Carolina dos Santos Moraes - Universidade Estadual
de Campinas - UNICAMP
Fernanda Dias Pereira - UNICAMP
Ana Luiza Bustamante Smolka (orientadora)
O presente texto surgiu a partir de algumas reflexões
e questionamentos feitos durante o desenvolvimento de duas pesquisas de
Iniciação Científica, denominadas: “A criança
com deficiência visual e a música: um estudo de relações”
e “Desenvolvimento cultural: Interação, dança
e deficiência visual” . Ambas as pesquisas foram realizadas
conjuntamente em um Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação
Dr. Gabriel Porto (CEPRE), localizado na Faculdade de Ciências Médicas
da Universidade Estadual de Campinas.
As principais finalidades do CEPRE são o oferecimento de atendimentos
às pessoas com deficiências sensoriais, promovendo atividades
que visam à habilitação e a reabilitação
destas, integrando-as melhor na sociedade. Além disso, possui atendimento
aos familiares e contato com as escolas e demais instituições
que os pacientes freqüentam. Promove a formação e especialização
de profissionais para atuarem na área da deficiência.
Dentre as pessoas que lá trabalham podemos encontrar psicólogos,
terapeutas ocupacionais, pedagogos, assistentes sociais, fonoaudiólogos,
enfermeiros, médicos e demais profissionais.
Nesses atendimentos são planejadas e desenvolvidas pesquisas com
diferentes perspectivas: Avaliação e Prevenção
de Deficiências; Família, Comunidade e Diferença;
Desenvolvimento Humano: Surdez e Deficiência Visual.
As pesquisas de Iniciação Científica, citadas anteriormente,
são caracterizadas pela abordagem qualitativa e foram desenvolvidas
na linha relativa ao desenvolvimento humano, utilizando-se de técnicas
etnográficas, uma vez que se preocupam com a descrição
detalhada dos fatos e o envolvimento de todos os participantes, inclusive
das pesquisadoras. Os encontros foram registrados em diários de
campo e videogravações. Fomos convidadas a participar dos
grupos de convivência semanais de crianças com deficiência
visual, com idade entre 8 e 14 anos, e encorajadas a desenvolver um projeto
de atuação junto às crianças.
As atividades desenvolvidas por nós possuíam como principal
objetivo o oferecimento de vivências musicais e diferentes tipos
de expressões corporais. Para isso, desenvolvemos um trabalho com
ritmos, utilizando diferentes sons (vocais, corporais e instrumentais),
procuramos através de brincadeiras, a realização
e elaboração de diversas seqüências conjuntas
de sons e movimentos e, posteriormente, começamos a trabalhar com
um tipo específico de dança, o sapateado, e instrumentos
musicais, o teclado e o pandeiro.
As atividades sempre foram oferecidas buscando o engajamento de todas
as crianças, mesmo em suas distintas formas de participação
e interesse, utilizando-se de recursos adequados às necessidades
especiais dos sujeitos e promovendo um espaço no qual as crianças
tinham a possibilidade em participar de grupos, interagindo com demais
pessoas e enriquecendo o seu desenvolvimento a partir dessas relações
sociais, que muitas vezes não são possibilitadas nas escolas
ou em outras instituições. Incentivávamos as crianças
a participarem das atividades contribuindo como podem, não cobrávamos
um desempenho específico para cada criança, mesmo porque
cada uma possuía um tempo, ritmo e interesse distintos dos demais.
Nosso intuito com as pesquisas foi estudar as relações e
as formas de participação de crianças deficientes
visuais em atividades de música e dança, enquanto produções
culturais. Com este trabalho, pretendemos discutir algumas reflexões
sobre as possíveis “leituras do outro” e os jogos de
imagens que perpassam as interações entre os diversos sujeitos
em um contexto histórico-cultural.
Desenvolvimento humano e a participação nas práticas
culturais: a deficiência como questão.
Como perspectiva teórica, optamos pelos estudos dos autores Vygotsky
e Wallon, que valorizam tanto o aspecto biológico do ser humano,
como o social, explicitando para o desenvolvimento humano, a importância
das relações sociais e do contexto histórico-cultural
no qual o indivíduo se encontra.
O ser humano a partir de sua interação com o meio cultural
desenvolve a capacidade de realizar atividades psicológicas mais
complexas, chamadas de superiores, como a memória, a percepção,
a atenção e o raciocínio. O conjunto dessas funções
possibilita a emergência da consciência no ser humano e isso
os diferencia dos demais animais. Sendo assim, as habilidades e os conhecimentos
do homem são acumulados e assimilados historicamente, através
da experiência da sociedade na qual ele está inserido. Essa
interação social “fornece a matéria-prima para
o desenvolvimento psicológico do indivíduo” (OLIVEIRA,
1997:38).
Baseado em Marx, Vygotsky (1998) defende que através do trabalho
e do surgimento da sociedade humana, há o desenvolvimento das atividades
coletivas e, conseqüentemente, das relações sociais,
as quais favorecerão a produção da cultura e história
humanas. No entanto, essas relações, inicialmente são
diretas e depois passam a serem mediadas, conforme o desenvolvimento das
atividades psicológicas superiores que possibilitam um maior controle
do sujeito em suas ações voluntárias. Como ressalta
Wallon, “é a cultura e a linguagem que fornecem ao pensamento
os instrumentos para a sua evolução” (GALVÃO,
1995:41), ele não evolui apenas pela maturação do
sistema nervoso, é preciso uma interação entre os
três aspectos.
A partir das relações humanas e sociais, a criança
se desenvolve em uma relação recíproca de trocas
de vivências e experiências, a cada e a todo instante. Assim,
não há um momento único de aprendizagem, o desenvolvimento
é todo um processo constituído através das diversas
formas de interação social, intermediado pela linguagem
(MAGIOLINO, 2001).
A interação com outras crianças ou adultos promove
o aprendizado e, portanto, o desenvolvimento da pessoa. Conforme Vygotsky
(1998), os homens se apropriam dos signos, desde o momento em que nascem,
a partir das relações com o outro mais experiente. Este,
atribui significados a suas ações em situações
objetivas, “nas quais determinadas formas de relações
sociais e de uso de signos se fazem presentes” (OLIVEIRA, 1995:52).
Quando Vygostky fala da importância do outro nas diferentes formas
de interação social, ele se refere a um conceito em sua
teoria, denominado: zona de desenvolvimento proximal. Há dois diferentes
níveis chamados, nível de desenvolvimento real, que seria
a “capacidade do sujeito realizar tarefas de forma independente”
(OLIVEIRA, 1997:59) e o nível de desenvolvimento potencial, que
seria “a capacidade do indivíduo realizar tarefas com a ajuda
de adultos ou companheiros mais capazes” (IBDEM). Portanto, o outro
realizará sua intervenção nessa zona, que segundo
a mesma autora é “o caminho que o indivíduo vai percorrer
para desenvolver funções que estão em processo de
amadurecimento e que se tornarão funções consolidadas,
estabelecidas no seu nível de desenvolvimento real” (p.60).
Com isso se dará o aprendizado que tem papel essencial no desenvolvimento
da pessoa.
Tanto Vygostky como Wallon não vêem o desenvolvimento como
algo linear, há rupturas, confrontos e reformulações,
trata-se de um processo dialético. O último autor defende
a idéia de dois tipos de conflitos que promovem o desenvolvimento
da pessoa com fases em que predominam, rotativamente, a afetividade e
a cognição. Esses conflitos são de “origem
exógena, quando resultantes dos desencontros entre as ações
da criança e o ambiente exterior, estruturado pelos adultos e pela
cultura” e de “natureza endógena quando gerados pelos
efeitos de maturação nervosa” (GALVÃO, 1995:42).
Quando as formas de conduta atingem uma certa estabilidade com o meio,
sempre aparecem novas situações que desorganizam tudo, obrigando
o sujeito a procurar novas formas para se adequar ao seu meio. E isso
acontece tanto no desenvolvimento infantil como também na vida
adulta, o ser humano está continuamente frente às contradições.
O outro possui papel imprescindível nas relações
sociais e no processo de mediação entre a cultura e o sujeito,
pois é através da interação e do confronto
com ele que se constitui o ser humano.
Pensando no desenvolvimento de pessoas com deficiência, Vygotsky
(1997) argumenta que ele ocorre de uma maneira igual a todos os sujeitos,
o que diferencia essas pessoas, é a necessidade de recursos e caminhos
alternativos para a promoção do desenvolvimento. No entanto,
a maior dificuldade da sociedade está em cultivar formas culturais
que explorem, justamente, esses modos alternativos.
Os signos, símbolos, instrumentos e técnicas fazem parte
de um aparato cultural passado de geração em geração
conforme as especificidades da época histórica e da organização
em sociedade. Toda a cultura está organizada de acordo às
características psico-fisiológicas consideradas normais
do homem. Essas características dizem respeito à formação
de certas funções cerebrais e certos órgãos
como mãos, olhos, ouvidos etc.
Diante, portanto, de indivíduos que não correspondem ao
modelo “normal”, agravados por insuficiências da organização
psico-fisiológicas, nota-se um desvio no desenvolvimento natural.
Através de técnicas artificiais criam-se sistemas de signos
culturais para colaborar com o desenvolvimento de crianças cegas
ou surdas, por exemplo, Braille e língua de sinais. Estas crianças
cujo desenvolvimento está agravado por um déficit não
devem ser consideradas menos desenvolvidas, mas desenvolvidas de um modo
diferente e necessitadas de percorrerem outros caminhos, qualitativamente
diversos e particulares.
Na perspectiva vygotskyana, a deficiência e sua causa orgânica
são ultrapassadas por funções diferenciadas que se
originam a partir das vivências sociais da criança. “Essas
novas funções constituirão o plano da atividade interna
do sujeito e configurarão a estrutura externa da deficiência”
(CARVALHO, 1995:12). O orgânico que, inicialmente, era considerado
primário, passa a ser secundário dando lugar ao social que
se torna prioridade essencial. É na vida social que a pessoa com
deficiência encontrará materiais para a formação
de suas funções internas e conseqüentemente a promoção
de seu desenvolvimento.
Vygotsky aponta que a criança com deficiência não
se reduz ao déficit que possui, “pelo contrário, toda
sua personalidade age sobre o déficit, buscando formas de re-organização
e equilíbrio, de forma a superá-lo, compensá-lo ou
adaptar-se a ele” (CARVALHO, 1995:13). Essa compensação
não ocorre com a simples substituição de sentidos,
como por exemplo, da visão pelo tato, (a visão é
um sentido que oferece uma percepção global das coisas,
já o tato é seqüencial, não sendo equivalente
à visão de maneira alguma), ela é muito mais profunda
e envolve a “reorganização complexa de toda atividade
psíquica” (BATISTA e ENUMO, 2000:163), na qual a linguagem
possui função primordial, pois está envolvida diretamente
com as atividades psicológicas superiores e é uma das vias
alternativas, juntamente com as interações sociais, para
se promover o desenvolvimento da pessoa com deficiência.
Podemos conceber a identidade das pessoas com deficiência como algo
construído histórico e socialmente. Essa construção
vai marcando tanto as pessoas que experenciam algum tipo de lesão
ou deficiência como os olhares dos “outros” com quem
eles convivem, ou seja, a deficiência é constituída
através dos modos como as pessoas a vivem e sentem nas relações
sociais. Devido a isso há um caráter “naturalizante”
quanto à deficiência que sempre traz consigo atributos negativos
e que acabam por excluí-la da sociedade.
A deficiência não existe para a criança, até
que ela seja “marcada” por esse conceito em suas relações
sociais e que acaba por influenciar totalmente na construção
de sua identidade, como um ser deficiente (DELARI JR, 1994).
Não é a causa orgânica que impede o desenvolvimento
desses indivíduos, o que dificulta, seriamente, é o isolamento
social e cultural no qual são colocados. Portanto, neste aspecto,
as relações sociais são de extrema importância
para o desenvolvimento dessas pessoas consideradas pela comunidade como
deficientes.
Conforme Góes (2002), as vias alternativas, propostas às
pessoas com deficiência, devem promover a interação
social e uma inserção mais consistente na cultura. Para
se tornarem parte da sociedade como um todo, devem participar das práticas
sociais, entre elas, a dança e a música, pois é a
partir das vivências sociais que esses sujeitos irão superar
seu impedimento orgânico.
A música e a dança como práticas culturais
A música é uma produção cultural artística
e estética possuidora de um sistema de signos específicos
que estabelecem relação entre si e com o todo. "A significação
não extrapola o fato musical e pode variar a partir do ato de apreciação,
quando são articulados e doados os sentidos que transcendem a estruturação
lógica da linguagem" (BERNARDES, 2001).
Considerando esta compreensão do que seja linguagem musical pode-se
entender a música como uma organização lógica
de sons no tempo, representados por símbolos convencionais. Este
agrupamento de sons pode proporcionar estímulos fisiológicos
e emocionais nos indivíduos compositores e/ou apreciadores. Qualquer
sistema de signos precisa ser compreendido na busca de seus sentidos.
Desta forma, a música apresenta um significado, mas não
um significado único, imutável. "A música é
complexa e rica de potenciais de significações e sentidos"
(BERNARDES, 2001:77). Uma mesma música proporciona diferentes estímulos
em cada sujeito que a aprecia. Estes estímulos estão relacionados
com a experiência de vida individual e coletiva e com o nível
de conhecimento inter-relacionado. A música é uma linguagem
com diferentes interpretações que abrangem os fenômenos
artísticos e estéticos.
A estética “se coloca sempre aberta, sem se preocupar com
previsões ou modelos prévios a serem reconhecidos, pois
trabalha no nível do sentido, e os sentidos são sempre renovados
a cada obra (ou mesmo a cada novo contato com uma mesma obra)” (SCHROEDER,
2004: 213).
A dança, assim como a música, é “uma produção
do homem em suas relações com o mundo e que explicita diferentes
relações na sua constituição” (BRASILEIRO,
2003:56), é uma forma de linguagem corpórea, uma “arte
de expressão em movimento” (FIAMONCINI, 2003:66). Cada gesto
possui significados diferentes em diferentes contextos e podem ser lidos
de formas variadas, dependendo das vivências das pessoas que a assistem.
As pessoas com deficiência visual não podem ser privadas
destas práticas, é preciso, apenas, que sejam oportunizadas
a elas experiências sociais de uma forma que suas necessidades sejam
atendidas. Conforme Santos e Figueiredo (2003), a deficiência deve
ser pensada “como uma potencialidade a ser desenvolvida e não
estigmatizada” (p.108). Segundo Vygotsky (1997), a deficiência
é um espaço de produção do novo, assim, a
diversidade deve ser considerada como fator de enriquecimento, ainda citando
as mesmas autoras, “diferentes corpos criam diferentes danças”
(p.111), isso significa que não há a necessidade de um corpo
perfeito, segundo os padrões sociais, para nos expressar e comunicar.
Em todas as relações e práticas sociais carregamos
nossas experiências anteriores, assim a pessoa com deficiência
visual possui diversas experiências restritas, devido às
limitações e barreiras impostas pela sociedade que são
somadas a falta da visão. Através da vivência com
a música e a dança, acreditamos na possibilidade desses
sujeitos redimensionarem seus limites e suas dificuldades, explorando
melhor suas potencialidades e experimentando formas de expressões
diversificadas (FIGUEIREDO, TAVARES e VENÂNCIO, 1999).
A partir das contribuições teóricas explicitadas,
nos remetemos para a importância e a qualidade das vivências
e interações sociais para o desenvolvimento do ser humano,
seja ele deficiente ou não. No caso de pessoas com necessidades
educativas especiais, o grupo social deve ser responsável por promover
caminhos alternativos que facilitem a participação desses
sujeitos em todos os aspectos da sociedade, inclusive na dança
e na música, onde diferentes expressões, sentimentos e emoções
são vivenciadas pelo nosso corpo, indo além do que os nossos
olhos enxergam.
Formas de participação das crianças
deficientes visuais na música e na dança: as socialmente
determinadas e aquelas que podem acontecer.
A humanidade é diversificada e complexa, nela as pessoas se constituem
a partir das relações sociais que vivenciam, das interações
e experiências das quais participam e da sua imersão desde
o nascimento em um grupo cultural pertencente a um determinado contexto
histórico e social, conforme a perspectiva teórica citada
anteriormente. O comportamento humano não é visto como natural,
mas como algo produzido e transformado pela atividade humana coletiva.
Toda a História Social, o desenvolvimento das civilizações,
a organização política e os modelos educacionais
e de conduta são produtos especificamente da ação
do homem, das suas relações entre si (LÖWY, 1988).
Portanto, os modos de interação e participação
do homem em sociedade são frutos das transformações
e re-interpretações dos signos e significados, das práticas
sociais, dos valores e comportamentos historicamente construídos,
ou seja, frutos da dinamicidade do processo cultural. Neste caso, concebemos
a cultura como produção humana, considerando as ações
do homem sobre o mundo e a conseqüente produção do
universo simbólico (produção de signos e significados),
criação das linguagens particulares e sentidos diversos
(GUSMÃO, 2000). Toda atividade humana, ações, operações,
objetivos, elaborações teóricas, atribuição
de sentidos e significados e formação de imagens estão
em coerência com o contexto histórico-cultural no qual acontecem.
No que diz respeito ao desenvolvimento humano, a organização
social, tal como estruturada nos dias atuais, dita modelos e configurações
de indivíduos ideais e nega os considerados diferentes. Desta forma,
observa-se um processo de formação de imagens (do indivíduo
ideal e do outro) que transitam por nossas mentes e vidas acarretando
conseqüências sobre o que é vivido por nós e
atribuído ao outro (índio, pobre, negro, criança,
deficiente, idosos, entre outros).
Contraditoriamente à diversidade existente, a sociedade e suas
instituições, sendo uma delas a escola, buscam a homogeneização
dos sujeitos, esperando que estes apresentem características e
ritmos semelhantes. “São as macroestruturas que vão
apontar, a princípio, um leque mais ou menos definido de opções
em relação a um destino social, seus padrões de comportamento,
seu nível de acesso aos bens culturais (...)” (DAYRELL, 1996:141).
Isso ocasiona uma leitura equivocada perante os sujeitos que não
respondem conforme o que é esperado pela sociedade. Dentre essas
pessoas, geralmente estão os deficientes, vistos como incapazes,
porém, na realidade, o fracasso provém da falta de preparação
da sociedade em promover caminhos alternativos necessários à
promoção do desenvolvimento desses sujeitos.
Podemos dizer que há uma enorme contradição na sociedade
que defende que a integração das pessoas com deficiência
e não se modifica para que, de fato, estes sujeitos sejam incorporados
no seu cotidiano, respeitando e considerando suas peculiaridades.
Há alguns anos, os documentos legais (LDB/96, PNE/01, Série
Institucional/Seesp/94 e Declaração de Salamanca/94) estão
impondo certas mudanças na política educacional, mas este
fato não garante uma alteração de mentalidades e
valores que resulte num processo menos excludente. Há uma falta
de políticas específicas que atendam a essa clientela e
desenvolvam projetos de integração. Nesse contexto há
de se questionar qual a função social das instituições
que abrigam toda essa diversidade humana (VIZIM, 2003).
Inicialmente, nossas pesquisas de Iniciação Científica,
desenvolvidas junto às crianças com baixa visão e
cegas, enfrentaram algumas dificuldades quanto à relação
entre as pesquisadoras e as crianças, visto que as respostas dadas
e os comportamentos das crianças eram diferentes dos comumente
esperados. Não existia a resposta pelo olhar e a timidez era uma
forte característica de algumas crianças, uma vez que não
nos conheciam e não se sentiam à vontade para se expressarem
através da música e da dança.
Percebemos que em algumas crianças do CEPRE, o preconceito e as
experiências que vivenciam na sociedade e nas escolas, nas quais
são fracassadas – não apenas pela falta da visão,
mas principalmente por não serem oferecidas condições
adequadas a elas para que estas experiências sejam vivenciadas -
influenciam muito nas demais vivências, visto que as crianças
ficam extremamente retraídas. Mesmo nas atividades oferecidas no
CEPRE, que buscam oferecer o máximo de adequações
a estas crianças para que tenham experiências positivas,
podemos observar a resistência de algumas, que dificilmente participam
de atividades que exijam uma exposição um pouco maior, ou
que seja extremamente nova para eles. Acreditamos que esta reação
era uma forma de se auto-protegerem contra novos “fracassos”.
Exemplificando uma forma de resistência, uma das crianças
sempre começava a gritar quando se encontrava frente a uma dificuldade,
a algo novo ou a algo que não queria fazer. É muito visível
o incômodo sentido por essas crianças. Para qualquer pessoa
é complicado lidar com o novo e a dificuldade, mas para estes sujeitos,
a cobrança parecia ser muito maior, devido à “carga”
de incapacidade e fracasso que a sociedade lhes impõe.
A sociedade promove em suas relações sociais a criação
de imagens e papéis que são assumidas pelas pessoas. “De
certa maneira, a construção dessas auto-imagens interfere,
e muito, no desempenho escolar da turma e do aluno, refletindo também
no seu desempenho social, em outros espaços além da escola”
(DAYRELL, 1996:154).
Durante todo o desenvolvimento das pesquisas e a partir de nossa intervenção
contínua junto às crianças, estas foram construindo
uma relação com a música e a dança e começaram,
nas atividades, a assumirem papéis que as remetiam ao sucesso e
não ao fracasso. Como exemplo disto, temos uma situação:
havia um menino que além de possuir baixa visão, apresentava
uma enorme dificuldade para se locomover, em um certo dia, ele criou um
passo que foi utilizado em uma parte da dança que estava sendo
coreografada pelo grupo e começou a ensinar, voluntariamente, o
seu passo ao colega cego, mexendo em sua perna, em seus pés e esquecendo-se
que o menino não enxergava, chegou até a demonstrar o passo
em sua frente. Todos os dias esse menino demonstrava a todos o “seu”
passo.
Os modos de participação das diversas crianças nas
atividades das pesquisas, foram distintos nos ritmos, formas e intensidades.
Atribuímos a isso as condições de vida de cada criança
no que diz respeito ao acesso às práticas sociais, à
apropriação das produções culturais e a significação
atribuída à sua deficiência.
Estas formas de participação acontecem de maneiras diferentes
das socialmente tidas como ideais, pois estão relacionadas às
condições individuais do sujeito que não é
igual e comum a todos. As maneiras de apreciação musical,
de vivência da dança, ou seja, de expressar-se diante dessas
produções culturais e produzi-las, variam de um indivíduo
ao outro, dependendo de como suas ações são significadas
e recebidas pelos outros.
Muitas vezes acontece a negação da participação
dos deficientes nas práticas culturais, pois o que eles produzem
pode não estar dentro dos padrões histórica e socialmente
construídos, sendo classificados como incapazes, infantis e até
mesmo indisciplinados. Essa é a imagem de deficiente que perpassa
pela sociedade.
No entanto, quando dadas às condições para que estes
sujeitos possam participar e interagir com essas práticas, tendo
a liberdade de se expressarem, há uma nova leitura que pode ser
feita da imagem do deficiente. Este pode se desenvolver como qualquer
outra pessoa, sendo possuidor de historicidade, visões de mundo,
valores, sentimentos, emoções, desejos, comportamentos,
projetos de vida, capacidades e hábitos próprios.
Durante o período das pesquisas, as quais foram desenvolvidas em
um ano, construiu-se uma relação entre as crianças
e as pesquisadoras, intermediada pela música e pela dança,
na qual pode-se observar o desenvolvimento das crianças, nas suas
formas de se expressarem, de se colocarem expondo opiniões, na
apreensão de conceitos rítmicos e movimentos nunca antes
experenciados. Além disso, as crianças constituíram-se
como partes de um grupo, respeitando regras e espaços, realizando
trocas de experiências, conflitos, aproximações por
afinidades, ou seja, tudo o que é comum em um grupo de pessoas.
A apresentação feita no final das pesquisas no CEPRE aos
pais e responsáveis pelas crianças e a alguns profissionais
da instituição, causou uma grande surpresa aos que a assistiram.
Nela, foram apresentados, uma coreografia montada com passos e idéias
das crianças e um acompanhamento rítmico realizado com instrumentos
de percussão de uma música escolhida no grupo. Isso favoreceu
a potencialização das capacidades desses sujeitos de criarem
e se expressarem, fato que dificilmente é estimulado em seus cotidianos,
além de ampliar a auto-estima e a expressão cultural dessas
crianças.
Os próprios pais disseram que não sabiam que seus filhos
eram capazes de participar de coreografias e tocar alguns instrumentos.
A imagem que faziam de seus filhos refletia a concepção
de deficiente como pessoa incapaz e dependente, julgando-os sem condições
de participarem de tais atividades. Porém, diante das ações
das próprias crianças e das relações construídas,
os pais, os responsáveis, nós (pesquisadoras) e até
mesmo as crianças conseguimos olhar para a deficiência não
como um impeditivo para o desenvolvimento, mas como um espaço para
a criação do novo.
“A alteridade revela-se no fato de que o que eu sou e o outro é
não se faz de modo linear e único, porém constitui
um jogo de imagens múltiplo e diverso. Saber o que eu sou e o que
o outro é depende de quem eu sou, do que acredito que sou, com
quem vivo e por quê. Depende também das considerações
que o outro tem sobre isso, a respeito de si mesmo, pois é nesse
processo que cada um se faz pessoa e sujeito, membro de um grupo, de uma
cultura e uma sociedade. Depende também do lugar a partir do qual
nós nos olhamos. Trata-se de processos decorrentes de contextos
culturais que nos forma e informam, deles resultando nossa compreensão
de mundo e nossas práticas frente ao igual e ao diferente”
(GUSMÃO, 2003:87).
Buscamos, a partir desta discussão, refletir qual é a leitura
e a imagem que fazemos do outro, já que é nas relações
sociais que nós nos constituímos e somos constituídos
como seres humanos.
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