem perversa funciona
mais ou assim, é como se: “Minha tese é tal, vou ler
tal livro apenas para comprovar minha tese tal”. Assim, é
pela ordem do “tal” que mantemos a idéia de centralidade,
não nos permitindo jamais ir até às margens. Projeta-se
sua palavra sobre a palavra do outro; não raro à força
de uma imposição. Dentre outras implicações,
é essa posição diante da leitura que produz as macaquices
do discurso acadêmico; na maioria das vezes apenas paráfrases
mal feitas do que já foi melhor dito. É a lógica
inócua da dissertação. Dissertar é tão-somente
hoje dizer sobre “tal”, segundo alguém. É a
imposição cristã, em uma época em que a morte
de Deus já foi tantas vezes e por diversas formas anunciada.
Um outro ponto – ou o desdobramento do mesmo ponto – é
o de que se você se dispõe a hospedar – algo ou alguém
– é porque você se põe como dono de um lugar;
não se oferece hospedagem em um lugar vazio, lugar alheio. Portanto,
o ato da leitura pressupõe que se tenha um lugar – alguns
dirão: um lugar teórico. Eu digo: um lugar de acolhimento,
de plenitude da alteridade – uma plenitude sempre vacilante, movente,
disposta ao deslocamento, porque hospedar é ir além do ideal
de propriedade, pois se há o pressuposto da propriedade, há
ainda, e sobretudo, o da expropriação. Hospedar, ler, é
desapropriar-se tendo em vista o dar lugar ao outro, pois a casa é
um lugar provisório, é a própria passagem para a
experiência do outro. Narciso vacila, estremece. E no mesmo novelo,
mas alterando-o, eu digo também: a hospitalidade precede a propriedade
– frase-chave derridiana. A decisão de hospedar, de ler,
começa tão-somente com um sim – o sim do outro que
é, na maioria das vezes, constituído por uma diferença,
uma distância infinita, desejosas do porvir, pois esse porvir é
a própria quebra dos limites, da suspensão dos contornos
entre um e outro. Seria o mesmo do que disse a frase que me perfurou?
A frase cortada ao meio, esta: “Cada vez mais raro ... o momento
em que um sujeito abandona sua dificuldade para escrever palavras que
lhe sejam próprias e se autoriza a iniciar e a sustentar uma produção”.
Seria, mas com o acréscimo de que “palavras próprias”
possuem sobre elas a angústia da impossibilidade da palavra originária.
A nossa origem adâmica é apenas uma ficção.
Ler é, inclusive, constatar isto: o já dito, reiterado,
repetido. É a leitura do outro que impulsiona o dizer. Condição
eterna e intransponível. A leitura produz a vontade de nos lançar
em busca de “palavras próprias” – e ela sempre
deveria proporcionar essa vontade – quando rompe com a nossa vontade
de fincar-se num mesmo lugar. Seria necessário, antes, experimentar
a vertigem do porvir desconhecido, porque a leitura contém sempre
uma reserva de linguagem a que devemos estar atentos. Não se fixar
deveria ser sempre a condição da pós-leitura. Não
se fixar é, como já disse Roland Barthes, ab-jurar o antes
dito. Não se deixar cristalizar é o modo próprio
do acolhimento. Mas quando a leitura produz essa necessidade de deslocamento?
Em que momento ela nos impulsiona ao fora de nós?
Para as perguntas, uma possibilidade de resposta: a experiência
da leitura é a experiência de abertura ao outro, a nossa
experiência sobre o que diz o outro. É um através
– a travessia; iniciar e ir adiante. Ler é iniciar conclusões
provisórias que implicam numa responsabilidade do corpo que se
põe em estado de recebimento para acolher o corpo do outro, a imprevisibilidade
do corpo textual. Se é acolhimento, não se pode ignorar
também o estranhamento, a repulsa e mesmo a negação.
Daí que a leitura é um acontecimento na busca de escapar
às estratégias da lei. Seja a partir do exemplo, ou por
contra-exemplo, ler poderia significar simplesmente “escrever”.
Escrita não somente relacionada ao suporte gráfico, mas
também no sentido de inscrever seu deslocamento na experiência
de leitura. Deveriam ser uma só e mesma coisa, realçando
o estado de produção que nos colocamos no momento da leitura.
Essa distinção – ler e escrever – é estéril,
esvaziadora da dinâmica de troca que se estabelece no ato de ler.
A leitura deveria ser da ordem do afeto, porque é pela afetividade
que nos permitimos a troca, o descongelamento das imagens, a suspensão
dos conceitos. A descontinuidade não é um ritmo fácil
de ser aceito, menos ainda é um elogio à inconsistência.
É, sobretudo, um modo de sustentar a promessa de abertura ao outro,
pois se no texto há um significado a ser perseguido, é justamente
para que no momento do encontro esse mesmo significado seja tantas vezes
desdobrado até deixar de existir como significado único,
literal, homogêneo. A figura do uno comporta sempre a imagem do
duplo. Por isso a leitura é um ato de violência, mas a miragem
é sempre o próprio texto. Esquecer isso é macaquear
idéias, confiar no seu eu absoluto. Um erro, enfim. Não.
Não há um pertencimento quando se pensa em leitura. E, sim,
há um pertencimento porque há escolha. Podemos escolher
– e ser escolhidos – o que lemos e o que fazemos com aquilo
que lemos. Principalmente por isso a leitura é uma tarefa da ordem
da amizade.
Se utilizei tantas vezes o modo afirmativo – “a leitura é...”,
“a leitura poderia ser...” – foi no sentido de uma máscara,
uma vez que desdobrei várias vezes as afirmações.
Conclusão: não há uma única afirmação
para o que seja leitura, não há uma frase, uma gramática,
uma linha teórica que dê conta disso que é da ordem
do gesto. Ler – ação.