Andréa Mamontow (PG – UFMS- Universidade
Federal do Mato Grosso do Sul )
Este trabalho objetiva relatar experiência a partir
da análise da memória biográfica como instrumento
de estudo e pesquisa historiográfica e de ensino. A leitura de
Mina vida de menina, de Helena Morley foi o passo inicial para estudo
e debate em sala de aula que permitiram o entendimento daquele contexto
sócio-histórico, além de servir como incentivo à
prática da escrita de diário.
Essa experiência foi possível através do projeto interdisciplinar
Lendo e Escrevendo, elaborado por esta professora, e que pretende conduzir
o estudo de Literatura e História por meio da leitura, e também
uma análise comparativista sobre a linguagem. Para tanto, primeiramente,
pretende-se tornar o aluno um assíduo leitor para, posteriormente,
discutir temas abordados no texto e como resultado, ser, o aluno, o autor
do próprio texto.
Como podemos observar, trata-se de um projeto complexo e extenso; foi
realizado pela primeira vez numa escola particular da cidade de Três
Lagoas, Mato Grosso do Sul, com alunos a partir da 6ª série
do ensino fundamental até a 3ª série do ensino médio,
atendendo a jovens com faixa etária de 12 a 20 anos. O grupo era
composto de 34 alunos e teve duração de um ano letivo (2004).
O diário de Helena Morley constitui amplo material para pesquisa
e estudos, além de ter uma linguagem simples e de fácil
entendimento. Foi escrito entre 1893-1895, quando a protagonista tinha
13-15 anos; era uma menina comum, quase feia, divertida e apaixonante,
como tantas jovens da mesma idade. Suas páginas estão repletas
de fatos engraçados, tristes, emocionantes, comuns e outros tantos
insólitos. A primeira publicação data de 1944 e suas
páginas trazem anotações diárias sobre sua
vida familiar, especialmente a terna relação com a avó
materna e o carinho com o pai, as relações com colegas da
cidade, as festas familiares e as religiosas (muitas praticadas até
hoje), os passeios, a política (passagem para o Brasil República),
a escravidão e a libertação desses escravos sem nenhuma
condição de sobrevivência. Outra questão amplamente
descrita por Helena faz parte da relação com a escola e
as relações constituídas a partir da vivência
escolar.
Trata-se de uma obra muito especial e para apresentá-la aos alunos
organizou-se uma apresentação a altura da que o livro merece:
organizamos um portfólio com muitas fotografias dos locais citados
por Helena em seu diário, mapas da parte urbana e também
um filme feito por esta professora que foi sendo exibido durante intervalos
durante a leitura. Anunciamos aos alunos que se tratava de um diário
e que se preocupassem apenas com a leitura simples, sem nenhuma cobrança;
teriam que ler por ler, sem pensar em nada que não fosse somente
o ato de ler, que procurassem ter prazer somente com a leitura. À
medida em que os alunos iam fazendo a leitura – coletiva, em sala
de aula – íamos apresentando o portfólio e o filme.
Com o portfólio os alunos tomaram conhecimento de outras personalidades
ilustres de Diamantina, como Chica da Silva, Juscelino Kubitschek, Joaquim
Emérico Lobo de Mesquita, este, um dos maiores músicos sacros
da época, e também de um festival anual, a Vesperata. Com
esse material usado para o portfólio, resgatamos a memória
visual da cidade e de Helena.
Fazem parte do portfólio, também, fotografias e filmagens
feitas em Biribiri, antiga fábrica têxtil criada pelo Bispo
D. João Antônio dos Santos, em 1876, uma das primeiras do
Brasil a utilizar o sistema inglês de fabricação,
onde era auto-suficiente e abrigava seus trabalhadores. Há uma
memória só de Biribiri, há muito desativada e que
hoje, conservada e tombada pela Unesco, serve como atração
turística à comunidade e visitantes.
Diamantina é o grande celeiro de memórias que, pouco à
pouco vão se desnudando aos olhos do leitor por meio do diário
e memórias de Helena. Podemos destacar aqui, os aspectos sócio-históricos
e políticos relatados no diário, os quais os alunos pesquisaram,
realizaram atividades e debates, afim de explanar sobre o modo de viver
numa cidade fora dos grandes centros urbanos, mas que fora explorada até
o último veio de diamantes, para enriquecer outras terras.
A Diamantina que Helena apresentou aos alunos do Projeto é uma
cidade que atravessa um momento de difícil transição
política, econômica e social, e que esses jovens souberam
detalhar muito bem nas atividades que se seguiram. Eles próprios
denominaram que esses fatos constituem a própria memória
diamantinense que ainda mantém intacta a sua arquitetura para anunciar-nos
que ali existira uma cidade muito importante e rica.
Os alunos destacaram também uma memória religiosa, a qual
continua viva nas festas religiosas praticadas até os dias atuais.
Dentre outras memórias, destacaram também, a memória
do negro escravo, tema tratado com muita dignidade e merecida atenção.
Essas questões fazem parte (estudos interdisciplinares) da disciplina
de História e, tratados, orientados e coordenados pelos professores
responsáveis.
Todas essas atividades se estenderam por mais de um semestre pois não
se esgotavam, como não se esgotaram até hoje, pois sempre
somo surpreendidos por alunos que retomam a leitura e acham “memória
em tudo” – como eles mesmos definem.
Finalmente, o nosso objetivo principal foi cumprido: dos 34 alunos do
Projeto, 32 hoje são escritores de diário e ainda nos procuram
para contemplarmos seus cadernos repletos de aventuras, relacionamentos
amorosos, familiares, fatos políticos e, principalmente, suas memórias.
Referências bibliográficas
KENSKI, V.M. Memória e ensino. Caderno de Pesquisa,
nº 90 (jul.1994). São Paulo: Fundação Carlos
Chagas.
KLEIMAN, Â. Leitura: ensino pesquisa. Campinas, São Paulo:
1989.
__________. Oficina de leitura: teoria e prática. 5ª ed. Campinas,
São Paulo: Pontes, 1997.
MORLEY, H. Minha vida de menina. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.