Glícia Mendes Pereira - Universidade do
Estado do Rio de Janeiro - UERJ
Luciana Velloso da Silva Seixas - UERJ
Renata Marinho - UERJ
INTRODUZINDO...
Este trabalho, que tem sua origem na disciplina “Processos
de Formação de Leitores e Escritores” do curso de
Pedagogia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, objetiva analisar
questões em torno da formação de leitores, enfocando
a relação entre a trajetória de formação
de um grupo de professoras como leitoras, suas práticas pedagógicas
e os diversos significados de leitura entrelaçados no cotidiano
pessoal e profissional.
Assim, sob o olhar dos Estudos Culturais, caracterizados pela versatilidade
teórica e pelo espírito crítico e reflexivo, procuramos
nos aproximarmos dessas questões, percebendo as intersecções
entre as estruturas sociais, as formas simbólicas e as práticas
culturais.
Os estudos culturais configuram uma área onde diferentes disciplinas
interatuam, visando o estudo de aspectos culturais da sociedade numa multiplicidade
de objetos de investigação. Tendo por convicção
a impossibilidade de abstrair a análise da cultura das relações
de poder e das estratégias de mudança. O terreno de sua
investigação se circunscreve aos temas vinculados às
culturas populares e aos meios de comunicação de massa com
a formação das identidades e subjetividades. Tem também
buscado dar visibilidade à audiência, aos sujeitos engajados
na produção de sentidos e procura capturar a experiência,
a capacidade de ação dos mais diversos grupos sociais, à
luz das relações da identidade com o âmbito global,
nacional, local e individual (ESCOSTEGUY, 2001).
Buscamos, então, focalizar o contexto social, entendendo que as
especificidades articuladas a uma conjuntura histórica não
estão isoladas das realidades sociais e concretas dentro das quais
existem e a partir das quais se manifestam. Percebemos que a teoria dos
Estudos Culturais está imersa nas questões das diferenças
culturais e nos questionamos se nossas escolas estão organizadas
para lidar com a diversidade. Que influências são significativas
na formação como leitor/a para os alunos/as? Qual o papel
de mediadores na trajetória de formação? Existe um
modelo de leitor/a?
O grupo pesquisado é formado por três professoras, portanto
todas do sexo feminino, alunas do sexto período do curso de Pedagogia
da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. São professoras regentes de turmas das séries
iniciais do Ensino Fundamental . As professoras responderam por escrito
às questões propostas, construindo de forma livre um texto
sobre o assunto.
Procuramos fazer dialogar as respostas dadas com os teóricos estudados
no decorrer do curso e a teoria dos Estudos Culturais, acreditando que
interagir com outras leituras críticas que viabilizem perspectivas
deste mesmo contexto pode enriquecer as reflexões sobre o que é
ser um professor/a - leitor/leitora e sua relação com a
prática de ensinar/aprender.
CONVERSAS ENTRE PROFESSORAS...
Até os anos de 1950/1960 era prática corrente
a utilização de textos literários como pretexto para
exercícios gramaticais. No entanto, na “esteira do prestígio
da Lingüística, surgiram atividades mais condizentes com o
processo geral de modernização por que passava a sociedade
e a escola brasileira” (LAJOLO, 2000:70). Porém, o controle
sobre como deviam ler, o que ler e o valor atribuído à leitura
ainda é exercido, sobre os indivíduos de forma muito repressora.
É a idéia de leitura como uma “camisa-de-força”,
que é sinalizada por Ezequiel T. da Silva (1999). O autor nos diz
que:
De fato e infelizmente, às escolas foram impostas - através
de leis, decretos e portarias – muitas regras de “como proceder”
ao mesmo tempo em que diminuíram suas condições materiais
de funcionamento e as suas possibilidades de relacionamento com os reais
problemas da comunidade circundante. (p.36)
Assim o caráter artificial e dogmático que
envolve o ato de ler nas escolas brasileiras vem sendo alvo de intensas
discussões entre educadores e diferentes profissionais.
Pautando uma primeira análise percebemos que a professora Jandira,
ao mencionar que seus alunos receberam do Município uma coleção
com cinco livros de contos e poesias, não deixa claro quais critérios
nortearam a escolha desses livros e seu uso em sala de aula.
Apesar de sabermos que os livros chegam às escolas por intermédio
de programas direcionados para a leitura, estes não abrem espaços
para que as professoras participem da escolha desse material, assim como
deixam de ser consideradas as diferenças regionais ou municipais
de nosso país. “De repente, com o intuito de minimizar a
dívida social do Governo para com a leitura escolar, as escolas
brasileiras são “premiadas” com alguns caixotes de
livros vindos de não sei onde e não se sabe para que fim”
(EZEQUIEL THEODORO da SILVA, 1999, p. 20).
Aqui, cabem algumas questões: somente oferecer livros às
crianças é garantia de uma formação efetiva
de leitores? Como se forma um leitor? Existe um modelo de aluno/leitor
ou podemos falar em alunos/leitores? Pensamos que a maioria das escolas
não possui propostas que levem em conta as circunstâncias
reais de produção de leitura de seus alunos, muitas vezes,
identificados a partir de um modelo de aluno/leitor pronto para adquirir
um modelo de cultura. Sabemos que é comum a inexistência
de um espaço, em suas casas, para que os alunos das escolas públicas
possam se concentrar, ou tempo para se dedicarem à leitura, pois
as atribuições que estão sob sua responsabilidade
(trabalho, cuidado com os irmãos, etc.) são muitas.
Para compreender a formação do aluno/leitor vale refletir
sobre a produção cultural, de um modo geral e questões
a ela associadas. Uma das compreensões mais importantes da década
de 1970 é o reconhecimento de formas de poder associadas ao conhecimento.
Trata-se de um tema bastante geral e Johnson (2004) nos lembra que ele
aparece nos trabalhos de Pierre Bourdieu e de Michel Foucault, nas críticas
da ciência, na Filosofia, na Sociologia. “Quer tomem como
seu principal objeto os conhecimentos públicos mais abstratos e
suas lógicas e definições subjacentes, quer investiguem
o domínio privado da cultura, os Estudos Culturais estão
profundamente implicados em relações de poder” (p.51).
As discussões sobre produção cultural, no interior
desses estudos, estão muito vinculadas com as discussões
sobre os meios de comunicação de massas, desde as grandiosas
críticas da economia política e das análises da Escola
de Frankfurt até estudos sobre a produção de notícias
e documentários. Segundo Jonhson (2004), o que une esses diversos
trabalhos é que eles estão interessados em primeiro lugar
e acima de tudo na produção e na organização
social das formas culturais. “As condições de produção
incluem não apenas os meios materiais de produção
e a organização capitalista do trabalho, mas um estoque
de elementos culturais já existentes, extraídos do reservatório
da cultura vivida ou dos campos já publicados de discurso”
(p.56).
Entendemos assim, que os livros podem ser lidos e compreendidos a partir
dos efeitos indiretos surgidos das relações sociais capitalistas,
mas também de relações sociais de mediação
e recepção. Neste sentido, os Estudos Culturais questionam
o entendimento do caráter de um produto cultural e o uso social
das condições de sua produção como se em questões
culturais a produção determinasse tudo. Johnson (2004) não
nega que:
...as condições de origem exercem uma profunda
influência sobre a natureza do produto. Considero mais útil
questionar essas identificações não como erradas,
mas como prematuras. Elas podem ser verdadeiras na medida em que elas
estão de acordo com a lógica daquele momento, mas elas negligenciam
toda a gama de possibilidades das formas culturais, especialmente na medida
em que essas são realizadas no consuma ou na “leitura”...
(p58)
Com isso, acreditamos que os livros “gentilmente
cedidos” pelo Governo precisam ser analisados e problematizados
atentamente pelos docentes, pois o livro é sempre um material que
se apresenta com uma determinada visão de mundo e conceitos associados
ao tipo de leitor que se quer formar (MARINHO 2004). E, nesse processo
de análise dos conteúdos que o livro apresenta, se faz necessária
a participação ativa dos principais interessados: os alunos.
“Na leitura, o diálogo do aluno é com o texto. O professor,
mera testemunha desse diálogo, é também leitor, e
sua leitura é uma das leituras possíveis” (GERALDI,
2002). Quando professores e alunos concluem que um livro apresenta uma
série de situações ou representações
que não coadunam com as suas, este não precisa ser simplesmente
descartado. Ao contrário, ele pode se tornar uma fonte valiosa
de discussões em que deverá ser feito todo um trabalho de
desconstrução que explicite o que está por trás
dos discursos apresentados.
Ainda analisando a entrevista da professora Jandira, ela declara que procura
usar os livros recebidos e planejar várias atividades, dentre as
quais destaca a reunião dos alunos em grupos para escolherem, em
comum acordo, uma história que deverá ser contada à
turma:
Desenvolvo várias atividades com as crianças
aproveitando os livros. Uma das atividades que eles gostam muito é
a da divisão da turma em grupos, onde cada grupo escolhe, em comum
acordo, uma história de preferência. Eles lêem em casa
e na data marcada, contam a história para a turma, sem consultar
o livro. Na hora, um aluno ajuda o outro, para que nada seja esquecido.
A turma faz perguntas e todos se sentem motivados, principalmente quando
alguém resolve contar outras histórias lidas (professora
Jandira).
Imaginamos o quão difícil deverá
ser chegar a esse acordo para definir a história que o grupo contará.
Partindo do pressuposto de que as nossas leituras são escolhidas
com base em critérios muito pessoais, oriundos de nossos diversos
caminhos e trajetórias enquanto leitores, é de se esperar
que um dado texto vá agradar a uns e não a outros. “O
respeito pelos passos e pela caminhada do aluno enquanto leitor (que se
faz pelas suas leituras, como nos fazemos leitores por nossas leituras)
é essencial. Nessa caminhada é importante considerar que
o enredo enreda o leitor” (GERALDI, 2002, p.98). Possivelmente,
um aluno que não concorde com a escolha do livro a ser apresentado
se sentirá contrariado e realizará o trabalho por pura obrigação.
Sendo assim, a idéia de propor uma atividade que estimule os alunos
a ler poderá não se efetivar, pois estes não terão
seus critérios seletivos de leituras respeitados pelo educador
(a), ou seja, o aluno pode não querer trabalhar com as leituras
que mais lhes agradem e sim irá ler para satisfazer os ditames
decididos pela maioria no grupo.
Jandira descreveu ainda várias outras atividades que ela esquematiza
com o uso dos livros. A palavra “esquematiza” pode parecer
enfática, mas é exatamente a visão de um esquema
que nos vêm em mente quando nos deparamos com todo o plano bem normatizado
e sistemático que envolve a leitura dos livros de sua turma. Ela
prossegue descrevendo uma dessas atividades feitas com a turma em grupos:
Um grupo por vez apresenta a sua história. O trabalho
se desenvolve de modo que os alunos tenham tempo suficiente para o desenvolvimento
do assunto. O momento é intitulado “Hora do Conto”.
Após o término da primeira etapa, os alunos partem para
a segunda que é a construção de novas histórias.
As mesas são arrumadas de modo que acomodem todos do mesmo grupo.
Um aluno escreve, outros relatam, ilustram e fazem a capa. No final da
aula, tudo é recolhido por um aluno, que fica responsável
por essa etapa e guardado no armário para a continuação
no dia seguinte. (professora Jandira)
A “Hora do Conto” é uma atividade em
que alunos/as têm um tempo pré-determinado para ler em casa,
um tempo para apresentar para a turma, um tempo para reelaborar a história...
mas, quais serão os significados dessas leituras direcionadas para
a maioria dos alunos? Veiga - Neto (2000) nos auxilia quando assinala
que:
As nossas ações não se dão
simplesmente ao longo de uma duração de tempo; muito mais
do que isso, é na própria ação que se institui
um tempo capaz de ser percebido e de ter algum sentido para nós.
Dito de outra maneira, o tempo se institui e se organiza pela nossa ação
(p.17).
Na realidade, todos esses limites temporais estabelecidos
pelas instituições escolares implicam relações
de poder que visam disciplinar os alunos e formá-los de acordo
com parâmetros pré-estabelecidos. Na escola, tudo parece
ser muito centrado em etapas, cronogramas e horários. Daí
surgem os projetos de leitura nos quais os livros devem ser o gancho para
falar de coisas como “o núcleo da célula da barata
albina da Nova Zelândia”, pois isto está de acordo
com o conteúdo que a turma está estudando nas aulas de Biologia.
Tudo visando “aproveitar bem o tempo”. Esse fato nos leva
a pensar como os leitores se colocam diante do texto apresentado assim
como pretexto.
No caso da escola da professora Nalva, a biblioteca da escola em que ela
trabalha nem sequer possui livros infantis, o que é um fato um
tanto quanto espantoso. Ela relata o esforço dos professores (as)
para tentar suprir essa carência:
O corpo docente conseguiu elaborar uma sala de leitura
na qual as professoras (da sala de leitura) elaboraram projetos, as crianças
participam das atividades e levam um livro de empréstimo (uma vez
por semana). A biblioteca não tem livros infantis. (professora
Nalva)
A estratégia empregada foi a de que as próprias
crianças contribuíssem com livros para serem emprestados
uma vez por semana, mobilizando os membros da comunidade escolar, já
que os recursos materiais desta escola são bem precários.
Percebe-se que a circulação de livros e o acesso dos alunos
a eles se dão por um viés imperceptível nos discursos
oficiais. Sobre o funcionamento da biblioteca e da sala de leitura, fica
claro que as docentes não recebem qualquer auxílio material
para desenvolver propostas mais inovadoras de leitura com seus alunos.
É o que, em outro contexto, Bourdieu afirma:
...face ao livro, devemos saber que existem leituras diversas,
portanto competências diferentes, instrumentos diferentes para apropriar-se
desse objeto, instrumentos desigualmente distribuídos, segundo
o texto, segundo a idade, segundo essencialmente a relação
com o sistema escolar, a partir do momento em que o sistema escolar existe...
(BOURDIEU, 1996:23).
A educação escolar, durante muito tempo privilegiou os “grandes
clássicos” da literatura o que limitou as leituras dos alunos,
sem dizer com isso que essas leituras não sejam importantes em
nossa formação como leitores. Porém, o questionamento
seria sobre a concepção de Literatura que a escola emprega
e o que ela inclui/exclui com esse conceito. Lajolo (2001) é bem
elucidativa ao afirmar que “discutir literatura é abrir os
olhos, ouvidos, e olhar e ouvir em volta, ler livros, meditar sobre frases
pintadas a spray em muros e edifícios da cidade, e fazer a eles
a pergunta: o que é literatura?” (p.13).
As professoras que foram sujeitos desta investigação apresentaram
uma visão bem ampla do que consideram como válido para seus
alunos lerem. Carla, por exemplo, afirmou que as leituras pertinentes
eram:
Leituras de imagens (simbólicas), gibis, revistas,
jornais, contos, crônicas, poemas, (...) de tudo um pouco, valorizando
as diversas formas de linguagem. (professora Carla)
Essas “diversas formas de linguagem” que são
citadas por Carla são indícios da valorização
das diferentes formas de expressão que os alunos se utilizam. Afinal,
a escola é uma das instituições que se encarrega
de difundir ou não o “status” de certas obras. Seria
interessante que repensássemos certa visão elitista de Literatura
como algo que se restringe aos autores de renome, relegando os outros
tipos de texto a um segundo plano, desconsiderado pela academia. Em um
tempo em que os livros de Shakespeare (1564-1616) e Marcel Proust (1871-1922)
dividem as estantes das livrarias com esotéricos ou romances de
auto-ajuda, cabe-nos ampliar a visão que dê conta dessa complexidade
de textos que podem estar circulando entre nossos alunos.
No enlace com essas questões de produção, formação
e circulação acreditamos que para mediar práticas
culturais de leitura, é preciso primeiramente ser um leitor/leitora.
Ter encontros regulares com textos e construir a partir deles significações
que poderão ser ou não utilizadas na trajetória como
pessoa ou profissional no campo da educação.
As três professoras afirmam que estão, atualmente, em constante
contato com a leitura e assim incentivam seus alunos neste mesmo processo.
Nalva, professora que deu as respostas mais lacônicas às
nossas perguntas, impossibilitando - nos de analisar a sua trajetória
como professora-leitora, nos chamou à atenção quando
afirma que não se recorda de nenhum mediador que tenha feito a
aproximação entre ela e a leitura. É como se o gosto
pela leitura fosse adquirido não pelo habitus (Bourdieu) e sim
pelo dom (quase biológico) que tem.
Comparando as respostas das três professoras, podemos dizer, apropriando-nos
de um termo de Pierre Bourdieu, que Nalva não herdou dos seus pais
o capital cultural que lhe permitisse desde sua infância uma relação
mais próxima com a leitura. Nas palavras de Bourdieu:
... cada família transmite aos seus filhos mais
por vias indiretas que diretas, certo capital cultural e certo ethos,
sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que
contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes face ao capital
cultural e à instituição escolar. A herança
cultural, que difere sob dois aspectos segundo as classes sociais, é
a responsável pela diferença inicial das crianças
diante da experiência escolar e, consequentemente, pelas taxas de
êxito (1999, p. 40-41).
Jandira e Carla afirmam que na infância tiveram “modelos de
leitores”; aquelas pessoas que de forma direta ou indiretamente
foram responsáveis por sua iniciação à leitura
e assim as despertaram para esta “aventura”. Carla, por exemplo,
conta que sempre via seus pais lendo e destaca a importância dessa
mediação no seu processo de formação enquanto
leitora:
Acredito que influenciou minha formação
de leitora, pois logo cedo, “de alguma forma” percebi que
a leitura era importante dentro da minha casa, no cotidiano deles. (professora
Carla)
Jandira, por sua vez, enfatiza o papel do pai, que apesar
de não ter tido muita oportunidade para prosseguir seus estudos,
estava sempre lendo e estimulando seus filhos a fazer o mesmo:
Adorava ler e meu pai, que apesar de só ter o 3o
ano primário, lia compulsivamente e muito me estimulava através
dos livrinhos que me dava. Ele contava muitas histórias para mim
e meus irmãos. Depois se sentava no chão para que nós
contássemos para ele as histórias que havíamos lido.
(professora Jandira)
Percebemos a relação afetiva e até
certo ponto ritualizada que envolvia o ato de ler. A tradição
oral é algo que provém das sociedades mais primitivas e
cultiva certos significados, crenças, costumes muitas vezes apagados
por imposição de situações de colonização
econômica e cultural.
Nesse campo de lutas por significados e pela dominação material
e simbólica, a questão das mídias se sobressai, pois
as referências feitas às revistas, televisão, jornais
e internet foram ponto comum nas falas das três professoras. Recorremos
a dois autores latino-americanos, ligados aos Estudos Culturais, para
nos ajudar a pensar a questão da influência que a mídia
exerce sobre a sociedade contemporânea. Nestor García Canclini
é um dos autores que tem se empenhado em demonstrar o quanto a
mídia desempenha o papel de difusora de identidades e de cultura.
Ele chega a apontar para o fato de que, atualmente, “a cidadania
é algo que já não se exerce apenas em movimentos
sociais, mas também nos meios de comunicação de massa”
(1997, p.115). Sob esse ponto de vista, a identificação
entre as pessoas é algo que envolve a questão de dividirem
ou não os mesmos gostos e hábitos midiáticos. Ser
cidadão implica então, diretamente, no fato de consumir
ou não a mídia.
Jesús Martín-Barbero (2003) é um outro dos teóricos
que se dedica a analisar a inserção das indústrias
culturais na vida cotidiana, dando ênfase aos estudos de recepção.
Sua premissa é a de que os meios de comunicação passam
por todo um processo de mediação. O público pode
resignificar aquilo que recebe, mesmo que a mídia se empenhe por
nos fornecer informações que atendem a determinados interesses.
Analisando a pesquisa de recepção que Barbero desenvolve,
Escoteguy (2001) afirma que ela leva em conta “dois grandes eixos:
um relacionado às negociações que se estabelecem
entre textos mediáticos e espectadores/audiência e outro
referente às multi-variadas formas pelas quais nós, espectadores,
nos constituímos através do consumo mediático”
(p.55). Sendo assim, não podemos dizer que a postura das professoras
e alunos/as perante aquilo que lêem é meramente passiva.
A compreensão levará em conta todo o meio cultural no qual
estão imersas, nos oferecendo uma interpretação sempre
flexível e relativa daquilo que circula no bojo social.
No interior dos debates que se têm travado acerca do atual período
pelo qual atravessamos, é freqüente se mencionar o termo “identidade”
e as formas através das quais ela vai sendo construída e
reconstruída cotidianamente. Stuart Hall tem refletindo sobre a
questão da identidade na contemporaneidade. Para o autor, já
se foi o tempo em que se podia pensar num sujeito unificado e centrado.
Muito pelo contrário, ele parte do pressuposto de que “...
as identidades modernas estão sendo ‘descentradas’,
isto é, deslocadas ou fragmentadas” (2003:8). Nesse sentido,
seria problemático pensarmos em uma identidade de professora dissociada
de uma identidade de leitora. Ambas as posições se influenciam
e encontram-se profundamente imbricadas, fazendo com que as práticas
de leitura estejam refletidas nas práticas pedagógicas,
e vice-versa.
Entendendo a leitura como algo que se dá nos mais diversos ambientes,
pelos mais variados meios e por intermédio de diferentes mediadores,
percebemos que cada um vai construindo sua trajetória enquanto
leitor, numa relação que não se esgota no ponto final
de cada texto, que pode ser apenas o início de uma rede em constante
processo de mudanças. Sendo assim, trazemos a interessante fala
de Lajolo (2001) que nos diz que:
A literatura é porta para variados mundos que nascem
das várias leituras que dela se fazem. Os mundos que ela cria não
se desfazem na última página do livro, na última
frase da canção, na última fala da representação
nem na última tela do hipertexto. Permanecem no leitor, incorporados
como vivência, marcos da história de leitura de cada um.
(p.45)
CONCLUINDO...
O ato de ler pressupõe uma função
social. Lê-se para entrar em contato com o “outro”,
para conhecer, aprender, divertir, ou até mesmo “passar o
tempo”. Lê-se pela possibilidade de ampliar os horizontes
de culturas, entender o passado e planejar o futuro. Seria imensa a lista
de atribuições da leitura; mas o que deve ser problematizado
é se estamos conseguindo dialogar com os alunos no tocante ao entendimento
do ato de ler.
Analisando as diferentes falas das professoras, somos levadas a entender
que a nossa formação enquanto leitores (as) não se
estabelece em um único local, como é o caso da escola, onde
se supõe uma institucionalização da leitura e dos
saberes em geral. Nossa formação é adquirida não
somente na escola, mas também em casa, nas ruas, nas conversas
entre amigos, na fila do cinema ou até mesmo no elevador. Mesmo
que a escola não perceba a aproximação dos alunos/as
com a leitura, esta pode acontecer em diferentes ambientes nos quais circulamos
cotidianamente, construindo de maneira efetiva nossa identidade como leitores.
A observação contemporânea de um processo de descentramento
dos indivíduos em múltiplas posições e identidades
nos faz concordar com Veiga-Neto (2000) quando afirma que “cada
indivíduo tem várias identidades, cada uma das quais o enlaça
com esse, aquele ou aqueloutro grupo” (p.60).
A relação de segurança que se estabelece entre o
mediador, seja o professor/a, bibliotecário/a jornaleiro/a, pai/mãe
e o individuo/leitor/a faz com que este se aproprie de vários materiais,
isto é, se sinta autorizado a usufruir de diversas leituras na
comunicação com o outro. Deste modo, dissolvem-se as barreiras
sociais e simbólicas possibilitando a experiência criativa
e o reconhecimento das diferenças fortalecendo a identidade leitor/a.
Nesta mediação, a família foi identificada como um
importante espaço de apropriação de produtos culturais,
para a formação de leitores, abrindo caminho para posteriores
investigações.
No entanto, consideramos que as questões conjunturais, no âmbito
cultural, político e econômico devem servir de pano de fundo
para se perceber a construção de identidades diversas e
plurais imbricadas na trama social e na estrutura geral da sociedade.
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