Adrianne Ogeda Guedes
Daniela Guimarães
Nuelna Vieira
Ruani Maceira Moraes
1 – Alicerces do trabalho pedagógico (no
cotidiano da Casa Monte Alegre):
Este trabalho tem como objetivo apresentar uma experiência
de alfabetização com grupos heterogêneos, desenvolvida
na Casa Monte Alegre Educação Infantil (CMA) há cerca
de 5 anos.
A CMA é uma pequena instituição particular, situada
em um bairro eminentemente residencial do Rio de Janeiro, Santa Teresa.
Fundado há 11 anos, este espaço recebe crianças de
0 a 6 anos, em grande parte moradoras das imediações.
Embora nesta instituição compreendamos que o trabalho de
formação do leitor e do escritor acontece em todos os grupos,
só começamos a alfabetizar de forma sistemática as
crianças de 6 anos há cerca de 5 anos. Antes disto, as crianças
saíam da instituição para serem alfabetizadas em
outras escolas.
Ao assumirmos esta nova dimensão no nosso trabalho, tínhamos
como desafio garantir que nossos objetivos mais amplos continuassem vivos
e presentes, mesmo em face do aspecto mais formal que a tarefa de dominar
o código escrito apontava. Ou seja, queríamos que, o fato
de incorporarmos a tarefa de alfabetizar, não excluísse
outros enfoques que caracterizam a identidade do projeto pedagógico
da Casa Monte Alegre.
Então, para situarmos a experiência de alfabetização
é necessário que possamos caracterizar mais amplamente esses
pressuposto teóricos e filosóficos que norteiam o trabalho
na CMA, tendo em vista que nosso movimento tem sido o de estar atentos
para a coerência entre as propostas desenvolvidas com os grupos
de alfabetização e os demais.
Nossos pressupostos, alicerçados em estudos dos campos da História,
da Educação e da Psicologia são os seguintes:
1 – Toda a criança é produtora de saberes e culturas;
2 – A aprendizagem acontece na ação da criança
sobre o mundo, ou seja, ela se dá na relação que
as crianças estabelecem com o meio, com os objetos e com o outro;
3 – É na possibilidade do encontro com o outro (criança/criança;
criança/adulto) que a criança desenvolve diferentes relações
pessoais, sociais e ambientais, tornando-se cidadã presente em
seu espaço-tempo, desenvolvendo o respeito, a escuta, a solidariedade
e a parceria;
4 – A valorização das diferenças é fundamental
em nosso trabalho. Apostamos nas possibilidades e necessidades de cada
corpo, na pluralidade de cada um.
5 - As diferentes formas de expressão são enfocadas no dia
a dia: dança, música, desenhos, construções,
dramatização, textos, entre muitos outras.
6 – Reconhecer o valor social assumido pela leitura e pela escrita
é um dos desafios do cotidiano do nosso trabalho, que se expressa
em ações como: ler para o outro, escrever cartas, mensagens,
bilhetes, histórias para serem partilhados.
7 – A comunicabilidade das experiências é fundamental.
As produções das crianças ganham lugar e se espalham
pelas paredes da casa e tomam outros espaços do próprio
bairro (exposições em centros culturais, convites que se
espalham pelo comércio local, etc). As cartas são levadas
para o correio e os cadernos servem para registrar as experiências
vividas. Desta maneira, buscamos garantir espaço e valorização
da expressão infantil colocadas em suas produções.
Pautado nesses pressupostos, o trabalho da CMA caracteriza-se pela valorização
dos afetos, pela promoção de encontros entre crianças
de idades variadas e também com diferentes adultos envolvidos com
o compromisso pedagógico. Diferentes! Diferença é
uma palavra presente em nosso trabalho. Entendemos que todo e qualquer
grupo é uma multiplicidade de corpos, onde cada um vive sua potência
na expressão da sua singularidade. Viver a potência é
aquele instante onde reconheço o que é meu, o que me pertence.
É um lugar onde o corpo se integra.
De certa forma, é o que temos em comum que produz as diferenças
entre nós, o que, por sua vez, depende de nossos inter-relacionamentos.
A diversidade é mais uma função das relações
que unem os grupos do que algo que os leva ao isolamento. (KUPER, Adam.
P.307. 2002).
Um grupo é composto por pessoas, sejam elas crianças e/ou
adultos, que trazem para ele suas histórias e experiências.
Como a singularidade, ou seja, a diferença pode aparecer no grupo?!
Para trabalhar com a diferença é preciso criar um campo
para que esta possa aparecer. É preciso acolher cada um que chega.
É preciso que o educador possa estreitar a relação
com cada um, em contato com os desejos, as necessidades, os afetos, o
jeito, as possibilidades do outro. Não para julgar, conceituar.
Mas para proporcionar que cada um encontre a expressão do próprio
corpo e possa compartilhar com o coletivo.
Precisamos de um meio acolhedor, seguro. Só assim é possível
a exposição pessoal. Para crescer é preciso exposição!
Esta é uma tarefa complexa para todos os grupos: construir um meio
acolhedor onde cada um possa viver o que lhe for possível e necessário.
Um meio onde a diferença possa somar e conjugar infinitas possibilidades
de experiências, expressões, histórias e conhecimentos.
Não é uma tarefa fácil em tempos como os nossos em
que a busca pela homogeneização é um convite constante!
Acolhimento, segurança nas relações e exposição
das diferenças são eixos fundamentais do trabalho.
No que diz respeito a esta temática, Kuper afirma que:
"os especializados em estudos sociais vêem
um processo de americanização (chamados de globalização),
onde o resto do mundo está aparentemente condenado a repetir a
peça de teatro cultural que estreou na metrópole. Sujeito
à mesma mídia, o mundo todo irá encenar as mesmas
lutas." (KUPER, Adam. P.307. 2002).
Em nossas práticas de produção cultural
com as crianças, no cotidiano de nosso trabalho, buscamos constituir
espaços onde também a relação entre as crianças
e as letras, as escritas e as leituras possam mobilizar prazer, deslumbramento
diante das descobertas e, simplesmente, alegria.
Com relação à leitura e escrita propriamente, nosso
trabalho na CMA tem como objetivo que as crianças apropriem-se
do ler e escrever como possibilidades de expressão de emoções
e idéias, combinação de elementos arbitrários
na concretização de suas fantasias e histórias, para
que ler e escrever sejam arma e sonho na vida de cada uma, hoje. E, para
que sejam inscritos como formas de exercício de potência
e prazer para toda a vida.
Buscamos a criação de espaços onde ler e escrever
articulem-se com a paixão de conhecer o mundo, desvendá-lo
e, com a magnífica possibilidade de fixar algo dele no papel.
No que diz respeito ao trabalho realizado com grupos heterogêneos
composto por alfas e não-alfas , os primeiros assumem dentro do
grupo o lugar dos que podem contribuir com um conhecimento que, naquele
momento, estão mais apropriados que os demais: ler e escrever alfabeticamente.
As crianças do grupo (e também da escola de modo geral),
reconhecem isso e é muito comum que elas busquem auxílio
dos alfas para ler ou registrar algo de seu interesse. Os questionamentos
dos não-alfas provocam uma reflexão nos alfas e vice-versa.
É na intensidade das trocas que as crianças vão experimentando
diferentes papéis. Ora uma criança está respondendo,
ou seja, apropriando-se dos seus saberes e compartilhando com o outro,
ora essa mesma criança poderá estar questionando, expondo
alguma dúvida. É essa mobilidade dos papéis que expõe
as crianças a refletirem sobre o mundo que as rodeia. O mesmo acontece
com relação à língua. Neste sentido, entendemos
que mesmo aquelas crianças que não estão vivendo
a sistematização do processo de alfabetização,
estão no curso dele, experimentando-se cotidianamente como leitores
e escritores. A relação entre os dois (alfas e não-alfas)
garantem desafios que se desdobram em potencialidades para ambos.
Apesar de designarmos algumas por uma aparente negativa ("não-alfa")
a força do papel de cada uma é muito valorizada no grupo.
A presença das criança que não estão envolvidas
no compromisso de sistematização da leitura e da escrita
contribui para que todas as linguagens estejam em cena o tempo em todo,
em cada projeto vivido.
As crianças entendem que saber ler e escrever não é
um aval que faz delas crianças “mais importantes” que
outras. Muito pelo contrário. Ter crianças num mesmo grupo
que vivem o desafio de sistematizar a leitura e a escrita e outras que
não estão vivendo isso, é mais uma possibilidade
de garantir encontros cada vez mais ricos, expressivos, solidários,
produtivos, onde todos os saberes têm o seu valor, e onde cada experiência
ganha um sabor particular. "Fazer o teatro" de uma história
(como dizem as crianças), ou desenhá-la são atividades
tão desafiadoras e gostosas, quanto escrevê-la ou escrever
seu título.
Enfim, de acordo com nossos pressupostos, entendendo que toda criança
produz saberes e culturas e que é no encontro com outras crianças
e adultos que estes saberes se constituem, percebemos que a idade cronológica
passa a ser um fator de pouca relevância na construção
destes saberes. O conhecimento faz-se presente na relação
onde o adulto assume o papel fundamental de interlocutor, desafiador e
promotor de encontros.
2 – Experiências alfabetizadoras: a diferença
em cena.
Passemos agora às experiências propriamente
ditas. Desde o primeiro ano do trabalho de alfabetização
na CMA, buscamos estruturar o grupo mesclando crianças de diferentes
idades. Desse modo, a faixa etária destes agrupamentos oscila entre
4 anos e meio e 6 anos.
Esta composição instigou-nos sempre a pensar a diferença
em cada proposta planejada. Era preciso levar em conta os diferentes momentos,
saberes, desejos de cada criança. Além disto, era também
o desafio descobrir os pontos comuns, os interesses que uniam, a identidade
do grupo.
Na verdade, a “diferença” explícita para todos
era que havia um “ponto de chegada” para as crianças
que sairiam da escola ao final do ano rumo à primeira série.
Elas tinham como meta apropriarem-se da escrita e leitura com desenvoltura
suficiente para ingressar com segurança num novo momento escolar.
Não acreditávamos que pelo fato de algumas das crianças
terem esta meta como perspectiva, deveriam ser separadas das demais. O
critério para a separação não poderia ser
os conteúdos do que deveríamos ensinar. Havia muitas possibilidades
de trocas e construções quando misturávamos as idades
e foi nisto que apostamos.
Neste sentido, para garantir que a diferença fosse algo a somar
e não a “dificultar” o trabalho, sabíamos que
seria imprescindível termos clareza das diferenças com relação
aos conhecimentos sobre leitura e escrita das crianças. Era também
preciso que, além disto, discutíssemos amplamente os desafios
adequados, discriminando as necessidades específicas de cada uma.
Não queríamos que o fato de termos crianças em alfabetização
fizesse com que planejássemos a maior parte do tempo propostas
voltadas para a leitura e a escrita. Era fundamental garantir outros espaços
de expressão. Era também fundamental que, mesmo nos momentos
voltados para ler e escrever, distinguíssemos os desafios apropriados
para cada uma. Além disso, era importante pensarmos em como organizar
o grupo de modo que, mesmo que os desafios precisassem ser diferenciados,
houvesse momentos em que estar juntos, produzir coletivamente enriquecesse
as propostas. Trata-se de perceber a necessidade de olhar o individual
e a riqueza do compartilhar.
Pensando nisso, vimos que o primeiro passo do início do ano letivo
seria mapear as diferentes formas de expressão de cada criança.
Esta avaliação não leva em conta apenas o que a criança
sabe sobre leitura e escrita, mas também a forma como ela se expõe
no grupo, seu modo próprio de estabelecer relações,
suas dificuldades, seus interesses e desejos. Assim, uma criança
que se mostra muito desenvolta no aprendizado da língua escrita,
pode revelar dificuldades em produzir coletivamente, ou mesmo em integrar-se
em brincadeiras que envolvam movimento. Para esta criança, será
importante pensar em organizações grupais em que ela possa
ter experiências de trabalhar coletivamente, em propostas que ela
se engaje pela via da corporeidade.
O papel que cada uma precisa viver no grupo é também considerado.
Para uma criança que, por exemplo, mostra-se muito insegura de
seu saber, pode ser interessante integrar-se em alguns momentos num subgrupo
em que ela seja a “mais velha”, podendo-se afirmar como potente,
assumindo lugar de quem sabe no auxílio das outras.
O importante nesta avaliação inicial, que na verdade é
constantemente repensada à luz do que vamos percebendo ao longo
do desenvolvimento do trabalho, é que as crianças possam
viver juntas experiências significativas, onde estejam garantidos
desafios pertinentes às necessidades de pequenos subgrupos e até
mesmo individuais.
O grupo não trabalha o tempo todo junto, subgrupos são compostos
tendo em vista o desenvolvimento da autonomia e do aprendizado de construir
junto. O professor não assume papel centralizador, estabelecendo
uma tarefa igual para todos a todo o momento. De um modo geral, todos
os dias existem momentos coletivos (de grupo inteiro integrado) e outros
de trabalho em subgrupos (trios, duplas, quadras). Esta estruturação
favorece também o aprofundamento no estudo e/ou na produção,
uma vez que a troca e a cooperação ampliam as possibilidades
de descoberta.
Colocaremos em foco neste momento, algumas experiências vividas
nos últimos dois anos letivos (2003 e 2004) e também neste
que estamos vivendo (2005). Apresentamos três grupos: Grupo Gelo
, constituído de 13 crianças com idades entre 4 e 6 anos,
estando 4 delas no último ano do processo de alfabetização;
Grupo do Desenho, constituído de 9 crianças, todas elas
com idade entre 5 anos e meio e 6 anos e concluindo o processo de alfabetização;
Grupo Misturado, constituído de crianças que variam entre
3 anos e meio e 6 anos; duas delas concluindo o processo de alfabetização.
Vale destacar que as diferenças etárias oscilaram nestes
três grupos, constituindo desafios diferenciados a cada ano e, com
o resultado obtido, fortalece-se a confiança em nossa opção
de integrar diferentes faixas etárias.
Isso é muito interessante porque se para muitos educadores alfabetizar
crianças com a mesma idade é mais “fácil”,
vemos que muitas vezes esta “facilidade” se torna uma arma
poderosa para a sonegação da diferença e, principalmente,
para o insucesso do processo alfabetizador. Em suma, mesmo quando um grupo
de crianças que estão sendo alfabetizadas apresenta a mesma
faixa etária, os saberes e os conhecimentos que estas crianças
dispõem sobre o mundo e, principalmente sobre a leitura e a escrita,
na maioria das vezes são diferentes.
O primeiro grupo, o Grupo Gelo, viveu inúmeras experiências
ricas e produtivas durante o ano de 2003. Destacamos aqui os projetos
“O céu e seus mistérios” e “Poesias”.
A valorização das diferentes linguagens infantis é
ponto norteador do nosso trabalho, a presença da relação
com a arte, com a cultura e o saber científico é intensa.
As temáticas geradoras de experiências (céu e poesias)
são fruto do desejo trazido pelas crianças, captados em
diálogos, perguntas etc.
No projeto “O céu e seus mistérios”, para mergulhar
a fundo nos mistérios celestiais, as aventuras foram infindas.
Pesquisamos livros sobre o tema, visitamos o planetário, realizamos
dramatizações, escutamos músicas que falavam do assunto;
enfim, encontramo-nos com diferentes formas de saber sobre o mesmo assunto.
A medida que íamos nos aprofundando no tema, íamos registrando,
também de diferentes maneiras o nosso conhecimento. Surgiram desenhos,
pinturas, histórias, maquetes, listas de diferentes elementos que
compunham o céu, etc.
Pensar nas inúmeras possibilidades de desdobramentos que poderiam
estar asseguradas ao vivenciar cada projeto não era o suficiente.
Era preciso também, e, sobretudo, pensar como realizar cada uma
destas propostas, quais os desafios pertinentes a cada criança
e qual o lugar que as crianças que estavam concluindo o processo
de alfabetização assumiriam naquele momento. Essa tarefa
não é fácil, mas em um trabalho que visa a valorização
da diferença enquanto algo que soma e potencializa, ela é
primordial.
Na produção de uma história coletiva, por exemplo,
pensamos o papel dos alfabetizandos (os “alfas” como chamávamos)
como escribas. Para a produção de uma lista das coisas que
têm no céu, organizamos duplas ou trios com a presença
de um “alfa” que assumia o papel de escriba do pensamento
do outro. Depois, todos desenham juntos no mesmo papel. Numa visita ao
Museu, os “alfas” são os leitores das placas explicativas.
Na confecção de um convite para os demais grupos, temos
alguns desenhistas para produzir a ilustração, enquanto
outros cuidam do texto. Cada um expõe suas habilidades e isso é
valorizado no grupo. A apresentação para o grupão
de algo produzido em um subgrupo é fundamental no movimento de
conferir sentido à produção coletiva.
Experiências igualmente significativas foram vividas no Projeto
Poesias, onde estavam garantidos dois pilares de sustentação
dessas experiências: o encontro com a obra de vários poetas
brasileiros e a possibilidade de criarmos nossas poesias (coletivas e
individuais), desdobrando-se em produções plásticas,
literárias e corporais.
Eis o exemplo da poesia produzida livremente pro um menino em seu caderno
depois do mergulho em várias poesias de autores consagrados (é
clara a alusão ao poema de Cecília Meireles, "Ou Isto
Ou Aquilo"):
OU EU SEI
OU EU NÃO SEI
VIVO ESCOLHENDO O DIA INTEIRO
OU EU SEI
OU EU NÃO SEI
(Lui)
Agora, daremos destaque ao Grupo do Desenho (2004). Num
primeiro momento, se tomamos como ponto de partida a organização
por faixa etária, pode parecer que este foi o grupo onde, como
dissemos anteriormente, alfabetizar seria mais “fácil”
tendo em vista a maior homogeneidade etária. Engano! As nuances
das diferenças eram mais sutis e mais pontuais, exigindo do educador
um olhar atento e cuidadoso. Identificar quais as necessidades e os desafios
que precisavam ser abordados para cada criança foi o primeiro passo.
Enquanto uns dominavam a língua escrita com desenvoltura, outros
estabeleciam esta relação mais dinâmica com a escrita.
Alguns escreviam silabicamente, enquanto outros, dominavam a escrita alfabética.
Havia também aqueles que não estavam seguros o suficiente
e não conheciam as letras do alfabeto. De fato, a diferença
entre as crianças é a única certeza que temos no
cotidiano do trabalho pedagógico e por isso, ela deve ser o nosso
maior valor.
O Grupo do Desenho viveu três projetos norteadores: “Aranhas
e Morcegos”, “Caricaturas” e “Bruxarias”.
As propostas de trabalho vividas nestes projetos e que envolviam leitura
e escrita eram pensadas ora para produções coletivas, onde
todo o grupo pudesse criar coletivamente uma história, onde o adulto
assumia o papel de escriba; ora em duplas, trios ou pequenos subgrupos,
como para fazer listas, produzir histórias que se transformariam
em livros, etc. O mais importante na elaboração destes subgrupos
era garantir a presença de crianças que dispusessem de diferentes
saberes sobre a língua, para que o confronto desses saberes estivesse
assegurando novos saberes.
Uma situação que exemplifica este confronto de saberes em
prol da construção do novo aconteceu no Projeto Morcegos.
Na escrita em dupla de uma lista com o nome de bichos que, assim como
os morcegos, tivessem hábitos noturnos, tínhamos, por exemplo,
uma criança no estágio silábico de escrita das palavras
e outra no período alfabético. Num primeiro momento, pedimos
que a primeira criança dissesse para a outra o que era para ser
escrito. Num segundo momento, propusemos o inverso, ou seja, a criança
que estava alfabética diria à silábica quais os bichos
que precisavam ter na lista. O importante é que o educador pontue
para as crianças que dominam o código, que é fundamental
que elas não façam pelo outro. Que respeitem a escrita do
amigo e o ajudem a identificar letras que faltam ou que aparecem sobressalentes
com perguntas do tipo: você acha que para escrever tal coisa, estas
letras são suficientes? Vê se falta alguma letra? Você
acha que está faltando alguma coisa para escrever esta palavra
ou este número de letras está bom?
Serão estes conflitos de saberes que irão possibilitar a
construção de novos.
O terceiro grupo, o Grupo Misturado (2005) viveu até hoje um projeto
que tomou dimensões amplas: o projeto Homem das cavernas. No início
do ano, o foco central era a própria estruturação
das crianças. De fato, integravam-se dois grupos do ano anterior
e o desafio era que desta integração se constituísse
um único grupo. Tal desafio foi sendo vivido ao longo dos primeiros
meses e a desorganização inicial foi cedendo lugar a uma
sintonia, construída a partir das experiências partilhadas.
No início, foi preciso mapear qual o conhecimento que cada criança
tinha a respeito da língua (se reconhecia as letras dos nomes ou
não, se nomeava ou não as letras do alfabeto; se estabelecia
a relação som/grafia entre elas ou não). A partir
daí, foi possível pensar na composição de
trios e duplas para a elaboração de propostas. O mais importante
deste momento, como em todos os outros, era não atribuir à
diferença existente entre as crianças nenhum juízo,
colocando-as como as que sabem mais ou menos no decorrer do processo.
Era preciso mapear a diferença com o objetivo de possibilitar parcerias
ricas e produtivas. Aos poucos, o grupo foi ganhando uma sintonia que
o faz peculiar. As crianças se sentem muito à vontade para
se colocar e dar idéias. A criatividade encontra espaço
garantido e os saberes trazidos pelas crianças vão ganhando
corpo em projetos e propostas que os valorizam.
É importante dizer que para pensarmos na formação
de subgrupos para escrever algo (por exemplo), é importante que
a distância dos saberes das crianças (sobre a escrita) não
seja muito grande (para que um represente desafio para o outro). Se não,
há o risco daquele que já escreve fluentemente de forma
alfabética atropelar o que está descobrindo as letras.
É importante também levar em consideração
que na formação destes subgrupos (especialmente duplas)
onde o desafio é a escrita de algo, onde um vai contribuindo com
as idéias e o outro escrevendo, as crianças confrontem-se
especialmente com a questão do tempo da escrita; geralmente o que
não está escrevendo tende a correr com a fala e é
desafiado a acompanhar o tempo do outro que está pensando a escrita
(geralmente, um tempo mais lento).
Nestas propostas em dupla, é interessante que o escriba seja o
não-alfa (viver as duas alternativas é algo rico, sempre);
pois o alfa (com o conhecimento mais avançado) engaja-se na produção
escrita do não-alfa, incentivando-o a colocar mais letras, fazer
espaços entre as palavras, etc
Mais uma vez reiteramos que a exposição para o grupão
do que foi produzido em subgrupos é sempre fundamental. Trata-se
de uma nova forma de posicionamento acerca da produção (dizer
o que foi feito, como foi feito para o outro, implica em "refletir"
sobre o produto e o processo de elaboração dele). Mesmo
quando as propostas são individuais (por exemplo, cada um vai escrever
ou desenhar uma parte de uma história em seu caderno), incentivamos
as trocas de idéias, a busca de modelos que possam inspirar a produção
de cada um (olhar os murais que temos na sala, com textos já produzidos;
perguntar para o amigo uma dúvida). Sentar em subgrupos, ter a
sala repleta de muitas produções culturais das crianças:
pinturas, objetos modelados, textos, livros, mobiliza a sensação
de pertencimento e auto-confiança, através das quais as
crianças vão se sentindo confiantes para experimentarem-se
no que sabem, no que estão conquistando, e, em seguida, também
no quê não sabem.
É comum escutarmos "não sei" diante de um outro
que sabe. As crianças vão reconhecendo as limitações
do seu saber, à medida que vão descobrindo a arbitrariedade
do mundo letrado. Este “não sei” revela que ela já
sabe que não sabe (o que é valioso). A partir daí
vamos investindo naquilo que cada um pode ("mas o que você
sabe?" " qual é o seu melhor?").
Esta é uma tarefa essencial e complexa que exige do professor muita
escuta e sensibilidade para avaliar as necessidades e a partir daí
propor desafios do tamanho de cada um. A valorização do
saber de cada um é um desafio que se faz presente todos os dias,
fazendo-nos conscientes de que a diferença jamais pode ser entendida
como desigualdade.
Viver as diferenças existentes entre as crianças de modo
geral, sobretudo, entre alfas e não alfas é mais que o desejo
de valorizar as potencialidades de cada um e descobrir muitas possibilidades
de conhecimento nestas diferenças. No caso da CMA, o lugar dos
alfas marca também um momento de despedida, com o início
de uma nova etapa do processo de escolarização. Relaicona-se
também com fazer novos amigos, conhecer novos espaços, novos
professores... enfim... tem haver com continuar crescendo.
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