Milena Ribeiro Martins - Universidade Católica
de Brasília (UCB)
Este texto é uma versão reduzida de um capítulo
de minha tese de Doutorado, intitulada Lobato edita Lobato: história
das edições dos contos lobatianos (Unicamp, 2003).
Além de escrever sua obra e encontrar um editor disposto a publicá-la,
o escritor também precisa tomar algumas providências a fim
de transformar o(s) texto(s) em livro. Para isso, ele em geral faz alguns
acordos com seu editor a respeito da edição de sua obra.
Considerando que o livro não é feito apenas de texto e que
os paratextos também desempenham importante função
na leitura da obra literária, desenvolvemos uma análise
de algumas dessas intersecções entre editoração
e leitura. Tratamos inicialmente de questões gerais, para, em seguida,
analisar especificamente a edição dos livros de contos de
Monteiro Lobato.
Partimos das seguintes considerações de Roger Chartier,
a respeito dos procedimentos de produção do livro:
“Com efeito, podemos definir como relevante à produção
de textos de um lado as senhas, explícitas ou implícitas,
que um autor inscreve em sua obra a fim de produzir uma leitura correta
dela, ou seja, aquela que estará de acordo com sua intenção.
(...) Existe aí um primeiro conjunto de dispositivos resultantes
da escrita, puramente textuais, desejados pelo autor, que tendem a impor
um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor de uma maneira de ler
que lhe é indicada, seja fazendo agir sobre ele uma mecânica
literária que o coloca onde o autor deseja que esteja.
Mas essas primeiras instruções são cruzadas com outras,
trazidas pelas próprias formas tipográficas: a disposição
e a divisão do texto, sua tipografia, sua ilustração.
Esses procedimentos de produção de livros não pertencem
à escrita, mas à impressão, não são
decididas pelo autor, mas pelo editor-livreiro e podem sugerir leituras
diferentes de um mesmo texto. Uma segunda maquinaria, puramente tipográfica,
sobrepõe seus próprios efeitos, variáveis segundo
a época, aos de um texto que conserva em sua própria letra
o protocolo de leitura desejada pelo autor. (...)
Reconhecer como um trabalho tipográfico inscreve no impresso a
leitura que o editor-livreiro supõe para seu público é,
de fato, reencontrar a inspiração da estética da
recepção, mas deslocando e aumentando seu objeto.”
Assim como afirma Chartier, acreditamos que um livro não
é feito apenas de palavras, mas de algo mais que também
é objeto de leitura e interfere potencialmente na leitura das palavras
do texto propriamente dito. Um livro não é, pois, apenas
um texto. Ele é formado por outros elementos, nem sempre de responsabilidade
do seu autor — muitas vezes de autoria do editor, do ilustrador,
ou ainda de um crítico.
A falta de atenção dos estudos literários com relação
a determinados elementos que compõem o livro parece estar sendo
minimizada nos dias de hoje, através de diferentes abordagens que
poderiam se filiar à História do Livro e da Leitura. Um
exemplo irônico e bem-humorado de abordagem diferenciada do livro
pode ser encontrado em Invisible Forms, em que Kevin Jackson (seu autor)
reúne e analisa alguns dos elementos invisíveis do livro.
Na verdade, apesar do título, tais elementos não estão
de forma alguma invisíveis, segundo o autor explica na introdução,
mas costumam passar despercebidos dos leitores, mesmo dos especializados:
“Em sua maioria, estas Formas Invisíveis
são as partes dos livros que vemos toda vez que tiramos da estante
um livro brochura ou capa-dura e o folheamos: títulos, dedicatórias,
epígrafes, prefácios, notas de rodapé, índices
e assim por diante — em poucas palavras, todos os pequenos elementos
e acessórios que ajudam a servir o conteúdo de um livro
para seu leitor, e que são conhecidos por pesquisadores especialistas
como ‘paratexto’. (...) Por exemplo, praticamente qualquer
pessoa com educação suficiente para ler um livro sem figuras
sabe que certos trechos do texto — tais como esta Introdução
— têm determinadas funções a cumprir, e se sentirá
devidamente gratificada quando o resultado for satisfatório, e
vagamente irritada quando não for. Mas por quê? Ninguém
jamais nos mostrou tais regras. Você pode comprar um livro sobre
como escrever romances ou peças de teatro, ou ainda, nos últimos
anos (isso não é uma piada), sobre como escrever um diário,
mas você terá bastante trabalho para encontrar um livro que
lhe mostre como escolher uma epígrafe ou fazer uma dedicatória.
Apesar dessa evidente lacuna no mercado de auto-ajuda, escritores continuam
alegremente produzindo dedicatórias, epígrafes e sinopses
sobre si mesmos, e seus leitores recebem bem tal prática. (...)
Formas Invisíveis é, em parte, um registro de algumas coisas
que eu tenho notado acerca de partes relativamente negligenciadas dos
livros. É fácil, quando se começa, qualquer um pode
fazê-lo; e, longe de diluir o prazer do leitor com os textos principais,
é uma maneira de multiplicar os já vastos prazeres da leitura.”
O exagero em qualificar como “invisíveis”
os elementos paratextuais serve para iluminar o que há no livro
além das palavras do texto principal, desviando o foco até
então voltado apenas para estas palavras. De maneira mais séria
e acadêmica, Gérard Genette chegou antes de Kevin Jackson
e cunhou o termo paratexto, para definir enunciados verbais e não-verbais
que participam da construção de sentido da obra literária:
“A obra literária consiste, exaustiva ou
essencialmente, em um texto, quer dizer (definição bem simplificada),
em um conjunto mais ou menos longo de enunciados verbais mais ou menos
providos de significação. Mas este texto raramente se apresenta
nu, sem o reforço e o acompanhamento de um certo número
de produções, elas mesmas verbais ou não, como um
nome de autor, um título, um prefácio, ilustrações,
as quais nem sempre se sabe se devem ou não ser consideradas como
pertencentes a ele, mas que em todo caso o cercam e o prolongam, precisamente
por apresentá-lo, no sentido habitual deste verbo, mas também
no seu sentido mais forte: por torná-lo presente, por assegurar
sua presença no mundo, sua ‘recepção’
e seu consumo, sob a forma, pelo menos nos dias de hoje, de um livro.
O paratexto é então para nós aquilo pelo qual um
texto se faz livro e se propõe como tal a seus leitores, e mais
geralmente ao público.”
Dentro de uma noção simplificada da produção
do livro — e, mais especificamente, da obra literária —,
poderíamos delimitar as esferas de atuação do escritor
(aquele que faz o texto), do editor (aquele que transforma o texto em
livro e o distribui) e do crítico (aquele que indica e legitima
determinadas interpretações da obra) . Porém, escrita,
edição e crítica não são atividades
isoladas, independentes umas das outras. Há um importante entrecruzamento
de funções: se decisões literárias são
tomadas pelo editor, e se decisões editoriais são tomadas
pelo escritor, então a editoração e os estudos literários
podem estreitar suas relações.
Esta constatação está na origem de nosso interesse
em estudar algumas decisões editoriais tomadas por escritores,
em consonância ou não com outros profissionais das letras.
Partiremos das seguintes questões: o que o escritor leva em consideração
no momento de transformar o(s) texto(s) em livro? Como ele escolhe os
textos que compõem o livro? Como e onde ele explica a organização
da obra? E o que, nesse processo, tem interessado e pode interessar aos
estudos literários?
Há casos em que o livro pode ser planejado antes
que os textos sejam escritos — por exemplo, quando se trata de uma
encomenda editorial para uma coleção, o escritor pode receber
do editor uma proposta para escrever sobre determinado tema, enquanto
alguns dos aspectos do livro já estão definidos previamente
(número de páginas, formato, gênero, público-alvo,
preço, etc.). Em outros casos, quando a escrita é anterior
a um planejamento editorial, quando é do escritor a iniciativa
de escrever um texto, há um momento normalmente posterior à
escrita (ou pelo menos posterior a uma das fases da escrita) em que aspectos
materiais do livro são planejados e discutidos. Nesta fase se insere
também a organização dos textos, no caso de um livro
composto por vários textos: na edição de livros de
contos, poemas ou crônicas, colocam-se questões relativas
à ordem dos textos no livro — qual a ordem em que os textos
serão dispostos no livro? qual será o primeiro e qual o
último texto do livro? haverá subdivisões, títulos
e subtítulos, epígrafes, prefácios, ilustrações
ou outros paratextos?
Tais decisões relativas à transformação do(s)
texto(s) em livro podem ser tomadas exclusivamente pelo escritor ou exclusivamente
pelo editor. Mas dependendo das relações que se estabeleçam
entre eles, e dependendo também do capital simbólico de
cada um deles (do prestígio do escritor e do editor, mas também
do tradutor e do ilustrador), é provável que haja um acordo
entre estes diferentes profissionais do livro.
Escritor e organizador
Ao enviar seu texto para a edição, portanto, o escritor
pode ter cuidado de diversos aspectos relativos não mais à
escrita propriamente dita, mas à apresentação material
de sua obra. Talvez a primeira de todas as decisões (ainda entremeada
ao processo de escrita, quando não anterior a ele) seja aquela
relativa ao assunto: de que tratará o livro? Esta decisão
se reveste ainda de mais detalhes quando se planeja um livro composto
por textos menores, independentes: contos, crônicas, poemas, artigos,
ensaios, etc. Não se descarta a possibilidade de um livro deste
tipo ser organizado ao acaso, em função do tempo de que
o escritor (organizador) dispõe, dos textos inéditos que
ele tem escritos, da temática sugerida pela coleção
em que o livro será lançado, e de outros motivos.
Osman Lins qualifica como “duvidosas aventuras editoriais”
algumas reuniões de textos, muitas vezes feitas por um editor ou
organizador, mas com o beneplácito ou a conivência do escritor.
Este qualificativo aplica-se sobretudo aos fragmentos, cuja publicação
ele desmerece enfaticamente:
“Páginas avulsas, algumas retiradas de livros
anteriores, e crônicas, poemas, esboços de novelas não
escritas, frases poéticas, ficção de amador (policial,
científica), divagações sem destino, evocações
de infância, lembrança de uma antiga viagem, enfim toda espécie
de improvisações, de solfejos, transformando esses livros,
títulos falsos na bibliografia de seus signatários, em nada
mais que pretenciosos [sic] almanaques. De escasso valor para a cultura,
sem qualquer sentido de ordenação, resposta e acréscimo,
nada aportam à evolução do autor, nem o socorrem
em suas buscas. Consentir em tão inútil jogo não
é pecado menor, antes mais grave, e funesto, se parte de nomes
já conhecidos, estudados, com lugar de honra na literatura. Pois,
então, constituem exemplo, autorizam idênticas aventuras
da parte de principiantes, de velhos sem autocrítica, de diletantes,
de toda a incôngrua constelação que gira sem destino,
sem vida própria, no mundo da literatura, em busca de uma órbita,
de uma razão de ser. (...) O fragmento é a última
das formas de literatura.”
Este desdém pelas publicações de
fragmentos, sobretudo quando feitas sem um plano prévio, deriva
de uma concepção de obra literária que não
comporta a edição sem um planejamento, e que considera que
nem todo livro é uma verdadeira obra:
“A obra literária, pois, segundo a interpretamos,
implica em esforço, finalidade e organização. Ser
o resultado de um plano mais ou menos amplo, elaborado com liberdade imaginativa,
eis o que a distingue.”
Um século antes do discurso nervoso de Osman Lins,
Machado de Assis já tentara explicar o esforço de organização
de suas coletâneas de contos, explicitar o plano que estaria por
trás da aparente falta de ordem. Paradoxalmente, enquanto os prefácios
procuravam dotar os livros de alguma ordem, os títulos dos seus
livros de contos sugerem uma recolha quase aleatória de textos
(Papéis avulsos, Histórias sem data, Várias histórias,
Páginas recolhidas). É interessante que Osman Lins tenha
procurado desqualificar as recolhas de textos sem seleção
nomeando-as de “páginas avulsas”, título quase
exato de um dos livros de contos de Machado, para o qual o escritor diz
haver uma explicação, apesar da aparente falta de unidade.
De maneira geral, o que se percebe nas advertências de Machado (prefácios
às primeiras edições de seus livros de contos) é
uma tentativa de convencer o leitor de que, apesar de os títulos
sugerirem uma recolha aleatória de textos, há uma ordem
que preside cada uma das coletâneas, ou, no mínimo, um laço
que une os diferentes textos.
Em Papéis Avulsos, os contos estariam unidos pelo laço da
paternidade — uma metáfora da autoria. Em Histórias
Sem Data, ao explicar o título, o escritor explica também
o motivo da reunião daqueles contos, isto é, a intenção
de não tratar de coisas do dia, possivelmente opondo os contos
deste livro às suas crônicas jornalísticas. Há,
nos prefácios destes dois livros, um interessante percurso de produção
e controle do sentido: o escritor percebe que há uma primeira impressão
causada pelos títulos, que denotam uma suposta ausência de
organização das coletâneas; em seguida, dizendo querer
responder àquela impressão e refutá-la (embora tenha
sido produzida por ele mesmo), o escritor explica a escolha dos títulos
nos prefácios. A condução do leitor machadiano se
faz, portanto, desde o título, porta de entrada do livro. O escritor
parece querer controlar a leitura: supondo a interpretação
que o leitor faria do título, corrige-o, não alegando a
ilegitimidade de sua leitura, mas evidenciando que haveria uma razão
(imperceptível a quem teria lido apenas a capa) para a reunião
daqueles textos. Esta explicação é dada no prefácio,
isto é, espaço do livro em que a leitura já está
em curso, mas ainda não chegou aos textos ficcionais propriamente
ditos. Ao abrir o livro e folhear suas primeiras páginas, o leitor
se depara, então, com uma advertência do escritor, um aviso
inaugural de que as aparências enganam, de que a impressão
causada pelo título pode ser falsa.
Em Várias Histórias e em Páginas Recolhidas, Machado
usa uma outra estratégia. Desta vez, o prefácio não
vem explicar exatamente o título, mas a epígrafe, texto
que cumpre a função de ante-sala e de preparação
aos textos ficcionais. A epígrafe enobrece o livro, tanto por servir-se
da citação de Diderot e Montaigne, quanto por fazê-lo
em francês. Já não há, no caso destes dois
livros, a intenção de justificar a escolha dos textos nem
mesmo por uma semelhança temática. Em Várias Histórias,
não há outra explicação senão a necessidade
de preencher determinado número de páginas. E em Páginas
Recolhidas não há qualquer tentativa de unidade, mas salienta-se
desde logo a variedade dos textos, recolhidos pelo mérito de tratarem
de temas ainda atuais. Neste caso, o prefácio serve para traçar
uma breve história das primeiras publicações dos
textos ali reunidos. Em última instância, pesa sobre a escolha
destes textos o critério do gosto do escritor, da sua preferência
por esta ou aquela narrativa. É, enfim, a mesma explicação
que se dá para a reunião dos textos de Relíquias
da Casa Velha.
Em todos estes casos, não procuramos verificar se as justificativas
do escritor correspondem à realidade, isto é, se de fato
as razões elencadas nos prefácios estão presentes
na organização dos livros. Interessou-nos verificar que
há um momento e um local específicos no livro para que o
escritor insira explicações para sua atitude como organizador.
Além da seleção de textos, também faz parte
da organização da coletânea a decisão da quantidade
de textos (ou de páginas) a serem editados. Tal decisão,
ligada à seleção dos textos, pode ser feita com base,
mais uma vez, na temática dos textos que o escritor escreveu ou
planeja escrever. Além disso, também pode ser derivada de
uma decisão editorial, de um projeto editorial — o número
de páginas de uma coleção, o público-alvo
(definido pelo editor ou pelo escritor), o preço ou o formato do
livro podem limitar a escolha do escritor.
E há ainda uma outra questão que pode ter alguma importância
para o escritor no momento de editar seus contos (poemas, crônicas,
ensaios): a definição da ordem em que os textos aparecerão
no livro. É possível que esta ordem dos textos no livro
não seja dada por nenhuma razão especial, isto é,
que não haja um plano do escritor ou do editor para ela. Mas é
possível que a disposição dos contos no livro seja
feita de maneira a provocar algum efeito. E, quando há esta intenção,
quando a ordem dos contos provoca algum efeito (sobretudo na leitura),
ela merece maior atenção.
A preocupação com tais efeitos de leitura, decorrentes da
organização de contos numa coletânea, é assunto
de diversas cartas trocadas entre Guimarães Rosa e Edoardo Bizarri,
seu tradutor italiano. Além de documentarem as intenções
do autor e o percurso editorial dos contos rosianos, tais cartas apresentam
fragmentos de uma teoria sobre edição de literatura. Indicam,
por exemplo, intenções do escritor ou sugestões do
tradutor quanto à disposição dos contos em coletâneas,
atestando, neste caso, o caráter coletivo da preparação
das edições. O tradutor é também, neste caso,
responsável pela organização de algumas edições.
A esse respeito, Guimarães Rosa chega a afirmar que “o grande
tradutor começa por influir no autor.”
Algumas cartas trocadas entre eles indicam o caráter de provisoriedade
e experimentação das edições. Bizarri, ao
discutir a divisão do livro Corpo de Baile em três unidades,
na edição italiana, escreve:
“o decepamento de Corpo de Baile me deixa bastante
perplexo; não menos o critério de agrupamento em três
volumes. Mas não se importe muito com isso, Bizarri costuma errar
muito, e, aliás, não se acerta sem errar. Vamos experimentar
em que dá. Afinal, V. tem todo tempo para dar outra organização
nas sucessivas edições.”
E Rosa responde:
“Quanto à nova edição do ‘Corpo
de Baile’, Você deve de estar certo. Também, não
é, como Você — lindamente como o Palante, diz —
não é definitiva. Talvez, mesmo, venha a ser peculiaridade
curiosa do livro a façanha de sair cada edição de
um jeito. Só mais esta aventura, dele, captando novos leitores.
Aliás, o título de “Corpo de Baile” persiste.
O livro continua.
Agora, para a edição italiana, tudo fica, a este respeito,
a ser decidido entre Você (meu autorizado Representante, com ampla
e firme procuração) e a Feltrinelli. Na Alemanha, creio
que eles vão fazer em dois volumes, como a nossa 1.ª edição.”
Além de sugerir alterações na organização
dos contos da edição brasileira, o tradutor ainda assume
as funções de representante do escritor e organizador da
edição italiana. A atuação do tradutor se
multiplica. Como organizador, desponta também em seu trabalho a
função de crítico. As cartas trocadas entre escritor
e tradutor revelam certos procedimentos editoriais e certas intenções
literárias presentes no projeto de livro que já não
pode ser chamado de um projeto do autor, tamanha é a importância
do tradutor-organizador.
Antologia e coletânea
Na organização de uma coletânea de contos inéditos,
há um processo de seleção de textos. Diferentemente
das antologias, que selecionam textos anteriormente editados, as coletâneas
reúnem e ordenam textos normalmente inéditos (publicados
em periódicos, talvez, mas em geral inéditos em livros).
Ao reunir e ordenar um conjunto de textos, o autor (ou editor) não
deixa de selecionar e classificar, aproximando-se, desta forma, da organização
de uma antologia. Parece-nos, portanto, haver algo de antologia nas coletâneas.
Ao reunir os textos para serem editados, o escritor ou organizador pode
fazer tal seleção tendo em vista uma certa unidade do livro.
A unidade pode estar na origem dos textos, isto é, os textos podem
ser produzidos em função de uma temática. Assim,
o projeto de um livro de contos pode ser anterior ou posterior à
escrita. Da mesma forma, porém, também pode inexistir qualquer
unidade — apesar da crença um tanto quanto generalizada de
que há alguma razão explicável (temática ou
cronológica, sobretudo) subjacente à edição
de uma coletânea:
“O contista que reúne seus textos procede
a uma seleção de seus escritos já publicados [em
periódicos], podendo por vezes juntar a essa seleção
textos inéditos. Empenha-se ele por instituir ali uma ordem aparente,
apoiando-se na ordem dos assuntos ou da redação (ou ainda
da publicação, dependendo do caso). Está assim atuando
como editor de seus próprios textos. (...) Há contistas
que lançam mão do velho processo do conto-padrão
para dar uma unidade mais substancial a suas coletâneas. Foi o que
fez Alphonse Daudet com As cartas do meu Moinho: a coletânea adquire
dessa forma uma realidade textológica indelével, ficando
a cargo da crítica literária decidir sobre sua coerência.”
A unidade das coletâneas pode ainda não ser
mais do que uma construção (consistente ou não) da
crítica. Quando há uma unidade planejada pelo autor, pelo
organizador ou verificada/construída pela crítica, em geral
ela é evidenciada através dos próprios textos (por
exemplo, se todos eles tratarem do mesmo tema) ou ainda pode ser anunciada
através de paratextos — sobretudo título do livro,
capas, orelhas e prefácios. Além de anunciarem uma unidade
menos ou mais explícita, tais paratextos também podem direcionar
a leitura da obra. Da mesma forma, podem contribuir para uma classificação
do autor, para a sua inclusão em grupos literários (por
exemplo, em função da temática de sua obra) ou em
movimentos ou escolas literárias — inclusões que podem
se solidificar, em seguida, através de histórias literárias.
Assim, se Monteiro Lobato tivesse dado ao livro Urupês (1918) o
título de Dez Mortes Trágicas (como era seu plano inicial),
poderia ter direcionado a leitura da obra de maneira diferente daquela
que veio a fazer parte da história literária vigente. Em
outras palavras: o título Urupês, somado à popularidade
do artigo homônimo, somados ambos à popularidade da figura
do Jeca Tatu, impregnaram a leitura dos contos que compõem o livro.
Poderia ter sido outro o destino do livro caso o artigo “Urupês”
não tivesse sido inserido na coletânea e o título
do livro tivesse sido outro? Caso o título da obra sugerisse a
temática do suspense e do terror, Lobato poderia ter sido lido
como um herdeiro de Edgar Allan Poe, de quem foi leitor.
São hipóteses a partir das quais podemos refletir sobre
filiações, classificações e direções
interpretativas das obras literárias.
O organizador de um livro de contos escolhe os textos que comporão
o livro baseado em critérios diversos, que podem passar pelo gosto
pessoal, indicações da editora, critérios cronológicos,
temáticos (no caso de se desejar inserir o livro numa coleção
temática, por exemplo, ou de planejar editar um livro com um conjunto
de contos publicados num determinado periódico)... Poderíamos,
talvez, pensar em diversas outras razões para uma organização
de livro de contos, e ainda supor uma combinação de alguns
dos critérios acima sugeridos. Mas há que se levar em conta
critérios sobre os quais os estudos literários não
podem se debruçar: a casualidade (ou falta de critério),
a pressa, a inexistência da possibilidade de escolha (no caso de
o escritor ter escrito exatamente a quantidade de contos ou de páginas
que caberiam no projeto editorial).
Entender o processo de seleção dos contos para a composição
de um volume implica, portanto, em analisar hipóteses e possibilidades
minimamente documentadas, ou baseadas numa lógica de alguma forma
identificável. Estamos, em certa medida, num terreno que beira
o ficcional. Como num romance policial, o pesquisador precisa dispor de
algumas pistas de um “mistério” para tentar, a partir
delas, chegar a uma solução.
Embora haja poucos estudos a propósito da organização
de coletâneas de contos, encontramos duas teses que fazem referência
a obras de Machado de Assis e Guimarães Rosa, e que dão
importância a aspectos específicos da organização
das obras. Em Engenho e arte , Vera Novis analisa os contos de Tutaméia,
preocupada, dentre outros aspectos, com a sua disposição
no livro. Há, segundo ela, uma ordenação (quase)
alfabética dos contos, explícita já no índice.
E, além desta ordenação, há também
um critério temático que preside a inclusão dos contos
neste livro.
A pesquisadora sugere que a leitura de um conto deve ser feita em diálogo
com os demais contos do livro. Esta sugestão e também a
sua pressuposição de que esta é a ordem esperada
da leitura dos textos têm conseqüências. Assim, o conto
pode continuar sendo, como querem as definições de gênero,
uma unidade. Porém, ao ser disposto pelo autor (sobretudo se for
pelo próprio autor) num determinado conjunto, passa a dialogar
com outras unidades, saindo, relativamente, de um estado de fechamento.
Ainda com relação à unidade da narrativa, Vera Novis
sugere que um conto não seria bem lido ou bem analisado em si mesmo,
mas apenas no diálogo com (os) outros contos do mesmo livro.
Devemos, porém, admitir que este diálogo entre os diferentes
contos teria sido previsto pelo escritor-organizador? Parece plausível
supor que o próprio escritor não tenha se dado conta das
relações possíveis entre os contos senão no
momento da edição. Ou nem mesmo aí. Parece, também,
plausível supor que o diálogo entre os diferentes textos
possa se dar também além das fronteiras de um mesmo livro
ou de um mesmo gênero, isto é, que um romance ou conto dialogue
com um outro romance/conto/poema, ou ainda com textos não-literários.
Possivelmente até de outro autor, de outro século, escrito
em outra língua.
As diversas possibilidades de vinculação de uma obra a outra,
abertas e múltiplas, não nos parecem desmerecer a tarefa
de buscar vínculos. Pelo contrário: quer sejam previstas
e sugeridas pelo autor e/ou organizador, quer sejam criadas à revelia
deles, desde que solidamente construídas, tais relações
entre textos revelam, sugerem e/ou constroem possibilidades de leitura,
multiplicidades de leitura.
Numa linha oposta a essa ampla liberdade, Vera Novis direciona e organiza
a leitura. Sim, todos os contos se relacionam, segundo ela, mas a esta
possibilidade de muitas relações opõe-se a sugestão
de uma ordem da leitura: “A ordem, a seqüência dos contos
é importante na leitura do conjunto de Tutaméia.”
A ordem é importante, mas será essencial? Num romance, embora
o narrador possa ser machadiano e nos indicar caminhos pouco ortodoxos
(pule, volte, lembre-se, feche o livro), espera-se que a leitura seja
linear (mesmo que a narrativa não o seja): a totalidade só
será obtida ao final da leitura da última página.
Não se espera, também, que o leitor pule capítulos,
a não ser com a indicação expressa do escritor (talvez
nem assim).
O que dizer de um livro de contos ou poemas? Por mais que a ordem seja
importante, e que tal importância seja comprovada, não se
nega a possibilidade de o leitor encontrar sua própria seqüência
de leitura, motivado por diversas razões — dentre elas, pela
extensão do conto, pelo tempo disponível para a leitura,
pela indicação de um amigo ou sugestão do professor.
A despeito da ordem, o leitor de contos (ou poemas, ou crônicas)
pode ter a dimensão de totalidades mesmo sem ler o livro todo.
Assim, embora a ordem seja importante e possa ser decorrente de um projeto
do escritor, ela não é imprescindível à leitura.
Em outras palavras: a seqüência pode ser sugerida pelo autor/organizador/crítico,
mas não há segurança de que ela será seguida
pelo leitor.
Ora, mas por não haver certeza de que o plano se efetiva na leitura,
o plano deixa de ter importância? Parece-nos que não. Mas
assim como o autor pode ter elaborado uma seqüência de leitura,
o leitor pode elaborar outras. Ou, ainda, o próprio autor pode
conceber outra seqüência em edições subseqüentes.
Não se pode deixar de lado, porém, a observação
de que nem sempre é o autor o responsável pela organização
editorial de sua obra. Assim, a identificação de uma linha
de análise da obra (a partir de sua estrutura interna) pode ser
derivada de um procedimento editorial cuja autoria deve ser atribuída
a um editor, um crítico, um amigo, um herdeiro, um admirador...
Outra tese de doutorado, além da de Vera Novis, debruçou-se
sobre a questão da organização de livros de contos
como um recurso para sua leitura — A trajetória de Machado
de Assis: do Jornal das Famílias aos contos e histórias
em livro, de Sílvia Maria Azevedo .
A autora também partiu do pressuposto de que a organização
dos livros (Contos Fluminenses e Histórias da Meia-Noite) foi de
autoria do próprio escritor. E, também como Vera Novis,
utilizou tal organização como um dado relevante para a análise
das narrativas. Podemos perceber nas duas teses a tentativa de identificar,
na organização das obras (evidenciada sobretudo pelo índice),
um projeto do escritor. A tarefa de ambas teria sido, então, traduzir
a intenção do escritor, justificar a organização
das obras a partir deste projeto — lúdico? pedagógico?
editorial? literário? Tudo isso ao mesmo tempo, talvez, mas sobretudo
(nas duas teses isso parece claro) um protocolo de leitura , como se o
autor tentasse garantir que determinado percurso de leitura seria efetivado
por seus leitores. Vera Novis chega a se referir a uma seqüencialidade
que dissiparia o conceito de unidade característico do gênero
conto: “De fato as estórias formam uma só estória.
Entre algumas delas estabelece-se, inclusive, uma seqüência
espacial e temporal.”
Sílvia Azevedo também discute questões relativas
ao gênero das produções machadianas (conto e romance),
mas sua análise, diferentemente da de Vera Novis, não estabelece
relações entre os enredos das diferentes narrativas. Ela
privilegia a análise da constituição do gênero
conto na obra machadiana a partir da intensificação do recurso
à ironia. Segundo ela, os textos de Contos Fluminenses estariam
mais próximos do gênero romanesco, ao passo que os textos
de Histórias da Meia-Noite estariam mais próximos do gênero
conto:
Segundo a interpretação da pesquisadora, a intenção
do escritor teria sido sugerir a leitura dos contos na ordem em que eles
são apresentados — desconsiderando a possibilidade de o leitor
subverter tal ordem e escolher, a seu bel prazer, uma outra ordem. (Nem
Sílvia Azevedo nem Vera Novis discutem essa liberdade do leitor.)
Lobato editor de Lobato
Esta discussão feita aqui, procurando observar como alguns escritores
organizaram seus livros de contos e como esta tarefa foi analisada pelos
estudos literários, serviu (na tese da qual este texto é
apenas uma parte) de preâmbulo para a análise da organização
dos contos de Monteiro Lobato. Sobre estes livros, não poderemos
nos estender aqui, por uma questão de tempo, mas, para quem quiser
mais detalhes, fica a referência da publicação da
tese no site do Projeto Memória de Leitura — www.unicamp.br/iel/memoria.
Ao longo desta tese, tomamos como nosso objeto de estudo, além
do texto literário, os protocolos de leitura sugeridos pelos paratextos,
pela seleção de textos feita pelo escritor e pela disposição
dos textos selecionados nos livros.
Analisamos os seguintes paratextos: a) a capa do livro, importante sobretudo
na apresentação e sugestão de um sentido prévio
à leitura do texto; b) a publicidade geralmente impressa na quarta-capa
dos livros, ou ainda dentro do livro, como um dos tantos preâmbulos
ao texto; c) a quarta-capa, quando desempenha função de
apresentar o livro através de um resumo do seu conteúdo
ou através de um texto crítico; d) os prefácios de
autoria do escritor, que por vezes explicam a reunião dos textos
no livro; e) os prefácios do editor ou de um crítico, que
justificam as reedições da obra, apresentando um esboço
da fortuna crítica desta obra e de outras do escritor; f) as orelhas
(raras nos livros de contos de Lobato), que desempenham função
semelhante à dos prefácios de terceiros.
Todos esses elementos relativos à produção do livro
seriam, como sugere Chartier, decididos pelo editor, não pelo autor.
Assim, haveria também outros profissionais responsáveis,
direta ou indiretamente, pelos efeitos de leitura da obra literária.
Dentre eles, o organizador, o editor, o prefaciador, o ilustrador, o crítico
que escreve uma resenha que eventualmente despertaria interesse do leitor,
além de outros intermediários da leitura. O que nos interessou
particularmente no estudo das edições de Lobato foi a sua
dupla atuação: como escritor e como editor. E, por vezes,
como ilustrador.
Além disso, a constante e evidente instabilidade das formas através
das quais os textos lobatianos são apresentados sugere um outro
elemento que nos pareceu interessante: a necessidade de se trabalhar com
o conceito de não-definitivo. Assim, embora as edições
das Obras Completas identifiquem um momento-chave na história editorial
de uma obra e materializem uma certa organização dos textos
que se pretende definitiva, há que se levar em conta que esta organização
é mais uma. Não é a única e não é
necessariamente a melhor.
Da mesma forma que é produtiva a comparação entre
diferentes versões de um texto — com a possibilidade de se
observarem as escolhas feitas pelo seu escritor e de se formularem hipóteses
para tais escolhas —, a comparação entre diferentes
edições de um mesmo livro também enriquece a sua
leitura e permite a construção de uma história, através
da qual se evidencia a instabilidade dos elementos paratextuais, assim
como se revelara a instabilidade dos elementos textuais. A cada nova edição,
um novo conjunto de paratextos: mesmo que o texto não seja modificado,
as suas diversas apresentações dão-lhe um novo aspecto
e novas possíveis interpretações, sugeridas também
por elementos editoriais, tipográficos, extratextuais.
Se isso é verdade, a história das edições
de uma obra é um bom ponto de partida para se compreender a história
das interpretações de uma obra, a sua fortuna crítica
e sua inserção (ou não) na história literária.