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  TEORIA E PRÁTICA NA FORMAÇÃO DO PROFESSOR: COMPREENDER A CRIANÇA COM DIFICULDADE DE APRENDER NA ESCOLA.

Francisca Paula Toledo Monteiro, FE - UNICAMP.

RELATO DE EXPERIÊNCIA

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. (...) O saber da experiência se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana. (...) Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver”nem “ pré-dizer”. (LARROSA, 2002).

Minhas inquietações em relação ao fracasso escolar iniciaram em 1998, quando trabalhei em uma instituição que acolhe crianças carentes e percebi que um dos fatores que impossibilitavam a convivência e a integração dessas crianças na escola, na instituição e na comunidade eram as dificuldades de aprendizagem.

Em primeiro lugar porque estar freqüentando a escola é um dos requisitos para se aceitar a criança na instituição. Com déficit na leitura e na escrita essas crianças logo começam a fracassar na escola e aí surgem as mais diversas reações: alguns tornam-se agressivos, outros apáticos, ganham rótulos – o indisciplinado, o burro, o carente... terminando por abandonar a escola e, consequentemente, perder a vaga na instituição. Essa história termina nas ruas, nos semáforos e muitas vezes na prostituição ou nas drogas.

Durante dois anos convivi com essa realidade, enquanto percebia que tais questões também ocorrem com as crianças mais favorecidas economicamente. Muitos alunos são encaminhados para os profissionais especializados, o que dá uma certa tranqüilidade para a escola e para a família, cuja responsabilidade de encontrar caminhos eficazes para essa criança ou adolescente obter sucesso na aprendizagem, agora transfere-se para outrem. De certa forma, a escola passa a responsabilidade para o especialista, este para a família que se compromete a levar a criança para os atendimentos particulares e assim o tempo vai passando...

No entanto, com todo o potencial represado e sem conseguir expressar-se através dos conteúdos ensinados na escola, essas crianças também começam a apresentar distúrbios de comportamento, tornando-se muitas vezes o chato entre os colegas, fazendo várias mudanças de escola, até que também desiste: abandona a escola ou adoece.

Se todas as crianças conseguissem que seus protestos, ou que simplesmente suas questões fossem ouvidos em uma escola maternal, isso seria o bastante para explodir o conjunto do sistema de ensino. Na verdade, esse sistema em que vivemos nada pode suportar: daí sua fragilidade radical em cada ponto, ao mesmo tempo que sua força global de repressão.(FOUCAULT; DELEUZE, 1998, P.72).

Essas questões que permeiam minha prática enquanto professora, angustiaram-me a ponto de me fazer buscar novos conhecimentos a respeito do ser humano, do como e para que aprendemos, levando-me de volta à universidade e ao trabalho com as crianças em séries iniciais de alfabetização, especialmente as que apresentam dificuldades na aprendizagem da leitura e escrita.

No ano de 2000 iniciei um trabalho junto a um grupo de profissionais com as mesmas angústias e inquietações , onde desenvolvemos um trabalho pedagógico com essas crianças que fracassam na escola, independente da causa – biológica, cognitiva, social, psicológica, em um espaço de educação não-formal.

Chamamos esse trabalho de pesquisa-ação. Enquanto efetuamos as intervenções pedagógicas envolvendo a criança, a família e a escola, buscamos estudar as teorias que nos dê respaldo e abra novos caminhos, novas possibilidades de aprender e de estar no mundo.

Foi no início desse trabalho, após ter ingressado na universidade para cursar pedagogia, que encontrei Natália.

Natália, com 10 anos, estava cursando a 1ª. série em uma escola pública pela terceira vez. Era uma menina muito tímida, de olhos sempre baixos e havia sido encaminhada a uma instituição para crianças portadoras de síndromes com rebaixamento intelectual, apesar de apresentar todos os exames (triagem, segundo a mãe) sem alterações orgânicas que justificassem o encaminhamento. A mãe e uma professora da escola resistiram e nos procuraram pedindo uma avaliação.

A queixa apresentada pela escola era de: dificuldade de aprendizagem em geral, dificuldade de desenvolvimento na linguagem, socialização e de desenvolvimento motor. Desde então temos desenvolvido o trabalho pedagógico paralelo à escola, acompanhado Natália e seus progressos. Já se passaram cinco anos e, entre muitos embates, relatórios, avaliações, atestados Natália encontra-se freqüentando a 4ª. série do ensino fundamental. Seus progressos são visíveis e notórios: participa de todas as atividades escolares, está alfabetizada e domina a escrita - com algumas ressalvas feitas pela professora com respeito às normas gramaticais e a interpretação dos textos que exigem maior esforço de abstração e algumas questões na matemática. Natália continua sendo acompanhada por nosso grupo, com o trabalho pedagógico paralelo à escola e, no momento, vivemos um novo embate: fui procurada pela mãe, pois a escola tem restrições para encaminhá-la para a 5ª. série. A alegação é que Natália não domina os conteúdos exigidos para a série que freqüenta. A escola sugere, ainda, que Natália seja encaminhada, não mais para uma instituição, mas para uma suplência ou escola profissionalizante, pois sua idade está defasada em relação às outras crianças...

Entretanto, Natália deseja permanecer na escola e seguir com os colegas. Está muito bem, é aceita pelo grupo, cumpre seus deveres como estudante, mas não consegue devolver à escola o conteúdo da 4ª. série...Novos relatórios têm sido feitos, visitas à escola, reuniões... Espero que os esforços e o progresso de Natália possam ser reconhecidos e que ela exerça o direito de estar na escola que escolheu, como qualquer outra criança.

Dar voz à Natália, antes muda e telepática? Que poderes e saberes serão mobilizados? Quem diz e de onde diz que é preciso saber os conteúdos de determinada série para ter seu esforço e sua capacidade de aprendizagem reconhecidos? E para quê? Ou para quem?

Falar e ver, para Foucault, diz respeito sempre à verdade e saber, a relações de poder e a produções de si mesmo.(...)Foucault dizia que a sua obra era uma história do presente. No campo da pesquisa e da militância educacional isso é da maior importância; nos mostra que esse ou aquele conceito, essa ou aquela verdade nem sempre foram assim, mas foram inventadas um dia. E, se foram inventadas, então podemos inventar coisas novas, buscar novas alternativas para aquilo que não queremos mais. (VEIGA-NETO, 2004)

Acredito que a formação teórica aliada à minha prática como professora está possibilitando mudar meu olhar e meu fazer em relação às crianças que não conseguem aprender na escola. Percebo, também, que a teoria pode nos cegar se a colocamos na frente do ser humano e nos enquadramos em um padrão que não pode fugir do que está posto e normalizado (FOUCAULT,1996).

Nesse sentido, Skliar (2002) em sua Nota para uma pedagogia (improbable) de la diferencia me faz refletir em possibilidades outras de escapar daquilo que me incomoda – o fracasso escolar - e é com ele que encerro esse relato, sem, no entanto, dá-lo por concluído:


Después del orden, ningún outro orden, sino la perplejidad. Essa vez, la perplejidad de la educación, la perplejidad de la escuela. ?Poderámos pensar, entonces, em uma pedagogia de la perplejidad? (...) Y que desordene el orden, la coherencia, toda pretensión de significados. Y possibilite la vaguedad, la multiplicación de todas lãs palavras, la pluralida de todo lo outro. Y que desmienta el pasado unicamente nostálgico, sólamente utópico, absurdamente elegíaco. Que conduzca a um futuro incierto. ?Una pedagogia para um presente disyuntivo?


Quem sabe?...

Referências:

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 10ª. ed. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.

GALLO, S. e SOUZA, R. M. de (orgs.). Educação do Preconceito: ensaios sobre o poder e resistência. Campinas, SP: Alínea, 2004.

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Universidade de Barcelona, Espanha, 2002.

SKLIAR, C. .Y si el outro no estuviera ahí? Notas de uma pedagogia (improbable) de la diferencia. Madri: Coedición Miño y Dávila/CTERA/Escuela Marina Vilte. 2002.

VEIGA-NETO, A. Foucault, um diálogo. In: Educação e Realidade, v.29 n.1. Dossiê Michel Foucault, UFRGS, jan/jun 2004.

 
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