Ana Maria da Costa Santos Menin
O texto ora apresentado para esta comunicação
é resultado de um trabalho integrado de pesquisa o qual pretende
complementar e ampliar o tema de minha Tese de Doutorado sobre o escritor
dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), o “abrasileiramento”
de um de seus contos mais conhecidos “O Patinho Feio” e sua
influência na constituição da história da literatura
infantil brasileira.
Tratar da literatura infantil demanda reflexões relativas a: 1º)
quem produz os textos tanto para crianças quanto para adultos;
2º) um aspecto de ordem teórico-metodológica: os textos
determinam o tipo de análise ou cria-se um modelo de análise
segundo o qual todos os textos devem ser analisados? 3º) literatura
infantil/juvenil/adulta brasileira ter passado a constituir-se, nas últimas
décadas, tema de pesquisa em outras áreas como a Psicologia,
e mais recentemente a Biblioteconomia, além da Pedagogia e dos
Estudos Literários.
No âmbito dessas reflexões, é necessário também
abordar o próprio conceito de literatura infantil e, em decorrência,
os conceitos nele subsumidos e inter-relacionados: autor, texto, leitor,
comparado ao que se conceitua como literatura para adultos.
Em relação à literatura infantil a grande polêmica
do gênero em questão diz respeito ao adjetivo “infantil”,
que define o público a que essa literatura se destina. O adjetivo
“infantil”, ao mesmo tempo em que restringe propicia ao gênero
a oportunidade de conquistar a maioridade. Ser “infantil”
não deve e não pode fazer com que o gênero perca seu
estatuto de arte, não pode infantilizá-lo, nem permitir
que se lhe atribua caráter distanciado e inócuo no imaginário
da criança.
Entre os elementos constitutivos do texto, ressalto, para
efeito desta pesquisa, o criador ? escritor ? e o receptor ? leitor ?.
Se o primeiro não sabe quem será o leitor de seu texto,
hipoteticamente conceberá um leitor ideal para com ele dialogar.
Ao contrário, o leitor, em princípio, estabelece vínculos
entre o texto escolhido, sua experiência literária e o horizonte
de expectativas em torno desse texto, firmado por meio do diálogo
com outros textos.
Com relação à literatura infantil, observa-se a tendência
de predominância do leitor elemento definidor do próprio
gênero. A experiência literária e a linguagem materializada
em objeto artístico literário permitem reflexões
como esta de Meireles ( 1951 ) sobre o gênero literatura infantil:
Ah! tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma criança
livremente descobrir, pelo qual se encantou, e, sem figuras, sem extravagâncias,
esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... tu, sim, és um
livro infantil, e o teu prestígio será, na verdade, imortal.
( p. 31 )
Meireles, Lobato e H. C. Andersen, entendiam que o livro
de literatura infantil deveria ser “adotado” antes pela criança.
H. C. Andersen habitou-se a ler seus contos para grupos de crianças,
ouvindo atentamente seus comentários o que, inúmeras vezes,
resultou em modificações no texto. Lobato enviava suas histórias
para serem lidas e criticadas e/ou apreciadas pelo filho de Rangel.
O livro de literatura infantil, afirmava Lobato (1959 )
Tem de ser escrito ultra direto, sem nenhum granulo de
literatura. A coisa tem de ser narrativa a galope, sem nenhum enfeite
literário. O enfeite literário agrada aos oficiais do mesmo
ofício, aos que compreendem a Belleza literária. Mas o que
é beleza literária para nós é maçada
e incompreensibilidade para o cérebro ainda não envenenado
das crianças. ( p. 371-2 )
Evidentemente,
o material utilizado pelo escritor de livros infantis é a linguagem,
que é o mediador entre a criança e o mundo, de modo que,
propiciando, através da leitura, um alargamento do domínio
lingüístico, a literatura infantil preencherá uma função
de conhecimento: ‘o ler relaciona-se como o desenvolvimento lingüístico
da criança, com a formação da compreensão
do fictício, com a função específica da fantasia
infantil, com a credulidade na história e a aquisição
de saber ‘ (ZILBERMAN E CADERMATORI, 1987, p.13 )
Particularmente, no caso de H. C. Andersen, sua genialidade
marcou-se por não ter receio de enfrentar esses problemas “congênitos”
da literatura infantil. Seus contos oferecem à criança a
possibilidade de conviver com os dois mundos: o real e o imaginário.
Seus contos não demarcaram os limites de suposta superioridade
do escritor em relação à suposta inferioridade do
leitor. H. C. Andersen acreditou na capacidade interpretativa da criança,
criando, pois, um elo de cumplicidade entre o autor e o leitor, por meio
de contos, que até hoje, são lidos e apreciados por crianças
e adultos do mundo inteiro. Considerando, ao mesmo tempo, a efetiva participação
do adulto, com leituras e análises mais profundas a partir de outras
experiências de leitura e de mundo.
Nessa produção de contista, H. C. Andersen insere-se em
um universo literário marcado por um gênero específico
e particular: o conto.
No âmbito desta discussão delineia-se a vida do escritor
dinamarquês H. C. Andersen e a pré-história de “O
patinho feio”, no Brasil.
Em 1844, H. C. Andersen lançou na Dinamarca Den grimme Aelling.
Dessa data para cá, iniciou-se uma trajetória do conto que
rompeu com os limites de um país, de uma cultura, de uma língua.
O caminho percorrido por esse conto, para chegar até nós,
incluiu Alemanha, Inglaterra, França e Portugal, pois, H. C. Andersen
mantinha estreita relação com editores nesses países,
os quais aguardavam ansiosamente o recebimento de novos contos do escritor.
Vindas de Portugal sob a forma de tradução, chegaram ao
Brasil, no final do século passado, as primeiras coletâneas
de H. C. Andersen em língua portuguesa. A primeira, pela Livraria
Editora de Mattos Moreira, Lisboa, em 1879, com o título Contos
de Andersen. A segunda, pela D. Corazzi, Lisboa, publicada em 1888, com
o título O javali de bronze.
Em 1901, os contos de H.C. Andersen começaram a circular, no Brasil,
não mais sob a forma de “importados”, mas editados
aqui, pela H. Garnier, Rio de Janeiro. A coletânea A virgem dos
Geleiros foi a primeira delas, seguida de outra, O homem de neve, também
da Garnier, porém, sem data. Todavia, por se tratar de contos de
H.C. Andersen e por ter sido essa editora pioneira nesses lançamentos,
sou levada a crer que a edição de O homem de neve pertence
à mesma época da coletânea anterior, ou pelo menos
bem próxima a ela. Foi dessa forma, que a obra de H.C. Andersen
chegou ao Brasil, um país sobre o qual parece não ter tido
notícias.
Mas H. C. Andersen aproximou-se, de fato, da criança brasileira
pelas mãos do educador paulista, Arnaldo de Oliveira Barreto, por
meio da recriação de “O Patinho Feio”, publicado
em 1915 pela Editora Melhoramentos (1915), inaugurando a Coleção
“Biblioteca Infantil”. Inicia-se, assim, outra história,
a de um conto que assumiu formas brasileiras, foi apreciado por nossas
crianças, e, dada sua incorporação à Coleção
“Biblioteca Infantil”, possibilita-nos recuperar fatos importantes
da literatura infantil brasileira escrita por brasileiros, dedicada à
criança brasileira.
Na Coleção "Biblioteca Infantil", sob a coordenação
de Barreto, o conto “O Patinho Feio” atinge 16 edições,
totalizando uma tiragem de 135.000 exemplares, distribuídos entre
a 1ª edição, em 1915, e a última ? a 16ª
? em 1957. Em 1980, essa coleção é relançada,
contando com o trabalho de recriação de Suzana Dias. Em
1985 é suspensa novamente. Entre 1980 e 1985 essa coleção
alcançou uma tiragem de 35.000 exemplares.
A história do conto de H.C.Andersen está ligada à
dessa editora e à da vida e obra de Arnaldo de Oliveira Barreto
e Manoel Bergström Lourenço Filho. Recuperá-la significa
não somente penetrar no mundo da literatura infantil, no mundo
particular da leitura na escola, como também no mundo do mercado
editorial brasileiro, dedicado à infância.
Os estudos relativamente a este conto nos remetem para seu autor. Conhecer
um pouco sua vida e os caminhos tortuosos por ele percorrido poderão
dar a dimensão e entendimento mais precisos sobre sua obra.
A vida de Hans Chrisitan Andersen.
H.C.Andersen nasceu em Odense, Dinamarca, a 2 de abril
de 1805. Filho de um humilde sapateiro ? Hans Andersen ? e de uma lavadeira
? Anne Marie Andersdatter ?, nunca escondeu sua origem. Ao contrário,
orgulhava-se dela. Para ele "antes ser um representante da nobreza
do espírito do que da de nascimento" (Andersen apud Silva
Duarte, 1995,p.18).
Seu pai realizava todos seus desejos povoando seu mundo com brinquedos
e histórias.A infância de H. C. Andersen povoou-se da magia
e da arte, incentivadas pelas intermináveis horas de leitura promovidas
pelo pai, agradáveis e ricas, segundo afirmações
posteriores do escritor. Estas leituras incluíram a obra de William
Shakespeare. Uma de suas primeiras tentativas literárias inspirou-se
nas obras do dramaturgo inglês.
H. C. Andersen iniciou uma de suas autobiografias, afirmando:
My life is a lovely story, happy and full of incident. If, when I was
a boy, and went forth into the world poor and friendless, a good fairy
had met me and said, ‘Choose now thy own course through life, and
the object for which thou wilt strive, and then, according to the development
of thy mind, and as reason requires, I will guide and defend thee to its
attainment’ my fat could not, even then, have been directed more
happily, more prudently, or better. The story of my life will say to the
world what it says to me, - There is a loving God, who directs all things
for the best. (ANDERSEN, 1975, p. 1)
Também muito contribuiu para povoar de histórias
a mente de H. C. Andersen sua avó paterna. Ela nutria por seu neto
um grande afeto e, sempre que podia, levava-o consigo para seu trabalho
– sua avó era responsável pelo jardim de um asilo
para loucos. H. C. Andersen tornou-se amigo de algumas das mulheres do
asilo. Colocava-se aos pés delas e ouvia-lhes histórias
cheias de medo e terror.
Certa vez, ao criar uma de suas histórias, escolheu como personagem
principal um nobre. Para H. C. Andersen alguém de tão pura
linhagem deveria falar uma língua diferente da usada por ele e
seus companheiros. Em razão dessa suposição, criou
diálogos mesclando palavras em alemão, francês e inglês,
mas com significado dinamarquês. Anos mais tarde, em sua autobiografia
Andersen referiu-se a essa “língua” como “regular
Babel-like language”.
De acordo com Silva Duarte (1995), começou a manifestar-se, ainda
em Odense, quando menino, seu espírito aventureiro, sua paixão
por viajar. Para H. C. Andersen, viajar era viver.
As experiências de viagens relatadas por H. C. Andersen foram registradas
por meio de desenhos dos lugares, pessoas, cenas de vida observadas pelo
escritor. Esses esboços constituíram-se em vasto material
ilustrativo tendo sido transformado em livros.
H. C. Andersen cresceu sob a influência de dois mundos, o de seu
pai povoado de histórias e lendas acrescido do fato de ser ateu
convicto, e o de sua mãe, iletrada, temente a Deus e supersticiosa.
Paralelamente a esse mundo familiar paradoxal, convivia com a sociedade
local que o ridicularizava por seus hábitos e trejeitos, além
de ser sempre lembrado de que era neto de um louco. Já adulto,
deixou transparecer caráter sensível e emoções
inconstantes. Hipocondríaco, de saúde frágil, viveu
durante muito tempo sob o terror de terminar seus dias em um hospício.
Sem amigos, H. C. Andersen cercava-se de um mundo criado por ele e sobre
o qual tinha total domínio.
A obra de Hans Christian Andersen
Sobre a obra de H. C. Andersen deve-se considerar a influência do
período literário, político e social em que viveu.
De Mylius (1997) aponta dois aspectos importantes a serem considerados
quando se pretende analisar a obra de H. C. Andersen, especialmente, Den
grimme Aelling.
O primeiro aspecto refere-se às distorções ou más
interpretações resultantes do fato de se atribuir a Den
grimme Aelling caráter autobiográfico; o segundo, é
relativo ao movimento da literatura dinamarquesa em que se insere a produção
artística de H. C. Andersen. Certamente, H. C. Andersen subverte
os padrões culturais e sociais de sua época.
No entanto, sua primeira grande obra será o romance Improvisatoren
(O improvisador), lançado na Itália em 1835 e no qual relata
sua viagem a esse país e o deslumbramento que lhe causou.
Nesse mesmo ano, enquanto Improvisatoren era impresso, H. C. Andersen
começa a escrever alguns contos para crianças. Seu primeiro
conto Reisekammeraten (Companheiros de Viagem), (1835) dá início
à sua produção de contos dedicados à infância.
H. C. Andersen lança em 1835 sua primeira coletânea de contos
“contados para crianças” reunindo: Os contos Fyrtoeiet
(O isqueiro mágico), Lille Claus og store Claus (O pequeno Claus
e o grande Claus), Prindsessen paa Aerten (A princesa e o grão
de ervilha), Den lille Idas Blomster (As flores da pequena Ida), Tommelise
(A polegarzinha) Den uartige Dreng (O menino malcriado) e Reisekammeraten
(Os companheiros de viagem) foram publicados pela primeira vez em 1835,
na Dinamarca, com o título Eventyr, fortalte for Boern (Contos
narrados para crianças).
No entanto, ao lançar, em 1844, a segunda coletânea de contos
Nye Eventyr (Novos Contos), H. C. Andersen retira a expressão for
Boern “para crianças”. A partir de então, passa
a escrever regularmente contos desse tipo, tendo produzido 156 deles.
O conjunto da obra de H. C. Andersen organiza-se em: autobiografias (3),
biografias (13), contos para crianças (156), romances (6), poemas
em coletâneas (158), livros de viagens (5), peças para o
teatro (5 – não há muita precisão sobre esse
número), correspondência de e para H. C. Andersen reunida
em coletâneas (25), diários (15), cadernos de desenhos, também
em coletâneas (14), edições em fac-símile (7),
esboços à caneta e recortes de gravuras (6). Há ainda,
reproduzidos em cartões postais e livros, inúmeros trabalhos
de recortes - papper cuttings.
Den grimme Aelling é publicado pela primeira vez no volume Nye
Eventyr (Novos Contos), em 1844. De acordo com andersenistas famosos como
Silva Duarte (1918) e Erik Dal, entre outros, o conto apresenta traços
autobiográficos o que não significa ser ele, necessariamente,
uma autobiografia do autor.
Muitas outras informações poderiam ser incorporadas a este
texto. Tanto aquelas sobre o escritor e sua obra, quanto aquelas que apresentariam
os laços que se firmaram entre sua obra e a história da
leitura, da literatura infantil, da escola e do ensino, no Brasil. Contudo,
não há espaço para elas aqui e agora. Fica o convite,
para aqueles que se interessarem por saber mais, a fazer uma visita a
outros textos e a outros materiais que falam mais sobre esta grande personalidade,
sobre este grande poeta e crítico social.