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  O SÍTIO DO PICAPAU-AMARELO A SEDE DA UTOPIA

Simone Gonçalves Marques - Universidade Paranaense – Unipar

Diferente da Europa que foi invadida por uma série de movimentos da vanguarda modernista, o Brasil, nos primeiros vinte anos do século XX, ainda era dominado por estilos literários surgidos no século anterior. No entanto, logo surgiram alguns autores que romperam com a estética dominante e, por isso, passaram a ser chamados de Pré-Modernistas ou, segundo a visão de Massaud Moisés (2001), escritores da Belle Èpoque.
O Pré-Modernismo teve seu início oficial em 1902, com a publicação das obras Canaã, de Graça Aranha, e Os sertões, de Euclides da Cunha, e terminou, em 1922, com a Semana de Arte Moderna. O movimento, entretanto, não constitui especificamente uma escola literária. Isso se dá porque esses autores tinham uma individualidade muito forte e seus ideários e estilos eram muito diferentes.
Pode-se dizer então que o Pré-Modernismo é termo usado para designar a produção literária de alguns autores que, apesar de romperem com as estéticas anteriores, ou seja, a Realista, a Naturalista e a Parnasianista, ainda não podem ser considerados autores Modernistas propriamente ditos. Os principais representantes desse período são: Augusto dos Anjos (1884), Euclides da Cunha (1866), Graça Aranha (1866), Lima Barreto (1881) e Monteiro Lobato (1882).
Através desses escritores o que havia antes em questão de escola literária só foi totalmente neutralizado com o Modernismo. A literatura dos primeiros anos do século XX apresentou dois tipos de nacionalismo: um conservador e outro renovador. Conservador porque alguns escritores insistiam em conservar em suas obras o que vinha predominando em termo de literatura, causando conflitos, vindo explodir na Semana de Arte Moderna entre os que lutavam pelo conservadorismo. Já os renovadores, sendo um deles Monteiro Lobato, viam no Brasil a grande possibilidade de mudança, só bastavam pessoas interessadas, assim como ele.
Este trabalho pretende, através da leitura das obras infanto-juvenis de Monteiro Lobato, verificar o segundo tipo de nacionalismo, no caso, o renovador, que é o olhar de Monteiro Lobato para o Brasil, indignado com o que estava acontecendo no sistema político socioeconômico que era imposto ao povo. Lança críticas e denúncias à realidade brasileira através de suas atitudes e escritos e, assim, nega o Brasil enaltecido pelos Românticos e Neoparnasianos e revela um país repleto de problemas culturais, políticos e, sobretudo, sociais.
A literatura marcada por essa corrente rompe com o passado acadêmico que valoriza o homem e a paisagem regional. Isso quer dizer que tipos humanos como o caipira, o sertanejo, o mulato e as personagens como as do subúrbio, do nordeste e do interior paulista, que até então eram marginalizadas pela literatura, passam a ser valorizadas pelos principais representantes desses períodos, já mencionadas acima. Mas Lobato, com a personagem Jeca Tatu, tenta estabelecer uma crítica ao sistema agrário do Brasil de sua época, bastante atrasado, sem recursos, sem maquinário e, acima de tudo, sem auxílio governamental; um Brasil em que poucos possuíam grandes áreas de terra as quais, muitas vezes, permaneciam improdutivas.
Monteiro Lobato, ao ingressar na faculdade, faz amizade com Godofredo Rangel e, durante quarenta anos, ambos trocam correspondências. Lobato escreve cartas, manifestos e envia-os ao Jornal O Estado de S. Paulo. Em 1914, um desses textos, o manifesto intitulado “Velha Praga” é publicado no jornal e gera muita polêmica, servindo, assim, de inspiração para ele escrever o livro de contos Urupês (1918) que traz o famoso personagem “Jeca Tatu”. Em 1917, publica, no Estadinho, o artigo “À propósito da exposição Malfatti”, uma crítica à mostra de pintura moderna de Anita Malfatti (1889) que, mais tarde, sob o título “Paranóia ou mistificação?”, é compilado em Idéias de Jeca tatu, lançado em 1919. Sendo o estopim de sua polêmica com os modernistas, o artigo suscita a solidariedade de amigos de Anita - sobretudo Menotti Del Picchia (1892) e Mário de Andrade (1893) - que passam a culpar Lobato por uma suposta regressão estética da pintora, ao mesmo tempo que o desqualificam como crítico e renegam as suas idéias sobre arte e cultura. Lobato, durante a Semana de Arte Moderna, prefere isolar-se nas praias do Guarujá, jogando xadrez. Parafraseando Oto Maria Carpeaux, José Carlos Barbosa Moreira afirma que:

Monteiro Lobato descobriu o homem do interior do Brasil. Descobriu nova dimensão da literatura brasileira, nacionalizando-a. Daí seu êxito enorme, revelado pelo número das edições e, igualmente, pelo tom da crítica. Lobato foi endeusado. Mas nunca aderiu ao modernismo, do qual foi a muitos respeitos precursor, antes hostilizando-o. Provocou, por isso, reações que, apontando os recursos lingüísticos do escritor, lhe negam, todavia, a significação literária da obra (MOREIRA,1972:116).

Esse aspecto crítico da obra de Lobato sugere uma discussão de como se constrói a sua obra e como o autor trata o nacionalismo na sua literatura infanto-juvenil. A leitura de estudiosos como Edgar (1962), Regina Zilbermann (1983), Nelly (1988), Todorov (1992), Penteado (1997) e Lajolo (1999) pode indicar o caminho e a compreensão da estética literária lobatiana. Ele, tendo escrito para adultos, decepciona-se por não ter logrado êxito e resolve passar alguns anos fora do Brasil, mais precisamente nos EUA. Quando regressa, em 1931, chega com um projeto já definido, que é a junção dos seis primeiros livros para roteirizar o universo do Sítio do Picapau Amarelo; além disso, acredita piamente nas riquezas naturais do país e na sua capacidade de produzir petróleo.
Devido a essa possibilidade, Lobato preocupa-se em divulgar idéias progressistas, sobretudo as relacionadas à exploração de petróleo em território nacional, mesmo que eles o levem ao exílio, pois mexe diretamente com forças reacionárias que, por sua vez, associam-se ao capital externo e não demonstram interesse algum. Contudo não deixa, de dar continuidade à escritura de suas obras infantis para suprir a necessidade de uma literatura que atenda às expectativas da garotada da época.
Os primeiros textos infantis brasileiros publicados no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX nada mais fazem do que reproduzir para as crianças a dependência da literatura vocacional à influência européia. Assim, a literatura infantil brasileira da passagem do século não se valoriza por sua criatividade, mas por seu caráter documental, mantendo-se, como na tradição européia, servil à pedagogia e a uma visão conservadora da infância. Só a partir de 1921, com a publicação de A Menina do Narizinho Arrebitado, de Monteiro Lobato, a feição da literatura para crianças brasileiras começa a ser alterada.
Amparando-se na alegação de que se trata de literatura escolar, - fato que garante ao escritor uma ampla aceitação da sua obra e a sua indicação pela rede escolar como segundo livro de leitura - Lobato começa a criar uma literatura infantil com características bem diversas daquela que se produzia até então, sobretudo no que diz respeito à participação da criança na narrativa. A história é contada do ponto de vista da criança e, desse modo, antes de ensinar, procura interessar e divertir o pequeno leitor. Propondo à criançada uma arte que lhe interesse, passa a criar novos enredos, novas tramas, sobretudo dentro do sítio de Dona Benta em que, através do fantástico, insere personagens clássicos do conto infantil tradicional, como o Pequeno Polegar, o Pinocchio, o Capitão Gancho, dentre outros, inclusive mitológicos.
Tal preocupação com o recebedor do texto infantil marca o ideal reformador da obra de Lobato que mantém a sua produção até 1944, data de sua última publicação infantil. Em conseqüência disso, a sua produção traz diversos elementos que embasam um novo projeto da literatura infantil brasileira moderna.
A nova visão estética da literatura infantil lobatiana nos remete a uma nova retórica e a uma nova ideologia, entendida, aqui, a primeira, como a adoção de soluções comunicativas inéditas no plano lingüístico, tais como a predominância da linguagem afetiva, espontânea, coloquial e descontraída podendo levar o pequeno leitor a entender e a interagir com as personagens e as tramas estabelecidas no enredo proposto. Conduzindo-o a perceber, através da vivência das personagens, situações de sua própria existência, facilita-lhe o discernimento de todas as situações-problema expostas no decorrer da narrativa. A segunda é entendida como o conjunto de idéias que formam o texto e que remetem a uma visão crítica do Brasil. Lobato assume o compromisso de apontar os erros às criticas para torná-los possíveis de serem corrigidos. Em decorrência disso, compromete-se, também, com uma moral de situação por ele instaurada a qual altera a visão tradicional de valores como a liberdade e a verdade.
A literatura lobatiana rompe com o modelo tradicional de literatura infantil ao criar novas expectativas e adequá-las à preocupação com a recepção de seus textos. Neste sentido, sua obra aponta para uma significativa dicotomia: de um lado, aparecem narrativas com predominante caráter informativo que preenchem uma carência de saberes manifestada pelas personagens infantis do sítio. Suas atenções se voltam para o mundo exterior e buscam o conhecimento de tipos objetivos, quer no âmbito da História, das Ciências Naturais, da Gramática ou da Mitologia. Mas há obras do autor de cunho ficcional em que as crianças do sítio se propõem a solucionar situações problemáticas através da atuação sobre seu meio ambiente. As obras informativas revelam um caráter descritivo, colado ao real, cuja intenção pedagógica é evidente. As outras manifestam um sentido crítico livre de condicionamentos predeterminados onde a realidade se une à fantasia sem deixar de ser denúncia, propulsora de conscientização.
Motivado pela consciência de que a criança, por viver em sociedade, já sofre, à sua maneira, condicionamentos que determinarão o seu comportamento futuro, Lobato estimula-as a ver a realidade através de conceitos próprios, atraídos não só por personagens e sua ação, mas também pela sua maneira de dizer. Embora todas as histórias se estruturem com o auxílio do mágico (o faz-de-conta de Emília, a inteligência de um sabugo falante, a fidelidade de um rinoceronte – acontecimentos absolutamente distantes do real), sua intriga coloca o leitor diante de assuntos absolutamente próximos: o petróleo, a geologia da região paulista, o folclore nacional, os trustes mundiais da economia, as reações de cada classe social diante do estímulo da livre iniciativa, entre outros.
Monteiro Lobato capta o estado de espírito representativo das idéias de seu tempo do ponto de vista social, o que se evidencia pelas ações das personagens. Por exemplo, através do Visconde de Sabugosa, em O Poço do Visconde (1937), todos os moradores do SÍtio e, por extensão, todos os pequenos leitores, se conscientizam da importância do petróleo, da necessidade de lutar pela realização de seus recursos naturais.
Dessa forma, junto com as personagens do sítio, os leitores são levados a conquistar uma consciência crítica de brasilidade, o que implica a valorização e o reconhecimento de diversos aspectos ignorados até mesmo por muitos adultos.
Quanto ao plano ético, todas as questões perdem o invólucro de moralidade que até aqui perseguiu a literatura infantil em detrimento da verdade: o mundo passa a ser dos espertos e a inteligência bem orientada acaba vencendo a força bruta. É o que confessa Emília em suas Memórias ou o que concluem diversas fábulas lobatianas.
A moral tradicional é abandonada em prol de uma verdade individual, observável e constatável. As personagens optam por uma moral de situação e instauram no sítio a liberdade. Liberdade para perguntar sobre os mais diversos assuntos, inclusive aqueles que estão relacionados com os acontecimentos do interior paulista ou até mesmo das fantásticas histórias contadas por Tia Nastácia e Dona Benta. A sede de saber da criançada é grande e como Emília nunca está contente, sempre busca uma forma de revolucionar e se não se realiza na realidade, ela se realiza através do faz-de-conta. E, assim, Emília explica o segredo dos progressos do sítio: “- O segredo, meu filho, é um só: liberdade. Aqui não há coleiras. A grande desgraça do mundo é a coleira. E como há coleiras espalhadas pelo mundo!...” (LOBATO,1982:30). Livre de censura, sem coleira, a obra infanto-juvenil lobatiana apresenta dois níveis distintos: num deles, a criança pergunta e recebe informações que a instrumentam para a crítica, sendo que nas perguntas há muito da fantasia, pois, ao perguntar, e até o momento de ouvir a resposta, a criança imagina e isso a leva para um mundo maravilhoso que o adulto não percebe, não sente, mas que a criança consegue viver perfeitamente; no outro, vê criticamente aspectos reais, os quais têm como características infantis a absoluta falta de limites com acontecimentos irreais. Tudo isso é possível. As noções de tempo e espaço são eliminadas. Tudo é natural, nada é sonho, ou melhor, o próprio sonho é vivido e não sonhado. Por isso a fada – personagem que no conto tradicional se distancia do real e é, a priori, instauradora do maravilhoso – é substituída por Emília, uma boneca de pano tornada viva, próxima da realidade infantil. Da mesma forma, o faz-de-conta de Emília substitui a varinha mágica já gasta das velhas fórmulas européias
A criança que entra em contato com o texto lobatiano é levada a uma reflexão sobre o sentido de sua vida. O cenário e os elementos que compõem a intriga são reais, as leis que regem esse mundo são ideais, não porque sejam distantes da verdade, mas porque se constituem numa correção da realidade. Identificados com as personagens, os leitores vêem criticamente o mundo corrigido, conscientes de que estão atuando sobre seu mundo. Os erros apontados pelo autor são corrigidos através da imaginação das crianças, pela interferência do maravilhoso, num ambiente sobretudo humano e livre: o sítio do Pica-Pau Amarelo, que é a imagem do próprio Brasil. O maravilhoso é uma qualidade literária que diferentemente dos contos de fadas desenvolve-se no cotidiano mágico dos seres animados, através de animais falantes, tempo e espaço familiares, tendo uma problemática social, sempre ligada à vida prática.
A leitura da obra lobatiana reflete uma dicotomia narrativa que corresponde a dois códigos diferenciados: um para o relato dos acontecimentos que envolve o Brasil, em que as personagens e os leitores adquirem embasamento científico; outro para a especulação onde as personagens e leitores podem fazer inferências diante das verdades, corrigidas através da imaginação dos acontecimentos narrados. A fim de adequar sua intenção à mentalidade infantil, Lobato cria um mundo fantástico que supera a própria realidade, uma vez que se propõe a corrigir as falhas nela existente.
A utilização de elementos da fantasia é própria dos moradores do sítio; enquanto o maravilhoso é a forma de aproximar a criança da ciência, mas também de compensar o atraso tecnológico do Brasil a começar pela literatura infantil que estava totalmente defasada. Alguém tinha que dar a ela uma cara nova, mostrar que o Brasil tinha sua potencialidade econômica, e precisa lutar para sua realização, mas faltava despertá-la; e nada mais justo do que começar pelas crianças através da imaginação que pode ser encontrada no sítio ou então reagir contra a inútil devastação das guerras. Isto enfatiza o contraste entre a fantasia e a realidade, destacando-se a consciência crítica diante da vida político-econômica mundial, como uma possibilidade de superação desse contraste.
A possibilidade da existência de uma sede utópica configura a fantasia como uma forma de mostrar a realidade à criança e também a maneira de reconhecer a atuação dos bonecos humanizados. Trazer a vida brasileira à consciência infantil e desenvolver um sentimento de nacionalidade atuante, é a mais importante função da literatura de Lobato que, por isso, constitui como uma referência máxima da literatura infantil brasileira, permanecendo ainda hoje como um desafio atual.

O mundo fantástico e maravilhoso do Sítio

A menina Lúcia, neta de dona Benta, que é carregada pela negra de estimação “Tia Nastácia”, recebe de suas mãos uma boneca feita de pano com recheio nacionais, com mistura de macela, folclore e maestria literária. Lobato rompe para valer com as fortes tradições literárias e culturais da elite nacional.
È com essa boneca que Narizinho vive sua primeira aventura maravilhosa. Estando longe de casa e deitada com sua boneca, quase dormindo, perto do Ribeirão, vê um peixinho vestido de gente em cima de seu nariz e, por instantes, retêm o fôlego de medo de o assustar até o momento em que um besouro pousa em sua testa. Os dois começam a conversar sobre a origem daquela terra sobre a qual estão pisando. De súbito, a menina senta-se, jogando no chão o peixinho. e explica-lhe que não é nenhuma montanha como eles estão pensando que seja. Mas diz a eles ser ela a menina que todos os dias vai ao rio dar farelo de pão aos peixinhos.
Por um longo tempo os dois conversam, ela e o príncipe, sempre com a presença da boneca Emília. O príncipe convida-a para fazer uma visita ao seu reino. A menina fica tão assanhada que logo grita: “Pois vamos e já, antes que tia Nastácia me chame.”(LOBATO,1991:10). E para lá os dois seguem e junto levam também a boneca que não diz uma só palavra.
Tudo isso se torna possível para Narizinho devido à aventura não ter sido apenas um sonho. O fantástico passa a fazer parte do cotidiano como se fosse realidade. O estado de vigília e o sono costuma ser, nas crendices populares, o mais apropriado para entrar em contato com o sobrenatural, o maravilhoso. Esta nada mais é do que a hesitação, o momento em que o leitor deixa a sua realidade e passa a viver o mundo da fantasia.
Estando Narizinho junto com o príncipe no Reino das Águas Claras, conhece Dr. Caramujo, que inventou a pílula falante e, com a ajuda dele e o interesse do príncipe, procurara mais que depressa solucionar o problema da boneca que nunca havia falado. Quando passa a falar, ninguém mais segura a danada. Fala tudo o que lhe dá vontade. Reclama, critica e soluciona, na medida do possível, com o seu faz-de-conta, deixando todos admirados com suas peripécias.
A vida no Sítio é recheada de acontecimentos, sempre acompanhados por duas mulheres de condições sociais completamente diferentes. Uma é sábia, culta, enérgica, compreensiva, sensata, carinhosa e realista, é a autoridade máxima, tácita e livremente aceita, com amor e respeito, sem qualquer receio ou tensão, mas capaz de topar as mais fantásticas brincadeiras , sendo a avó ideal. A outra, tendo sua ascendência sem mandonismo, proveniente da afeição mútua e aceita com atualidade, é o símbolo idealizado da raça preta, afetuosa e humilde, que está na gênese de um povo e é a melhor fonte das estórias que alimentam a imaginação e a fantasia de gerações de brasileiros. Duas representações da mulher brasileira que se relacionam de formas diversas com Narizinho. Narizinho já sabe cozinhar e costurar, uma qualidade apreciada nas mulheres adultas da época, ou seja, a desenvoltura na cozinha.
O encontro das crianças no Sítio não é apenas uma rotina, mas uma festa permanente, principalmente quando Tia Nastácia conta suas histórias do folclore brasileiro e Dona Benta conta para as crianças fábulas européias, histórias lidas nos clássicos da literatura, a história do mundo. Mas festa maior é quando todos os personagens do mundo da fantasia resolvem mudar de vez para o Sítio, reconhecendo que lá, e não em outro lugar – como os livros ou os armários da Dona Carochinha – é que reencontrarão a essência vital com a qual foram criados e alimentados. O sonho, como se pode observar nas palavras do Pequeno Polegar:

Prezadíssima Senhora Dona Benta Encerrabodes de Oliveira:
Saudações. Tem esta por fim comunicar a V.Ex.ª que nós, os habitantes do Mundo da Fábula, não agüentamos mais as saudades do Sítio do Picapau Amarelo, e estamos dispostos a mudar-nos para aí definitivamente. O resto do mundo anda uma coisa das mais sem graça. Aí é que é o bom. Em vista disso, mudar-nos-emos todos para sua casa – se a Senhora der licença, está claro...(LOBATO,1982:08).

Com uma simples carta trazida pelo Pequeno Polegar e com a autorização de Dona Benta, as personagens do mundo da fábula decidem morar no Sítio do Picapau Amarelo. E, assim, eles se mudam. Aladim, Branca de Neve, Chapeuzinho, O Gato de Botas, Dom Quixote, Barba Azul, A Gata Borralheira, Peter Pan e seus meninos perdidos, Alice e o País das Maravilhas, os personagens da mitologia grega... todos. Para acomodar a todos, Dona Benta está incerta. A população do mundo da fábula é grande, como acomodá-la toda ali num sítio que não tem mais de cem alqueires? Pedrinho então faz a seguinte proposta:

Aumenta-se o sítio vovó – propôs Pedrinho. – A senhora compra as fazendas dos vizinhos. Para que serve dinheiro? Depois que saiu o petróleo, a senhora ficou empanturrada de dinheiro a ponto de enjoar e nem permitir que se fale em dinheiro nesta casa. Aumenta-se o sítio. Tão fácil...Dona Benta refletiu ainda uns instantes; depois concordou. É o jeito. Podemos comprar a Fazenda do Taquaral e mais a do Cupim Redondo. As duas juntas devem perfazer aí uns mil alqueires de terra. Ora, em mil e duzentos alqueires de terra eu imagino que cabem todos os personagens do Mundo da Fábula. E se não couberem, a senhora vai comprar mais fazendas – isso não oferece dificuldade. E, podemos fazer uma coisa, vovó: uma cerca de arame que separe o sítio velho das Terras Novas. Que tal? (...) Sim, boa idéia. Fazemos uma cerca de arame com porteira – e porteira de cadeado. Confio a chave ao Visconde. Só abriremos a porteira quando nos convier. Se não, invadem-nos isto aqui e ...(LOBATO,1982:8-9).

Aceito o pedido, providencia-se espaço para todos.O terreno escolhido por Dona Benta é uma fazenda ao lado de sua propriedade. Ela confia a chave ao seu Visconde, pois ali está, de um lado, a realidade e, de outro, a fantasia. E, para os leitores, tanto crianças quanto adultos fica a imaginação e o prazer de ler e viver esse fantástico mundo das fábulas.
Como pode ser observado, o escritor tenta apresentar a realidade através dos elementos humanizantes e, para isso, ele se utiliza da fantasia das personagens envolvidas com a realidade do Sítio. O fantástico criado pela narrativa torna possível o distanciamento do mundo real. As personagens passam a viver num mundo como se fosse uma outra realidade. Isso, aos olhos de alguns humanos, pode ter significado utópico.

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