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AS
QUESTÕES SOCIAIS NO GOVERNO LULA: UMA ANÁLISE CONTRASTIVA
DOS DISCURSOS DO JORNAL NACIONAL E DO JORNAL DA RECORD
Cristiane
Maria Megid - IEL/Unicamp
Esta pesquisa
foi realizada a partir dos resultados obtidos em um estudo que fizemos
entre agosto de 2003 e julho de 2004 intitulado “As questões
sociais no governo Lula: uma análise dos discursos da Folha de
S. Paulo e do O Estado de S. Paulo” (Megid, 2004). Nela averiguamos
como estes dois diários se posicionaram ideologicamente nas reportagens
de primeira página que se referiam ao governo federal e aos interesses
sociais, publicadas no período de agosto a novembro de 2003. Para
tanto, utilizamos como subsídios teóricos a Análise
do Discurso e a Semântica Histórica da Enunciação,
bem como estudos jornalísticos sobre os mecanismos de controle
da imprensa e da mídia, mesmo que feitos em outros campos teóricos.
Tendo os resultados desta pesquisa com os jornais impressos como ponto
de partida, ampliamos nosso material de pesquisa, analisando o jornalismo
na televisão. Este veículo possui um público maior
do que os jornais impressos e, portanto, é formador de opinião
de uma quantidade maior de sujeitos, além de contar com um processo
de produção de sentido envolvendo linguagens verbal e não-verbal
em movimento.
Analisamos, então, como dois dos principais telejornais nacionais
existentes hoje no Brasil, o Jornal Nacional (JN) e o Jornal da Record
(JR), se posicionam nas mesmas questões analisadas anteriormente,
ou seja, as relações entre o governo federal e a sociedade.
Partimos, primeiramente, dos estudos jornalísticos feito nas primeiras
décadas do século XX, em especial nos Estados Unidos, que
difundiram os conceitos de objetividade e imparcialidade. Foram criados
padrões para a apuração das informações
e construção dos textos. Segundo Zanchetta Júnior
(2004), nesta época e, sobretudo, neste mesmo país, ocorreu
uma reforma jornalística que muito influenciou a televisão
com os padrões da notícia objetiva e sintética, distanciando
a notícia da crítica explícita.
Porém, recentes estudos jornalísticos e lingüísticos
têm observado que estas técnicas propostas pelas escolas
norte-americanas não garantem a neutralidade das publicações.
Na verdade, o que se criou foi um mito, o mito da imparcialidade. Neste
caso, o mito nos impede de lermos uma notícia com a crítica
necessária para compreender que
entre o fato
e a versão que dele publica qualquer veículo de comunicação
de massa há a mediação de um jornalista (não
raro, de vários jornalistas), que carrega consigo toda uma formação
cultural, todo um background pessoal, eventualmente opiniões muito
firmes a respeito do próprio fato que está testemunhando,
o que o leva a ver o fato de maneira distinta de outro companheiro com
formação, background e opiniões diversas (Rossi,
1985: 10).
Paralelamente,
podemos citar um trecho do artigo de Eduardo Guimarães (2001, pp.
14-15): “o acontecimento para o jornal, aquilo que é enunciável
como notícia, não se dá por si, como evidência,
mas é constituído pela própria prática do
discurso jornalístico.
Para Lustosa (1996), a imparcialidade é um mito criado para preservar
o discurso e os interesses do próprio veículo. Valorizando
este mito, a mídia jornalística é capaz de seguir
suas tendências próprias, seja por motivos econômicos,
políticos ou ideológicos, fazendo com que esta parcialidade
transpareça a seu público como se fosse a única verdade
existente.
Além disso, como afirma L. Guimarães (2003), existe uma
receptividade característica da televisão: "De todos
os meios predominantemente visuais do jornalismo, a televisão é
o mais passivo. Para ter acesso a seu conteúdo, basta o movimento
de um dedo; até mesmo os olhos podem ficar imóveis"
(p. 65).
Do ponto de vista lingüístico, existe ainda um outro fator
que torna importante o estudo do discurso político nos telejornais.
Por diversos interesses, o que utopicamente deveria ser uma matéria
imparcial, torna-se praticamente uma propaganda na mídia jornalística.
Eni Orlandi (1996) faz menção a este assunto no trecho a
seguir:
Há,
atualmente, um silenciamento do discurso político, que desliza
para o discurso empresarial, neoliberal, em que tudo é igual (o
político, o empresarial, o jurídico, etc). Nesse sentido,
se se pode dizer que a mídia é lugar de interpretação,
ela rege a interpretação para imobilizá-la (p. 16).
Tendo em
vista estas exposições, pode-se assentar a problemática
desta pesquisa sob dois aspectos. De um lado, a importância do telejornal
nos processos de comunicação e formação da
opinião pública. Por outro, a relevância do processo
de importantes mudanças pelo qual está passando o Brasil
neste momento, provocando significativas alterações nos
rumos sociais, políticos e econômicos do país.
A partir das análises de notícias veiculadas nesses telejornais
sobre o tema, começamos a identificar as opiniões de cada
um deles em suas mais diferentes expressões sobre as quais iniciamos,
então, uma reflexão sobre como as construções
opinativas fazem parte da constituição dos telespectadores.
Materiais
e Método
Nosso material
de pesquisa consiste nas edições das primeiras semanas dos
meses de agosto a novembro de 2004. Feitas as gravações,
realizamos uma espécie de fichamento de cada edição
gravada, anotando as reportagens apresentadas e seus temas principais
para que, em seguida, pudéssemos selecionar para análise
as notícias que envolvessem como tema central a sociedade brasileira
e o governo Lula. A escolha do tema é a mesma do projeto anterior
e nos permite a análise discursiva de questões polêmicas
que têm sido levantadas desde o início do governo petista
em 2003. A seleção das notícias foi feita pela referência
das reportagens ao tema explicitamente ou através do interdiscurso
.
Assim como na primeira pesquisa, fizemos primeiramente uma observação
quantitativa dos dados obtidos, com a finalidade de observarmos a repetição
e relevância dos temas das reportagens para cada emissora.
Passamos, então, às análises qualitativas. Selecionamos
os trechos observados que têm problemas discursivos relevantes e
fizemos suas transcrições. A análise foi feita, então,
com base na transcrição dos trechos e na observação
minuciosa das imagens que os acompanham. Apresentaremos, a seguir, algumas
das análises realizadas e alguns dos resultados obtidos. Quando
necessário, faremos também referência a alguns dos
conceitos teóricos que utilizamos para nossos estudos.
Análises
quantitativas
A análise
quantitativa, por si só, não apresenta resultados significativos
para a nossa proposta de análise discursiva. Por isso, ela faz
parte de uma primeira observação dos telejornais que auxiliou-nos
em outros momentos de nossa pesquisa.
Para exemplificar, veja os quadros a seguir referentes às análises
quantitativas dos dois primeiros meses do material de pesquisa :
Uma das observações
que fizemos nestes quadros foi a diferença no número de
reportagens sobre as CPIs que acontecem neste momento (em especial a CPI
do Banestado, a CPI da Loterj e a CPI da Pirataria). No JR o tema tem
um destaque maior, com 11 matérias, enquanto o número no
JN é 5.
Quando relacionamos este dado às análises qualitativas,
vemos que muitas reportagens deste período no JR têm relação
interdiscursiva com o tema da CPI. Isto quer dizer que não necessariamente
os temas centrais da reportagem são dados, decisões ou discussões
sobre a CPI, mas sim que, em reportagens que aparentemente não
tratam sobre o assunto, Boris faz uma relação com elas explícita
ou implicitamente em seu comentário. Este é um dos principais
motivos para a diferença nestes números.
Análises
Qualitativas
Nas análises
qualitativas do material estudado, observamos diversas questões
discursivas, concentrando-nos nas características gerais dos telejornais
e em algumas reportagens selecionadas para esta etapa. Citaremos, a seguir,
dois exemplos de análises qualitativas, sendo um sobre a linguagem
não-verbal na constituição dos estúdios dos
telejornais, e outro sobre a linguagem verbal de uma das reportagens analisadas.
A linguagem
não-verbal
Analisaremos,
neste item, a composição dos estúdios dos telejornais.
Para L. Guimarães (2003), a mensagem visual é produzida
pela composição de diversos elementos que não são
lidos sincronicamente pelo telespectador, no nosso caso. São criados
diversos planos e o que determina a seqüência de leitura deles
é a ordem de apresentação dos planos (idem, pp. 68-69)
o que, geralmente, é feito pela utilização das cores
em cada um, pela sobreposição das camadas, pelo contraste
entre os elementos, pelo impacto de cada imagem, pela configuração
de cada elemento, de uma forma geral.
Citando Freud e Ivan Bystrina, L. Guimarães fala sobre a existência
de uma segunda realidade, "imaginativa, mágica, criativa,
cultural, que garante a sobrevivência do homem em aguras inevitáveis
e implacáveis do mundo da realidade biofísica (a primeira
realidade)" (L. Guimarães, 2003, p. 76). Sobre a construção
cromática desta segunda realidade, ele afirma:
nota-se que
as cores também funcionam para a superação e escape
da primeira realidade (...). Quando o meio ambiente [entendido como o
conjunto de condições sociais e naturais que estão
ao redor do homem] em que se está inserido, ou a sua representação
mental (Umwelt), tende ao monocromático, os códigos culturais
da segunda realidade são coloridos (...). E se o cromatismo do
Umwelt for totalmente saturado, os códigos culturais votar-se-ão
para a monocromia. (idem, pp. 81-82)
Seguindo
esta idéia, vemos ao fundo do estúdio do JN, no último
plano da imagem, uma estilização do globo terrestre, construída
com tons de azul que se clareiam nas faixas continentais. Esta forma de
representação pode ser entendida como os estudos de L. Guimarães
apontam, ou seja, como a representação do mundo como segunda
realidade, em oposição à primeira realidade a qual
o JN procura relatar.
Em um plano mais próximo, vemos os logotipos do telejornal ao lado
dos apresentadores. O logotipo que também abre o JN é composto
também por tons de azul e alguns detalhes em vermelho. Esta última
cor é comumente usada, além da referência à
violência ou à saúde, às lutas da esquerda
política, no Brasil, em especial, referentes ao movimento "Diretas
Já". O vermelho, portanto, pode nos remeter a este passado,
como uma tentativa de apagamento da história de relações
entre a emissora e o governo militar, fazendo com que sobressaia ao telespectador,
de forma bastante discreta, a cor utilizada na defesa da democracia, hoje
tão valorizada.
Observando o JR, vemos a predominância de cores mais escuras, o
que, seguindo as observações de L. Guimarães, poderia
estar relacionado ao horário em que o telejornal é transmitido.
Há também a estilização do globo terrestre,
tal qual feita no JN, mas utilizando as cores vermelho, laranja e cinza.
A representação do mundo neste telejornal, mais longe do
monocromático, pode, então, ser entendida como menos próxima
da segunda realidade, ou seja, menos imaginativa. Um efeito de sentido
possível, neste sentido, seria um telejornal mais próximo
do que se entende por real e menos distante do "mundo azul"
idealizado. O vermelho e o laranja, quando utilizados para a representação
do mundo e não apenas de um telejornal brasileiro, podem lembrar-nos
das guerras, da violência, dos problemas vividos pela humanidade
que ali serão noticiados.
O logotipo do JR, contendo as iniciais do telejornal, assim como o JN,
é apresentado em tons de laranja e dourado, parecendo brilhar no
fundo escuro predominante no telejornal.
A mesa em que Bonner e Fátima Bernardes apresentam o JN, mostrada
em primeiro plano, tem cores branca e prata, remetendo a um aspecto mais
clean, como hoje se diz, isto é, com efeitos de sentido de sofisticação.
Já a mesa de Boris Casoy tem o tampo bastante destacado pela cor
vermelha que pode ter diferentes efeitos de sentido, especialmente os
dois que apresentamos acima para este tom.
A linguagem
verbal
Vamos, agora,
apresentar uma das análises realizadas das reportagens que selecionamos
para nossa pesquisa.
Retomando os estudos de Authier-Revuz (1998) sobre as heterogeneidades
discursivas, uma nota transmitida pelos telejornais sobre o Grito dos
Excluídos, no dia 6 de setembro no JR, e no dia 7 de setembro no
JN, revela um posicionamento bastante importante para o nosso trabalho.
Veja a transcrição das notas:
- JN (Nota
Coberta): “Doze mil pessoas, representantes da Igreja, dos Sem-Terra
e de outros movimentos sociais se reuniram hoje na Aparecida, em São
Paulo. (início das imagens) Foi o fim da chamada “Marcha
dos Excluídos” que durou 8 dias. Em São Paulo, 4 marchas
se encontraram no local onde foi proclamada a Independência e onde
hoje está o Museu do Ipiranga”.
- JR (Nota
Simples): “Organizações sindicais, pastorais da Igreja
Católica e movimentos de trabalhadores rurais participam amanhã
em todo o país do Grito dos Excluídos. O MST faz, desde
a semana passada, novas invasões de terra para comemorar os 10
anos do grito. Já o UDR faz também manifestação
batizada de Ordem e Progresso em presidente Prudente no interior de São
Paulo. A UDR diz que vai demonstrar seu descontentamento com Incra e o
Ministério da Reforma Agrária que considera instituições
inimigas. Segundo os fazendeiros, estes órgãos do governo
estão provocando a insegurança no campo”.
O Grito dos
Excluídos , protesto realizado por milhares de pessoas que enfrentam
algum problema social, é referido pelos telejornais de forma diferente,
a começar pelo sujeito das primeiras frases dos dois noticiários.
O JN refere-se a "doze mil pessoas, representantes da Igreja, dos
sem-terra e de outros movimentos sociais", e o JR a "organizações
sindicais, pastorais da Igreja Católica e movimentos de trabalhadores
rurais". Observe que o JN se refere mais amplamente aos participantes
da manifestação, enquanto o JR especifica melhor as entidades
às quais eles pertencem.
Por um lado, o JN veicula efeitos de sentido nos quais está enfatizado
o grande número de pessoas que participaram do ato, o que também
é feito pelas imagens mostradas, sempre com muitas pessoas carregando
bandeiras, em sua maioria com a cor vermelha, caracterizando, assim, o
protesto. Por outro lado, o JR produz efeitos de maior legitimidade para
os movimentos que participam do ato. Isso pode ser visto nas oposições
entre "representantes da Igreja" e "pastorais da Igreja
Católica", e entre "sem-terra" e "movimento
dos trabalhadores rurais".
Complementando estes efeitos de sentido, o JN refere-se ao ato apresentando
uma heterogeneidade mostrada, ou uma não-coincidência do
discurso com ele mesmo, utilizando os estudos de Authier-Revuz (1998).
Dizer, portanto, que o ato é “chamado” de Marcha dos
Excluídos, pressupõe-se que ele poderia não ser chamado
desta forma, assim como o jornal não assume a autoria deste nome.
Já o JR chama o ato de “Grito dos Excluídos”,
mas não mostra qualquer heterogeneidade neste relato. Por outro
lado, o telejornal distancia-se do movimento organizado pelos ruralistas
quando mostra a heterogeneidade em “manifestação batizada
de Ordem e Progresso”. Esta última segue o mesmo processo
da heterogeneidade vista no JN, mas coloca-se a não-coincidência
sobre o movimento dos ruralistas, e não sobre o movimento dos excluídos.
A escolha lexical destes trechos também nos é muito importante.
A palavra "grito" traz a imagem daquele que fala, mas não
é ouvido. E grita por querer falar ou precisar ser ouvido. A palavra
"marcha" traz efeitos de sentido bastante diferentes. Remete-nos
interdiscursivamente a um discurso militar, se lembrarmos da conhecida
"Marcha da família com Deus pela liberdade", ocorrida
durante e a favor do Regime Militar no Brasil, assim como a canção
infantil que diz "Marcha soldado, cabeça de papel. Quem não
marchar direito vai preso pro quartel". Estes são acontecimentos
muito presentes no discurso do brasileiro.
Ao mesmo tempo, realizamos uma busca no site Google (www.google.com.br).
Para a expressão "Marcha dos Excluídos" encontramos
aproximadamente 77 páginas, enquanto, para "Grito dos Excluídos",
o site apresentou aproximadamente 8570 páginas, sendo que os dois
termos são utilizados para designar o mesmo acontecimento. Existe,
inclusive, um site para o "Grito do Excluídos", o gritodosexcluídos.com.br.
Isso nos faz concluir que o JN escolheu uma expressão pouco utilizada
para se referir a um movimento muito importante de oposição
ao governo. O JR traz outros efeitos de sentido quando opta por utilizar
o termo mais comum, fazendo com que o movimento também seja tido
como mais conhecido pelos telespectadores.
Não queremos, com isso, dizer que as palavras têm significados,
nelas mesmas, diferentes. Antes, temos, como diz Orlandi (1999, p. 43)
que “as palavras (...) derivam seus sentidos das formações
discursivas em que se inscrevem. As formações discursivas,
por sua vez, representam no discurso as formações ideológicas.
Desse modo, os sentidos sempre são determinados ideologicamente”.
No caso específico que relatamos, podemos dizer que as escolhas
lexicais feitas pelos dois jornais nos remetem a formações
discursivas diferentes, uma condizente com um discurso enraizado na ideologia
militar, e outro que tem como base o protesto.
Outra escolha lexical do JR nos chama a atenção. Além
de se referir ao movimento da UDR através de um discurso indireto,
utiliza a palavra "batizada" para realizar a modalização.
A modalização autonímica é um termo utilizado
por Authier-Revuz (1998) e definido pela autora como uma “modalidade
de representação reflexiva, opacificante, do dizer –
em relação a fenômenos diversamente ‘vizinhos’”
(p. 18). Temos aqui uma heterogeneidade constitutiva do dizer, cuja modalização
é feita de forma pouco explícita, através da entonação
do locutor e de um discurso indireto livre, utilizando classificações
da própria autora. Mas Authier-Revuz afirma que a modalização
também faz parte da determinação do dizer relatado.
Assim, e atrelando estes conceitos aos nossos estudos sobre as escolhas
lexicais, a referência ao batismo traz como efeito de sentido o
discurso religioso, caracteristicamente do discurso católico, já
que é nesta religião que as crianças recebem um "nome
de batismo". A utilização deste léxico, porém,
está modalizando um discurso que não coincide com o discurso
do JR. Lembramos aqui do histórico da Rede Record, da relação
da emissora com a Igreja Universal que, por sua vez, tem uma longa história
de oposição à Igreja Católica. Seguindo estes
mesmos efeitos de sentido, voltamos à referência aos membros
participantes do ato no início do discurso dos telejornais, no
qual observamos um certo distanciamento da Igreja Católica feito
pelo JR. Já o JN não especifica a "igreja" à
qual se refere, pressupondo que o telespectador faça automaticamente
a associação entre "igreja" e Igreja Católica.
Paralelamente a estas observações, mas seguindo as mesmas
impressões vistas, no dia 7 de setembro, nos relatos das comemorações
do dia da Independência do Brasil, o JR apresentou a cobertura da
festa em Brasília e do Grito dos Excluídos um seguido do
outro. O JN fez a cobertura dos dois eventos, mas os apresentou separadamente.
A primeira reportagem do JN é referente às comemorações
em Brasília. Depois dela, são apresentadas 5 reportagens,
entre elas 2 momentos de propagandas, para então ser transmitida
uma nota sobre o Grito dos Excluídos.
A aproximação dos assuntos no JR ressalta a intertextualidade
entre eles, tendo como possível efeito de sentido o aumento da
crítica ao governo pronunciada pelo Grito dos Excluídos
e, conseqüentemente, ofuscando o brilho da comemoração
em Brasília. Este efeito de sentido é retomado por Boris
Casoy no comentário final.
Já no JN, o distanciamento das duas reportagens distancia também
a relação intertextual entre elas. Ao contrário do
JR, então, o a comemoração do presidente tem mais
força e o Grito dos Excluídos tem menos fundamento, ou seja,
o motivo pelo qual ele acontece no dia 7 de setembro não é
evidenciado nem explicitamente nem intertextualmente.
Conclusão
A partir
das análises realizadas ao longo desta pesquisa, traçamos
algumas conclusões que apresentaremos aqui resumidamente.
O material de pesquisa que escolhemos foi bastante extenso, mas permitiu-nos
a observação de questões muito importantes que não
observaríamos em um período mais curto de gravação
dos telejornais, a exemplo da mudança de cenário do JR.
Começando, então, pelas características da linguagem
não-verbal, levantamos alguns mitos presentes no imaginário
social que produzem efeitos de sentido de imparcialidade, um efeito de
real sobre a imagem da linguagem não-verbal. Com nossas análises,
observamos que, desde a abertura e o cenário dos telejornais, o
não-verbal é parte fundamental da construção
dos seus discursos, sendo que o JN mobiliza efeitos de sentido procurando
produzir um efeito de real, de imparcialidade do seu discurso, enquanto
o JR procura mobilizar efeitos de sentido que construam sua pessoalidade
e perfil analítico e crítico.
Além disso, o JN constrói uma imagem mais otimista do mundo
não só nas reportagens, mas também na sua estrutura.
A característica dos apresentadores traz para o telejornal a imagem
da família que eles constituem, criando este interdiscurso com
fronteiras muito opacas: quais os limites entre o lugar social do “bom
pai” e da “boa mãe” – segundo as imagens
constituídas pela mídia que divulga a vida das celebridades
– e o lugar social do jornalista no JN? Da mesma forma, as cores
do cenário, preponderantemente tonalidades de azul, que delineiam
a estilização da representação do mundo, produzindo,
como vimos, efeitos de uma idealização de um mundo melhor,
um “mundo azul”.
Ao contrário, o Boris Casoy constitui a busca de uma pessoalidade
dentro do JR, trazendo sua história no telejornalismo brasileiro
caracterizada pela criticidade e discursos explicitamente opinativo para
o JR. As cores escolhidas para o cenário são mais escuras
e participam com freqüência da constituição de
discursos de mobilização e protesto em todo o mundo.
Entretanto, observamos, além das características do cenário
apresentadas neste texto, que o JR realizou algumas mudanças no
seu estúdio, aproximando os elementos utilizados daqueles que compõem
o estúdio do JN. A observação das mudanças
no cenário do JR são bastante interessantes no sentido de
mostrarem a busca pelo chamado Padrão Globo de Qualidade e, ao
mesmo tempo, legitimando este padrão. Assim, visto que grande parte
dos telespectadores está habituada à construção
do cenário do JN, o JR evita o estranhamento na linguagem não-verbal
– apesar de ainda existirem diferenças significativas entre
os dois cenários – para focar a atenção do
telespectador no diferente, ou seja¸ nas críticas e análises
que o telejornal divulga.
Assim como na construção não-verbal, o JN busca o
otimismo na construção verbal de suas notícias. Vimos
isto em praticamente todas as reportagens analisadas, mais especificamente
nos discursos relatados, escolhas lexicais, silenciamentos, interdiscursos
e formações imaginárias.
Esta mesma característica foi observada na estrutura de apresentação
das reportagens. O JN freqüentemente termina suas edições
com notícias de esporte, variedades e cultura, e raramente com
notícias que envolvam política, economia ou outras questões
que envolvam perspectivas ruins para o país ou para o mundo.
Por outro lado, o JR constrói reportagens bastante críticas,
utilizando diversos interdiscursos e intertextualidades que levam à
crítica dos temas analisados. Estas relações são
mais evidentes nos comentários de Boris Casoy, mas também
estão presentes em outras partes do telejornal.
Estas características nos levam a importantes conclusões.
O JN aproxima seu discurso da vida cotidiana do telespectador, através,
por exemplo, dos interdiscursos com a família, as conquistas e
desafios diários, apresentando histórias que retratam a
vida de muitos de seus telespectadores, entre outros. Da mesma forma,
a linguagem do telejornal se aproxima mais da linguagem cotidiana. Assim,
a crítica ao governo ou à sociedade – no caso que
aqui estudamos – se aproxima da auto-crítica. Por outro lado,
o JR distancia seu discurso do discurso cotidiano, explicitando um deslocamento.
O próprio Boris Casoy evidencia este deslocamento, o que facilita
a visão crítica enfatizada pelo telejornal. No JN, esta
crítica é mais difícil de ser feita, visto que o
telespectador não é levado a produzir este deslocamento,
tendo que fazê-lo por outras formas, através de sua formação.
Tendo em vista estas e outras considerações, vemos claramente
que os telejornais não são imparciais. O JR não se
propõe como tal e, através das comparações
com ele, vimos que o JN procura criar uma imagem de imparcialidade de
si próprio para o telespectador através de diversos elementos.
Ou seja, há aí um apagamento dos processos de produção
do discurso jornalístico, através dos quais agem inúmeros
mecanismos de controle. É certo que todo discurso dispõe
destes mecanismos, mas o apagamento deles nas empresas jornalísticas
faz com que as notícias sejam veiculadas sob o rótulo do
real, da verdade única e indiscutível, o que inibe as críticas
e reflexões que devem ser feitas pelos telespectadores para a formação
de sua opinião.
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