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  A BIBLIOTECA COMUNITÁRIA, A LITERATURA INFANTIL E O LIVRO ARTESANAL NA ASSOCIAÇÃO DE MORADORES DE ÁGUA MINERAL

Cíntia Moreira
Isabella Massa

É preciso que se reconheça a leitura como condição indispensável ao desenvolvimento social e á realização individual.

Eliana Yunes

Nossa comunicação tem duas partes. Na primeira procuramos situar o projeto no qual a Biblioteca Comunitária de Água Mineral está inserida. Na segunda descrevemos oficinas com o livro artesanal ali desenvolvidas.

1. Histórico do projeto

A proposta aqui apresentada é parte de dois outros projetos desenvolvidos pela equipe do CIESPI, o projeto Rede Brincar e Aprender e o projeto Biblioteca Comunitária: Transformando Espaços, que tiveram início em 2001 e 2005 respectivamente.

Estes projetos visam o fortalecimento dos elos das crianças em suas próprias famílias e comunidades, evitando que migrem para as ruas ou se envolvam em atividades perigosas.

Os projetos de pesquisa-ação, coordenados pelo CIESPI, têm o compromisso de participação ativa no processo se sistematização, produção e socialização da informação e das práticas sociais, bem como visam criar um circuito dinâmico de trocas de vivências onde sejam partilhadas dúvidas, incertezas e novos caminhos encontrados pelas famílias, profissionais, organizações populares e instituições voltadas ao atendimento de crianças e jovens. Pretende-se por meio da criação e do intercâmbio de informações entre diferentes comunidades, expandir circunstâncias favoráveis ao desenvolvimento dos potenciais das crianças em seus locais de moradia

Descrição do projeto

Água Mineral é uma comunidade na qual a maior parte dos moradores pertence às classes populares e situa-se no município de São Gonçalo, vizinho ao Rio de Janeiro. A estrutura urbana da região é pouco aparelhada no que se refere a recursos recreativos e culturais para as crianças que ali habitam. A chegada da biblioteca em 30 de julho de 2004, organizada na Associação de Moradores de Água Mineral, trouxe uma nova perspectiva no plano das alternativas culturais, de lazer e de conhecimento para as crianças moradoras do local. Devido aos poucos recursos com que sobrevivem comunidades como a deste projeto, a leitura e demais atividades de arte-educação, vitais para o desenvolvimento de crianças, não fazem parte de suas vidas. A principal dificuldade constitui mudar este tipo de postura, oferecendo espaços e projetos numa perspectiva transformadora desta realidade e com longa duração.

Proposta

A equipe do Projeto Rede Brincar e Aprender do CIESPI entende que educação é um processo a longo prazo, construído no cotidiano, através de pequenos gestos, a partir da sistematização de ações, de intervenções que tragam a possibilidade de novos conhecimentos, marcando a experiência emocional da criança com uma visão mais humanista, respeitosa, fazendo-a aos poucos, conhecer seus direitos, deveres e responsabilidades. Tornando-a dona de suas opiniões e pensamentos. Permitindo à ela (re)criar o mundo que está a sua volta.

Transformações profundas não se dão através de ações pontuais. Em educação pode-se ter urgência, mas nunca pressa. A criança é um sujeito social criado na cultura e pela cultura. Crescer leva tempo.

Muitas bibliotecas implantadas ao longo do país acabam perdendo sua função difusora do conhecimento e formadora de leitores, tornando-se apenas depósitos ociosos de livros porque não tiveram uma proposta de trabalho organizada e vinculada à leitura prazerosa, desencadeadora de idéias e projetos capazes de criar parcerias usuárias das bibliotecas.

A implantação dos módulos de capacitação, necessários para o funcionamento do espaço, vem a fortalecer o conceito de biblioteca e de formação de leitores, como um caminho para o exercício da cidadania e ampliação de oportunidades, principalmente para a formação de crianças e adolescentes. É um processo que favorece o desenvolvimento de um sentido de pertencimento e de apropriação desse espaço coletivo, pois ele tem como base a participação e a valorização dos saberes comunitários e locais.

Dentro desta visão propusemos este módulo de capacitação de dinamizadores da biblioteca de Água Mineral ( o primeiro módulo ocorreu no ano de 2004 e foi um curso de contadores de histórias, com duração de três meses), com vistas a expandir a atuação dos voluntários da biblioteca, sua manutenção e o planejamento de trabalho tendo a literatura infantil como eixo principal. O Curso de capacitação foi planejado para um grupo de 10 pessoas, chamadas por nós de dinamizadores comunitários e teve duração de quatro meses, de março a junho de 2005.

Objetivos da capacitação

. Oferecer subsídio (treinamento e materiais) na formação de um grupo de dinamizadores da biblioteca de Água Mineral;

. Oferecer um curso no âmbito teórico e prático para uma melhor atuação em relação ao funcionamento da biblioteca;

. Orientar e atuar junto ao grupo de capacitação na busca de parcerias que tenham como alvo as crianças e a biblioteca.

. Organizar e planejar junto ao grupo o funcionamento da biblioteca, desenvolvendo projetos de leitura.

Oficina de livros artesanais

A oficina de Cíntia Moreira esteve vinculada ao módulo de capacitação de dinamizadores durante um mês, com o intuito de promover uma maior integração do grupo e enriquecer o processo criativo; atuou tanto no campo das idéias, como no campo do trabalho manual para a confecção de livros artesanais, permitindo com isso, que todo processo criativo fosse realizado e decidido em conjunto.

Muitas técnicas foram usadas ao longo do mês: relaxamentos, improviso teatral, brincadeiras, criação de textos, colagens, criação de maquetes e livros.

2. Biblioteca comunitária e livro artesanal

A fim de permitir que nosso texto avance com liberdade entre teoria e prática, optamos por prosseguir na forma de perguntas e respostas.

P - Por que relacionar uma biblioteca comunitária ao livro artesanal?

R - A biblioteca comunitária de Água Mineral, quando disponibilizou um acervo variado de livros ao público local, buscava incentivar a leitura, num bairro onde os moradores pertencem às classes populares. Numa ambiência onde a comunicação e as trocas de saber acontecem, em grande medida, no campo da oralidade, a leitura precisa ser conquistada.

Realizamos oficinas com o livro artesanal, com a intenção de atuar sobre o livro, para conquistar a leitura. O trabalho com a equipe local de dinamizadores da biblioteca teve como objetivo alcançar a leitura, a partir da experiência concreta com a confecção de livros artesanais. Propusemos diferentes estratégias para a confecção do livro artesanal. Nestas estratégias a oralidade, a dramatização, a leitura oralizada e a leitura silenciosa, de um lado, e, a produção escrita e plástica, de outro, se intercalavam.

P - Explicite o que seria atuar sobre o livro?

R - Existem várias maneiras para se chegar ao livro em geral, e ao livro artesanal em particular. Nosso trabalho com a equipe de dinamizadores da biblioteca comunitária de Água Mineral percorreu três trajetórias.

A primeira partiu de um livro de literatura infantil, o Calunga, de Joel Rufino dos Santos. Iniciamos com contação de história, depois cada um criou com massinha e argila o seu próprio Calunga. Em seguida alcançamos a expressão escrita, quando cada um, além de perguntar à figura que havia moldado, - Calunga, Quem é você?, deixava o seu personagem falar por escrito. Por fim chegamos ao livreto Calunga: quem é você?, de criação coletiva, com fotos das várias esculturas criadas pelo grupo, ao lado de suas respectivas histórias.

A segunda surgiu do desejo de explorar o tato, o olfato e o paladar, sentidos não muito em evidência, num mundo hoje tão pleno de estímulos visuais. Iniciamos com a tentativa de rememoração de uma Água Mineral do passado, da época dos avós dos atuais moradores. Para isso lançamos mão da dramatização, a fim de facilitar uma vivência que se remetesse ao passado. Representando em duplas, os dinamizadores criaram improvisações teatralizadas, na qual um dos personagens, Vovô Cansado, contava histórias do passado ao Neto de Vovô Cansado. Para ambientar a cena, apenas o personagem Vovô Cansado precisava se caracterizar. Usava um par de chinelos, óculos com lentes cegas, uma capa a servir de agasalho e uma bengala. Poucos objetos complementavam a ambiência cênica dos esquetes teatrais: um banquinho e uma cadeira, além de uma fruteira com frutas existentes naquela região, no passado: carambola, goiaba, tangerina e banana. Sugerimos que as histórias fossem registradas durante as várias improvisações. Além das histórias do Vovô Cansado, estes livretos de criação coletiva, traziam um modelo tridimensional em pano, de cada fruta experimentada pelo avô, e uma colagem, na capa, que registrava plasticamente um fragmento de cada história.

A terceira procurou desenvolver um livro-jogo, a partir do mapa do bairro. Primeiramente o grupo transpôs para o plano do chão, uma trilha para pontuar os locais significativos do bairro, entre dois marcos de delimitação externa. Imaginando o percurso de duas pessoas entre um extremo e outro, o grupo ambientou os principais locais da região, utilizando sucata e outros materiais, na criação de uma espécie de maquete. Do chão, o grupo passou para a mesa, onde o mapa foi redesenhado em escala reduzida, sofrendo as adaptações necessárias. Novamente foram marcados, na trilha principal, aqueles lugares mais significativos da região. Depois o grupo pontuou as casas para um jogo de trilha. Com a ambiência pronta, um carrinho e uma bicicleta em m

iniatura, além de um par de dados, quatro jogadores assumiram papéis de quatro integrantes de uma família da região e iniciaram um jogo de representação, conduzido, em parte, pelos outros participantes da equipe de dinamizadores, que opinavam sobre a direção da cena.

P - O que estas três estratégias têm em comum?

Primeiramente precisaríamos pensar a leitura sob duas óticas, em paralelo. A primeira a da leitura das letras, num âmbito mais específico, a segunda a da leitura do mundo, num âmbito mais amplo. Ambas se interpenetram e uma favorece a outra.

Uma forma de estimular a leitura numa biblioteca comunitária, talvez seja favorecer o caminho do leitor nas idas e vindas entre estas duas perspectivas de leitura. Propor dinâmicas que transitem entre a leitura da escrita e a da expressão plástica, e a leitura do mundo, da expressão oral e dramatizada.

Por outro lado a formação do leitor, em classes populares, vem ao lado da perspectiva de formação no âmbito da cultura escrita, o que compreende o desenvolvimento da expressão escrita.

P- De modo suscinto, como poderia ser pensada a formação do leitor em bibliotecas comunitárias?

R - Numa perspectiva de formação continuada em leitura e em escrita, em situações de leitura e escrita com peso significativo para o grupo. O avanço na leitura requer o avanço na narratividade que transita entre a oralidade e a escrita. Para a formação do leitor em classes populares, é bom trazer numa das mãos os livros, no nosso caso os de literatura infantil, e na outra os materiais e os gestos das dinâmicas a serem desenvolvidas.

 
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