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FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO EM MATO GROSSO
Franceli Aparecida da Silva Mello - Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT Este trabalho é parte de uma pesquisa mais ampla
que tem por objetivo traçar um percurso histórico das práticas
de leitura em Mato Grosso no século XX. Além da pesquisa
bibliográfica, foram realizadas entrevistas com sujeitos reconhecidamente
leitores pela comunidade local (inicialmente foram entrevistados membros
da Academia Mato-grossense de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico de Mato Grosso). Para o presente trabalho foram examinados
os depoimentos de sujeitos que nasceram nas três primeiras décadas
do século XX, com exceção de um deles, que nasceu
no final do século XIX. São, portanto, sujeitos que tiveram
a sua formação de leitores num ambiente tacanho, isolado
dos grandes centros de produção de cultura letrada. Não
obstante, a bibliografia referente ao período registra um esforço
em se criar no Estado um ambiente cultural propício ao desenvolvimento
de atividades relacionadas à leitura. Assim, nas primeiras décadas
do século XX surgem em Mato Grosso vários grêmios
e periódicos literários, além de uma tentativa, na
década de 1920, de revitalizar o teatro em Cuiabá. Da parte
do governo estadual, fundaram-se importantes estabelecimentos de ensino
como o Palácio da Instrução, a Escola Normal, a Escola
Modelo e, a partir de 1910, implantaram-se os primeiros grupos escolares,
bem como a reforma que modernizou o ensino primário. Entretanto,
essas ações beneficiaram apenas uma pequena parte da população
concentrada na capital e em algumas poucas cidades do interior. À
maioria dos mato-grossenses era vetado o acesso às instituições
culturais e a material de leitura, este, adquirido através de viagens,
encomendas ou na única biblioteca pública, inaugurada em
1912 com mil volumes doados pela população cuiabana. Eu acho esse negócio de gostar de leitura... é uma coisa que a gente traz do berço, sabe? ... Eu tirei curso primário em Santo Antônio, compreendeu? Então, era interessante que ainda era 1920 e poucos e ainda era na base da régua. Se ensinava matemática, leitura, na base da régua... ( entrevistado nascido em 1915) Ele [o professor de Português] fazia uma pergunta
para dois, um aluno não sabia, fazia para o outro, o outro respondia,
ele dava a palmatória, pá. Cansei de levar bolo e dar bolo,
era na base da palmatória. (entrevistado nascido em 1919) Meu pai era um homem muito ocupado. Saía de casa quando eu ainda estava dormindo e chegava quando eu já tinha ido me deitar. Mas todo dia ele deixava uma carta debaixo da porta do meu quarto, que eu tinha que responder no dia seguinte. (entrevistada nascida em 1898) Então... meu pai... principalmente quando eu estava doente, a noite que eu tinha febre, não sei o quê, então ele botava uma esteira no chão e apanhava o Álbum Gráfico e eu ia folheando aquilo e olhando tudo e lendo os títulos maiores e tal. (entrevistado nascido em 1921) À semelhança de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir _ que ao narrarem sua iniciação como leitores relacionam-na ao prazer de pertencerem a uma família unida (a relação de Sartre com a mãe e com o avô era intensamente mediada pela leitura; a família de Simone de Beauvoir reunia-se no escritório para leituras compartilhadas em voz alta ou silenciosas) _ também para nossos entrevistados a leitura passa de uma atividade introspectiva a uma ocasião para estreitar os vínculos familiares. E, em alguns casos, ultrapassando a intimidade do lar, ela surge como uma ocasião para oportunizar o convívio social: [Cuiabá] ficou uma sociedade culta, uma sociedade que lia muito, uma sociedade que fazia festas maravilhosas, tertúlias magníficas, eu estou falando da década de 30, 40 [...] aonde eu assistia na casa Barão de Melgaço um programa mensal que se chamava Violeta Falada, Violeta era o nome de uma revista da qual minha mãe era diretora e, mês a mês, ou todos os meses se reuniam, e lá havia dedilhar de pianos, declamações de poesias e palestras de homens ilustres, como José Barnabé de Mesquita, Gervásio Leite, Otávio Cunha, Filogônio Corrêa e tantos outros beletristas, homens que cultivavam bem a língua e que demonstravam que eram homens de leitura. (entrevistado nascido em 1930) No depoimento acima pode-se verificar, além da
prática da leitura como pretexto para estabelecer ou fortalecer
vínculos sociais, o apreço do público literário
cuiabano pela modalidade oral de aquisição de leitura. Um
grande índice de analfabetismo explica este gosto entre a população
em geral, mas não entre os chamados “homens de letras”,
o que nos leva a pensar na prática da leitura até a primeira
metade do século passado em Mato Grosso como um acontecimento social,
uma festa, em que se apresentavam não apenas os textos, mas as
habilidades oratórias de alguns leitores. Primeiro eu saía, eu gostei sempre de escutar histórias, né? E tinha umas fazedoras de renda, de renda não, de rede, naquele tear elas ficavam sentadas. Eu preparava meu dever de escola, isso quando eu já estava na escola, nos primeiros anos. Aí, 3 horas, eu me mandava para a vizinhança Tinha 3 vendedoras, 3 fazedoras de rede, de tear. Elas sentavam, aí eu ia cutucar prá contar uma história, mais outra, mais outra. Eu sempre gostei. Dentre elas havia uma preferência por uma narradora chamada Samarilzé, cuja presença era requisitada por ocasião das doenças, às vezes fingidas, da entrevistada: .... fazia uma fita danada, qualquer resfriadinho era
pretexto para chamar Samarilzé, chamá-la pra contar história. Observe-se que é fora do ambiente escolar, depois
de fazer a tarefa, que se dá o encontro prazeroso com o texto.
Prazer este que às vezes implicava numa pequena burla, o que talvez
o intensificasse. Então eu comecei pelo primeiro livro com o Felisberto de Carvalho, né? A primeira lição era um camarada com um fio assim, uma pena amarrada na ponta, brincando com um gato, todo ilustrado, né? (entrevistado nascido em 1920) Entre os poetas que marcaram a infância desta geração
de leitores, Olavo Bilac é o mais citado, muito provavelmente por
figurar obrigatoriamente nas antologias escolares da época e por
seu livro Poesias infantis ter sido comprado pelo governo e distribuído
às escolas de Mato Grosso em 1925. No jornal funcionavam os melhores cérebros de Guiratinga,
tinha uma advogada que escrevia periodicamente, tinha um senhor que também
escrevia bem, não é? Nesse tempo eu aprendi uma coisa muito
bonita: morreu um camarada num desastre de carro de boi, o carro de boi
passou por cima e o matou, e o cronista dizia: “Causou profunda
consternação nessa cidade”, mas isso é lindo
demais, quando li aquele negócio “consternação”,
guardei até hoje aquela história. É natural que este pequeno tipógrafo tenha
se tornado grande poeta e escritor quando adulto. Teria sido o encanto
pela materialidade da palavra o que despertou em outros tipógrafos,
como Manuel Antonio de Almeida e Machado de Assis, o gosto pela literatura? Outros, ainda, descobriram a leitura literária bem mais tarde: ... morando no Rio, na época de estudante, como eu não tinha carro, era bonde e trabalhava muito distante, eu lia dois ou três de manhã e dois jornais à tarde, cinco jornais para ler, essa é minha formação, agora, só quem eu lia: Barbosa de Lima Sobrinho, Carlos Drummond de Andrade, Adalgisa nery, Afrânio Peixoto... (entrevistado nascido em 1936) Quando eu estudei, quando eu li demais mesmo, que eu gostei da leitura, foi já no Direito, curso superior, aí sim, eu peguei... compreendeu? mania de ler. Devorei a literatura nossa, porque a gente aprendendo a literatura você sabe escolher os livros bons, não é? Os clássicos, tanto da literatura nacional quanto a universal, você escolhe os bons livros e aí vai tomando gosto da leitura. É isso que me parece que me valeu muito, porque sabe que vindo de Santo Antonio, não é? Se eu não tivesse essa leitura que eu... esse prazer de devorar livros que eu tive, aí a minha mentalidade estava assim, né? [faz gesto com a mão indicando pequena] (entrevistado nascido em 1915) Aqui é importante esclarecer que o meio social
de origem deste último entrevistado é diferente dos anteriores.
Ele vem de uma família com baixo nível de instrução
e de uma comunidade (Santo Antonio) onde as práticas culturais
eram muito limitadas em relação à cultura letrada;
portanto, para que se tornasse um leitor literário, teve que romper
com seu meio de origem, não só mudando-se para uma cidade
grande, como assimilando outro sistema de referências culturais.
Neste caso, como afirma Pompugnac (1997:41) “O ato de ler deixa
de ser um simples fenômeno de reconhecimento, de confirmação
cultural e se torna um esforço de separação do universo
cultural da comunidade de origem.” Bibliografia: BOSI, E. Memória e sociedade. São Paulo:
T. A. Queirós, 1981. |
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