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POR
QUE ERA TÃO DIFÍCIL APRENDER A LER E A ESCREVER?
Hilda Maria Monteiro -Secretaria Municipal de
Educação e Cultura – SMEC -Centro Universitário
Central Paulista - UNICEP
Aprender a ler e a escrever e ensinar a ler e a escrever
são desafios insistentemente presentes no cotidiano escolar. Esses
desafios vêm, muitas vezes, acompanhados dos incômodos índices
de insucesso na alfabetização. Insucesso dos alunos e insucesso
dos professores. Nas escolas organizadas em ciclos de dois anos, as histórias
de fracasso escolar se evidenciam no segundo ano, pois é este o
momento de tomada de decisões sobre as possibilidades dos alunos
serem promovidos para o ciclo seguinte. Muitos alunos são retidos
diversas vezes por não estarem aptos a acompanhar uma 3a. série,
isto é, por não estarem alfabetizados.
É sabido que os alunos provenientes de famílias em que a
leitura e a escrita se fazem presentes encontram na escola um local propício
para a ampliação dos conhecimentos que adquiriram antes
de entrar nela.
No entanto, aqueles alunos oriundos de ambientes em que a leitura e a
escrita não fazem parte de seu repertório, chegam à
escola sem conhecer as possibilidades de uso e as suas funções.
São esses alunos que apresentam as maiores dificuldades no momento
da alfabetização, principalmente quando a escola não
lhes apresenta materiais e situações reais de uso da leitura
e da escrita e quando a ação docente não é
organizada de forma a fazer com que esses alunos reflitam sobre os princípios
que constituem o nosso sistema de escrita.
Partindo desse panorama a questão que se coloca é: por que
tantos alunos não se alfabetizam ao longo do ciclo de dois anos?
O termo alfabetização é utilizado neste trabalho
numa perspectiva de letramento que pressupõe, além da apropriação
do sistema alfabético – que é requisito essencial
à autonomia da leitura e da escrita –, a apropriação
dos usos e das funções sociais da escrita. A condição
de sujeito letrado pressupõe que o aluno possa vivenciar no ambiente
escolar, situações em que textos são lidos e escritos
porque atendem a uma determinada finalidade.
O ponto de partida desta reflexão encontra apoio na teoria de Vygotsky
sobre o processo de interação e intervenções
pedagógicas. O professor exerce um papel de desafiador e de orientador
em seu trabalho com os alunos.
O interesse nessa investigação tem raízes no trabalho
com alfabetização de crianças que venho desenvolvendo
há sete anos e que me instiga a buscar pistas que nos levem a refletir
a respeito do que pensam os alunos sobre o por que de não se alfabetizarem
no tempo determinado pela escola e o que é preciso fazer para que
aprendam a ler e a escrever.
Os dados foram coletados por meio de uma entrevista semi-estruturada constituída
das seguintes questões orientadoras: “Quando você aprendeu
a ler e a escrever?”, “Por que você não aprendeu
antes?”, “O que uma professora precisa fazer para o aluno
aprender?”, “Além da professora, quem mais ensina e
como?”.
Este trabalho é um estudo exploratório desenvolvido com
quatro alunos multirrepetentes – dos quais sou a professora –
de uma 2a. série de escola pública da rede municipal de
São Carlos/SP. Os alunos participantes têm entre dez e doze
anos de idade. Todos vêm de famílias cuja experiência
com leitura e escrita, segundo relatos dos alunos, é bastante limitada.
A trajetória
escolar dos alunos
Alunos/
Trajetória
escolar |
Wellington
12
anos |
Mathias
11
anos |
Carlos
10
anos |
Roberto
10
anos |
2000 |
1a.
série
(outro
município) |
|
|
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2001 |
Não
há registro |
(outro
município) |
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2002 |
1a.série
(nesta
escola) |
1a.série
(nesta
escola) |
1a.
série
(outro
município) |
1a.
série
(outro
município) |
2003 |
2a.
série
(nesta
escola) |
2a.
série
(nesta
escola) |
2a.
série
(nesta
escola) |
1a.
série
(outro
município) |
2004 |
2a.
série
(nesta
escola) |
2a.
série ***
(nesta
escola) |
2a.
série ***
(nesta
escola) |
2a.
série
(outro
município) |
2005 |
2a.
série
(nesta
escola) |
2a.
série
(nesta
escola) |
2a.
série
(nesta
escola) |
2a.
série
(nesta
escola) |
É
relevante relatar que os três alunos que freqüentaram a sala
de recursos no ano anterior foram por mim desvinculados dessa no presente
ano passando a freqüentar somente a sala regular. Essa iniciativa
justificou-se por eu acreditar que esses alunos poderiam se alfabetizar
começando por um trabalho de reconhecimento de suas capacidades,
restituindo-lhes a “normalidade”, de um trabalho de intervenção
enfocando diretamente os processos de ensino e aprendizagem da base alfabética
e de integração com o restante do grupo que já se
encontrava em níveis mais avançados de conhecimento sobre
a escrita.
Ao final de um semestre letivo Welington, Mathias e Carlos produziam e
liam textos. Roberto, considerado não alfabetizado pela escola
de origem, já escrevia alfabeticamente quando chegou na turma,
mas não era capaz de produzir e de ler textos. Após um mês
de trabalho conseguia escrever e ler.
O trabalho pedagógico desenvolvido com esses quatro alunos, e com
o restante do grupo, enfatizava atividades de apropriação
do sistema alfabético simultaneamente às atividades de apropriação
dos usos e das funções sociais da escrita.
O ambiente cordial e colaborativo estabelecido na turma permitia que as
intervenções para aprimoramento da escrita desses alunos
fossem compartilhadas por todos os integrantes, o que pode ter contribuído
para tornar o processo de alfabetização desses alunos mais
rápido e bem sucedido.
As respostas às entrevistas desvelam processos de ensino-aprendizagem
que encontram sustentação na Psicologia Histórico-Cultural,
em que os conceitos de mediação, zona de desenvolvimento
proximal e tomada de consciência vêm contribuir para o esclarecimento
de aspectos levantados pelos alunos nas entrevistas.
É nessa perspectiva que procurarei entender as falas das crianças
sobre o por que demoraram tanto para se alfabetizar.
A PERCEPÇÃO
DOS ALUNOS SOBRE SEUS PROCESSOS DE ALFABETIZAÇÃO
Quando você
aprendeu a ler e a escrever?
Ao falar sobre essa questão os alunos mostram concepções
divergentes sobre o significado de escrever. Torna-se importante o traçado
das letras e a escrita é a reprodução daquilo que
o professor faz. A resposta de Mathias: “Faz tempo, não sei”
parece indicar que ele aprendeu a fazer letras na primeira vez que entrou
na escola, quatro anos atrás, o que significa muito tempo. Welington
mostra o mesmo entendimento de forma mais explícita: “Quando
eu entrei eu não sabia fazer letra e depois eu aprendi...”.
Para eles, saber escrever está mais relacionado à habilidade
de desenhar as letras, o que costuma ser muito mais valorizado do que
o conhecimento conceitual sobre a escrita.
Carlos reconhece que antes não lia e não escrevia e aprendeu
recentemente “Quando comecei nesta sala neste ano. Antes eu não
sabia...”. Roberto, apesar de já ter compreendido o funcionamento
da escrita antes de chegar nesta escola não acreditava que soubesse
e responde: “Eu aprendi agora...”. As relações
estabelecidas entre mim e os alunos sempre pautadas no acreditar que todos
estão aprendendo certamente influenciaram nas respostas dos dois.
Por que você
não aprendeu a escrever antes?
Para responder
a esta pergunta os alunos indicam alguns responsáveis:
Eles mesmos, ao responderem: “Eu ficava brincando na sala... Tinha
vez que eu não fazia as coisas...”,
“Porque eu não fazia”. As professoras, ao denunciarem:
“A professora de Pradópolis mandava fazer e eu não
fazia. Ela falava “deixa, no fim do ano não sou eu que vou
repetir””, “Porque (as professoras) passavam coisa difícil.
Eu tive um monte de professora. Elas passavam rápido e eu não
conseguia, passava letra de mão e eu não sabia fazer letra
de mão. Eu não entendia quando era O, quando era A...”.
Os colegas, por atrapalharem: “Quando eu tentava fazer os moleques
que agora estão na 3a. ficavam me interrompendo.”, “Os
outros (colegas) xingavam, jogavam estojo”.
As respostas dos alunos indicam que eles têm consciência de
que precisam realizar as atividades para aprender e de que o ambiente
de cordialidade e respeito entre os colegas é desejado. Em relação
às professoras ressentem-se da insensibilidade destas em compreender
as dificuldades com o tipo de letra usado, com o tempo para fazer as atividades,
com o fato de deixarem a responsabilidade do não aprender com o
aluno.
O que uma
professora precisa fazer para o aluno aprender?
A intervenção
pedagógica direta da professora é indicada como um dos requisitos
mais importantes para levar um aluno a aprender. A proposição
de atividades que provocam a reflexão bem como o equilíbrio
entre o mandar fazer e o ajudar a fazer são considerados positivos:
“Fazer coisa pra pensar... texto, avaliação... As
listas (de palavras), as palavras no varal, o alfabetário, o diário...
quando a professora manda fazer e a professora ajuda. Às vezes
a professora fala pra fazer sozinho...”
“Eu
vim pra cá e a professora falava pra eu escrever devagarzinho,
pensando... Assim: pra fazer PA eu olhava no alfabetário. Aí
a professora mandava eu fazer uma historinha e eu conseguia. A professora
do ano passado não deixava usar (o alfabetário). Ela mandava
escrever uma história, mas não podia olhar (no alfabetário)
e eu não sabia. Eu não fazia nada. Ela não sentava
com nós pra ensinar. Você sentava junto comigo e ia ajudando
a escrever as coisas e falava “ta bom”. Esse ano eu comecei
a aprender e eu perguntava pra professora “ta certo?” e a
professora falava “ta”.”
“Mandar
fazer na lousa, ensinar, dar o alfabetário, dar livro pra ler,
fazer hora do conto... A professora manda fazer e se não faz ela
não esquece, ela lembra se a gente não faz e manda fazer.
Pegar no pé e mandar escrever. Dar o alfabetário para escrever,
ajudar a ler. As outras falavam “faz”, a gente não
fazia. Agora a Hilda fala “faz”, ela ajuda e tem que fazer.
Se não faz ela não esquece, ela manda tirar o caderno da
bolsa e tem que fazer. Tem que mandar fazer história... antes eu
não sabia.
As falas
dessas crianças nos remetem ao conceito de zona de desenvolvimento
proximal. É notável a percepção delas sobre
o fato de que, com o apoio da professora, foram expandindo os conhecimentos
que possuíam sobre a língua. No início, precisaram
de ajuda da professora e de materiais pedagógicos para desenvolver
esses conhecimentos. Paulatinamente, foram sendo capazes de produzir sua
escrita autonomamente. Vygotski (1998) reforça esse entendimento
ao dizer que são os mecanismos de aprendizado que movimentam o
desenvolvimento, sendo fundamental a atuação de outros sujeitos
nesse processo.
Além
da professora, quem mais ensina e como?
“Os
colegas me ajudam. Tem vez que eles fazem eu pensar bastante. O Danilo
e a Dayara, quando eu faço alguma coisa errada eles falam pra eu
apagar que ta errado”.
“Os
colegas. Os outros (do ano anterior) também era legal mas eles
falava “ta errado”. O Fernando fala “é gostoso
sentar com você”. O Caio fala assim “pensa”. Eu
pensava mas tinha coisa que eu não falava pra ele, eu falava pra
professora e ela falava “ta certo”.
“Os
colegas. Eles ajudam a procurar no alfabetário o que a gente ta
escutando...”
“Os
colegas. Eles não xingam, quando vêem alguma coisa que ta
errada eles falam até ficar certo.”
Estas respostas
trazem dois aspectos relevantes para um melhor entendimento do processo
de aprendizagem da linguagem escrita. O primeiro diz respeito ao papel
mediador exercido por outros sujeitos, que não a professora. A
referência feita à ajuda dada pelos colegas foi unanimidade
e reforça a idéia sobre a importância do trabalho
pedagógico coletivo que propicia a troca de experiências
e, conseqüentemente, o avanço no desenvolvimento. O segundo
aspecto diz respeito à imprescindível intervenção
da professora para o progresso dos conhecimentos sobre a escrita, "no
sentido de fornecer-lhes material cultural relevante para aquisição
do sistema de leitura e escrita” (Oliveira, 1997: 60).
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
POSSÍVEIS
A partir dos aspectos discutidos acima é possível fazer
algumas considerações a respeito das compreensões
dos alunos sobre o que dificultava a aprendizagem da linguagem escrita.
É possível também destacar as pistas sobre o que
facilitou essa aprendizagem.
As dificuldades são reconhecidas como responsabilidade própria
por não realizarem as atividades; como responsabilidade da professora
que não se comprometia com o sucesso, que não respeitava
o tempo e propunha tarefas difíceis com um tipo de letra que atrapalhava
a compreensão; como responsabilidade dos colegas que não
os respeitavam.
As respostas revelam que eles têm altas expectativas quanto à
participação da professora nos processos de aprendizagem
da leitura e escrita. Eles esperam que a professora exija o cumprimento
das atividades propostas. Que dê livros para eles lerem e que leia
para eles. Que diversifique as atividades de escrita. Que os desafiem
a pensar, mas que lhes dê referências para se apoiarem. Que
se importe com eles, cobrando, “não esquecendo”, ajudando.
Que observe particularidades do tipo de letra que podem confundir, como
a letra cursiva. Que dê atenção individualizada “sentando
junto” e incentivando.
A participação dos colegas foi apontada por todos como importante
no processo de aprendizagem. O ambiente baseado no respeito ao tempo de
cada um e na colaboração mútua foi indicado como
facilitador da compreensão do sistema alfabético.
A percepção dos alunos entrevistados sobre as dificuldades
encontradas nesses anos de fracasso e a percepção do que
deve ser feito para facilitar a aprendizagem indicam que o ambiente escolar
necessita ampliar seus espaços para um aprender e ensinar mais
solidário, mais sensível, mais comprometido que dêem
suporte para uma trajetória de sucesso.
Referências
Bibliográficas
OLIVEIRA,
M. K. Sobre diferenças individuais e diferenças culturais:
o lugar da abordagem históricocultural. In: AQUINO, J. G. (org.)
Erro e fracasso na escola: alternativas teóricas e práticas.
São Paulo: Summus, 1997.
VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento
dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
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