Leila Medeiros de Menezes – Professora Assistente
Licenciada em Letras e Mestre em História Política - Universidade
do Estado do Rio de Janeiro
Vivemos em um momento no qual os avanços tecnológicos
invadem o imaginário infantil com propostas virtuais que roubam
da criança o verdadeiro prazer de viver livre e desimpedida a alegria
do descobrir-descobrindo-se. O momento exige de nós, professores
e professoras grandes reflexões e indignações a respeito
do verdadeiro sentido de infância. Exclusões, exploração
do trabalho infantil, os direitos inalienáveis das nossas crianças
são questões que precisam entrar na pauta das discussões,
de forma séria e comprometida, por toda a sociedade brasileira,
em especial por nós, educadores(as).
Onde tem ficado hoje em dia o prazer do ler, do brincar, na vida de uma
criança, principalmente na de uma criança que tão
cedo é expurgada da luta por todos os seus direitos?
É urgente que tenhamos a clareza de que a leitura é o passaporte
indispensável e fundamental no fazer-se um cidadão pleno,
pois só através dela nos apropriamos dos bens sócio-culturais
historicamente construídos pela sociedade.
Resgatar a dimensão interior das nossas crianças é
urgente e necessário. Robotizar o que há de melhor em cada
uma delas seria transformar o viver em um fazer pontuado de tédio.
Henriqueta Lisboa nos diz que “é através da imaginação
que se atinge, muitas vezes, a etapa da lucidez. Assim, dar asas à
imaginação não é fechar os olhos a verdades
patentes, mas abri-los para o mundo subjetivo”.
A essência do ser criança, portanto, está justamente
em fazer do “faz-de-conta” uma “verdade”; o que
nada mais é do que se apropriar da realidade para interpretá-la
e vivê-la intensamente, transformando-a, a partir da criação
de mundos e de personagens. É prazer. É fazer. É
brincar. É sentir. É tornar-se pessoa. É pura poesia,
essa emoção estética interior.
O(a) leitor(a) ao identificar-se com os destinos das personagens instaura
o jogo de tensões de seus medos e de suas coragens; de suas esperanças
e de seus desafios, de suas buscas e de suas descobertas celebrando, assim,
um acordo ficcional com o autor. A comunicação leitor-texto
precisa acontecer de “coração-a-coração”,
sem intermediários desviantes. É justamente aí que
se produz o “prazer do texto” (expressão tão
feliz de Roland Barthes) e que se amplia a nossa dimensão interior.
Descobrimos, então, a “poesia inexplicável da vida”
(Carlos Drummond de Andrade).
É muito gratificante estarmos aqui, em um encontro que tem como
matéria-prima a leitura. É muito bom estarmos coletivamente
discutindo leituras e leitores; escrituras e escritores; produções
e produtos; significações e significados, trocando muitas
experiências e emoções, descobrindo, ampliando e aprofundando
o “etecétera” do nosso fazer.
Falar de leitura é falar de uma relação íntima,
muito particular, de descobertas e revelações; em especial,
é falar de prazer. Discutir sobre a leitura é caminhar por
caminhos desconhecidos que se vão tecendo de forma solidária,
coletivamente ou solitariamente, na trama de confidências com os
nossos “modos de ler”, na trama dos sentidos que descobrimos
e imprimimos nos textos, incluindo e (re)direcionando “vias de acesso”,
até a total apropriação do texto.
Apropriarmo-nos de um texto, muitas vezes, escapa-nos ao controle ou às
previsões significativas. O imprevisto quando acontece, leva-nos
a seguir pistas que acabam por nos submeter a desvios semânticos,
tornando o imprevisto pragmaticamente notável.
Acreditando que a leitura oferece ao leitor, mesmo ao mais inexperiente,
um caminho de possibilidades múltiplas de buscas e descobertas,
colocando-o frente-a-frente com suas próprias experiências
de vida ou com o conhecimento de outras histórias, venho, há
vinte e três anos, desenvolvendo no Clube de Leitura Paula Saldanha
do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira,
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, um trabalho onde eu possa
dar conta dessa multiplicidade de leituras possíveis, trançando
histórias, tecendo caminhos de prazer junto com os(as) alunos(as),
procurando alfabetizar o olhar de cada um(a) deles(as).
Gostaria de iniciar colocando em pauta algumas indagações:
qual seria a significação de um Clube de Leituras nas série
iniciais do Ensino Fundamental? Qual seria a importância ou a significação
de se desenvolver um trabalho com as histórias de leituras de jovens
leitores e escritores? Qual seria a importância de um trabalho voltado
para a alfabetização do olhar?
Acredito que possamos responder a estas indagações situando
o ler e o escrever como início, o meio e o fim de um processo de
troca, de participação e de intervenção no
mundo. Trabalhar para que cada aluno(a) se torne leitor(a)-escritor(a)
competente deveria ser o objetivo maior da escola; assim, cada educando(a)
passaria de mero(a) consumidor(a) a produtor(a), assumindo a autoria do
seu fazer como um ator ou uma atriz do político. O regime de trocas
sucessivas com o mundo exterior estaria estabelecido.
Bem sabemos que ser leitor(a) é ter um caminho absolutamente infinito
de descobertas e de compreensão do mundo e que pela escrita saímos
da platéia para entrarmos nos bastidores. Fazendo-nos leitores(as)-escritores(as)
começamos a esbarrar nos mistérios que as palavras escondem.
Descobrimos a (im)potência do dizer: ora as palavras não
alcançam o que sentimos; ora não temos palavras para penetrar
no que sentimos.
Aprendemos, então, algo fundamental e que só nos chega por
via da experiência: nossas relações com as coisas
se dão através das palavras e estas nascem das nossas relações
com as coisas e com as pessoas. São infinitas e insuspeitadas as
possibilidades das palavras, percepção que deriva do ato
de manipular a linguagem com competência. Esta percepção
jamais pode ser alcançada senão pela busca da intimidade
com a linguagem. Não há nada que substitua esse contato
íntimo.
Desvendar palavras, examinar-lhe as entranhas, as dobras, os cheiros,
os gostos, o colorido e suas nuances. Analisar suas faces, seu rosto irônico,
brejeiro, alegre, triste, esperançoso... é uma aventura
fascinante e fundamental para que cada criança se desenvolva de
maneira plena.
Cabe aqui ilustrar com o texto de uma ex-aluna, hoje médica, escrito
por ocasião da comemoração dos quinze anos do Clube
de Leituras, no ano de 1997. Ele, sem dúvida, traduz (penso eu)
o que aquele espaço vem significando para tantos alunos que por
ele passam:
O Clube de Leituras foi um sonho que nós das turmas 311 e 312 de
1982 realizamos junto com a professora Leila. Ele foi, sem dúvida,
o maior marco dos nossos quatro anos de primário no Colégio
de Aplicação. O Clube era o nosso “cantinho”;
era o lugar onde nós podíamos dar asas a nossa imaginação
criando nossos textos como autores, cantando, representando e sobretudo
lendo e discutindo diversos livros e outros textos. (...) Hoje, fazendo
uma análise daquela nossa experiência, chego a conclusão
de que o fato de ter tido um Clube de Leitura no meu primário me
fez diferente daqueles que não tiveram essa oportunidade, pois
ele me fez crescer como pessoa, ter um outro olhar a respeito de tudo
o que me cerca.
As palavras da ex-aluna Gisele comprovam o que o escritor
Ziraldo costuma declarar: “a leitura deveria ser considerada o nosso
sexto sentido vital”, posicionamento ratificado no texto (sempre
atual) de Luiz Antonio Aguiar, publicado no Jornal do Brasil, no ano de
1994, onde o autor afirma que leitura é um procedimento de formação,
não de educação, que não pode estar sujeito
a cobranças. É a matéria-prima para criar mundos
para si e que se trata de uma “aventura que não estará
refletida no boletim escolar, mas no reconhecimento do que se ganhou,
do que se aproveitou e se ampliou na existência” . Leitura
é um ato de intimidade e de libertação.
“Como se fora brincadeira de roda” , assumindo nossas Rodas
de Leitura como espaços privilegiados no cotidiano da sala de aula,
tenho promovido nos nossos encontros a circulação de saberes
e fazeres, ousando caminhar por tantos “bosques da ficção”
, por muitos “lugares de memória” de forma prazerosa,
produtiva e significativa. No nosso processo de alfabetização
do olhar temos feito grandes descobertas. Olhando e vendo. Vendo e sentindo.
Sentindo e vivendo. Vivendo e (re)criando. (Re)criando e (re)significando.
Temos lembrado muitas lembranças, (re)descobrindo nossa identidade
individual e coletiva, revirando o “baú” das nossas
histórias e da História do nosso País.
Nas trocas que estabelecemos no nosso cotidiano, as crianças sempre
surpreendem com preocupações que, pensava, jamais rodassem
em suas cabecinhas. Com o aprofundamento das nossas discussões
não pretendo, de forma alguma, “abafar” a criança
para que ela amadureça mais rápido, mas de oferecer-lhe
a oportunidade e as condições necessárias de dizer,
a seu modo, a que veio, o que percebe e sente, o que a preocupa e como
pode realizar intervenções.
Paulinho da Viola, em uma das suas composições, declara
que “as coisas estão no mundo / só que preciso [precisamos]
aprender” . Por sentirmos essa necessidade, por vivermos no nosso
dia-a-dia sensíveis transformações e pelo desejo
de lembrarmos lembranças é que muito do nosso trabalho se
desenvolve para além dos muros do Colégio.
Assumindo olhos de ver e de sentir, realizamos nossas Expedições
(trabalhos de campo). Procuramos ler a História através
das marcas de tempo deixadas nas ações e relações
das pessoas, nos documentos e monumentos, nos equipamentos urbanos, na
arquitetura das edificações, nas tradições,
usos e costumes, nas manifestações culturais, na paisagem
e no desenho de algumas cidades do Estado do Rio de Janeiro que nos disponibilizam
tal potencial; a exemplo podemos citar as seguintes cidades: Rio de Janeiro,
Vassouras e Paraty. Estamos, assim, lendo as histórias contidas
nos cantos e recantos de cada uma das cidades exploradas nas Expedições,
conhecendo-as, vivendo-as, respeitando-as com todo o seu potencial histórico
que compõe nossa identidade coletiva, ampliando, assim, o acervo
individual de cada criança envolvida no processo de alfabetização
do olhar.
As possibilidades múltiplas que a(s) leitura(s) nos oferece(m)
auxiliam-nos a tecer, ponto a ponto, o “fio da existência”,
dando-nos a verdadeira dimensão do estarmos vivos(as) fazendo Educação.
Gostaria de finalizar minha fala com o pedido de Drummond:
O que eu pediria à escola, se não me faltassem luzes pedagógica,
era considerar a poesia como primeira visão direta das coisas,
e depois como veículo de informação prática
e teórica, preservando em cada aluno o fundo mágico, lúdico,
intuitivo e criativo, que se identifica basicamente com a sensibilidade
poética.
Com a beleza de ser uma eterna aprendiz (para não esquecer Gonzaguinha),
agradeço a oportunidade desse momento de troca, de crescimento,
da descoberta de novas aquisições e do estabelecimento de
novas inquietações.