Juçara Gomes de Moura - Universidade Federal
de Goiás-Campus de Catalão-UFG-CAC
Nas últimas décadas, o tema sobre o uso
e funções sociais da leitura e da escrita tem se constituído
como uma preocupação do meio acadêmico. Discute-se
acerca da aprendizagem do aluno, o papel das escolas públicas,
a desconsideração, no processo de alfabetização,
dos aspectos culturais, políticos econômicos, ou seja, a
não atribuição ao sentido e significado dessa dimensão
social no contexto escolar.
Estudiosos apontam que a leitura e a escrita não acontecem apenas
no ambiente escolar, mas se estendem às mais variadas esferas da
sociedade como no lar, no trabalho, nas ruas, mas a escola insiste em
desenvolver a leitura e a escrita descontextualizada do contexto social.
O trabalho com a alfabetização é exercido de forma
mecânica, fragmentada, traduzindo atividades repetitivas que visam
apenas à codificação e a decodificação
da língua portuguesa desconsiderando o uso e funções
sociais da leitura e da escrita.
Assim, os alunos lêem e escrevem, mas não têm uma compreensão
da leitura. Essas afirmações são também recorrentes
dos resultados de avaliações como Sistema de Avaliação
do Ensino Básico (SAEB) e Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM). Os dados das avaliações permitem afirmar que as
práticas sociais da leitura e da escrita devem assumir natureza
relevante no âmbito das discussões sobre formação
de professores e educação para a cidadania.
Historicamente, no Brasil, o conceito de sujeito alfabetizado sofre modificações.
Dados coletados pelo censo, Pesquisas Nacionais por Amostragem de Domicílios
(PNADS), apontam que na década de 40, alfabetizado era aquele que
soubesse escrever o próprio nome ou um simples bilhete. A partir
da década de 50 o censo tem utilizado como critério de sujeito
alfabetizado, os anos de escolarização. Isso caracteriza
o nível da alfabetização funcional, deixando implícito,
nessa análise, que após alguns anos de aprendizagem escolar
o sujeito não só terá aprendido a ler e escrever,
mas também a fazer uso da leitura e da escrita como prática
social.
Essa compreensão revela a importância da escola na formação
dos sujeitos letrados. É nessa perspectiva que estudiosos da área
de linguagem procuram desvendar o caráter ideológico e cultural
que sustentam as práticas das várias esferas discursivas
que constituem as sociedades contemporâneas, demonstrando que além
da questão econômica, poder e valorização cultural
são fatores determinantes da exclusão e discriminação.
Nesta perspectiva, a leitura é entendida como um processo amplo
que envolve uma inserção direta do sujeito nas relações
sociais através dos usos e funções sociais que esta
representa. O ato de ler é concebido como uma leitura realizada
com sentido e compreensão ao invés do simples ato da decodificação
de letras e palavras. De acordo com Dell’Isola, no processo de leitura
“(...) o leitor participa com uma aptidão que não
depende apenas de sua capacidade de decifrar sinais, mas sobretudo de
dar sentido a eles, compreendê-los” (1998, p.31).
Freire (1982), afirma que ler inclui também posturas como interpretar,
questionar, criticar, inferir. É um exercício que antecipa
e se alonga na inteligência do mundo.
A partir dessa compreensão é possível afirmar que
o Brasil possui um número expressivo de não leitores, pois
índices apontados pelos sistemas de avaliação e divulgados
pela mídia, escrita e falada, revelam que os sujeitos freqüentam
a escola, lêem e escrevem, mas não têm compreensão
da leitura. Frente a essa constatação indaga-se: Por que
os professores das escolas públicas não conseguem letrar
os alunos? O que impossibilita a escola de cumprir o papel de inserir
os alunos no mundo letrado?
Para Kleiman, (1998), uma das questões mais presentes no ensino
em sala de aula diz respeito à decifração de palavras
que em nada se assemelha a atividades prazerosas vividas no cotidiano.
Segundo a autora, as primeiras lembranças da aprendizagem da leitura
e da escrita são as cópias maçantes até a
mão doer. Lembranças de palavras da família do da:
“dói o dedo do Dudu”. Essa prática está
sustentada por um entendimento limitado e incoerente de ensinar a língua
portuguesa, tradicionalmente legitimado dentro e fora da escola.
Terzi (1995), critica o uso de concepções obsoletas, tradicionalmente
aceitas, por falta de fundamentação teórica consistente,
tanto do ponto de vista da teoria da linguagem como da teoria sobre a
leitura. A autora é favorável a uma concepção
de leitura que entende esta como um processo estratégico de atribuição
de sentido ao texto e não como um processo governado por regras.
Então, é necessário refletir sobre os conceitos de
alfabetização e letramento. De acordo com Soares (1998),
a inserção do sujeito no mundo da escrita pode ser compreendida
a partir das concepções teóricas sobre o que seja
alfabetizar e letrar. A inserção no mundo da escrita se
dá por meio da aquisição de uma tecnologia e a isso
se chama alfabetização. O desenvolvimento de competências
(habilidades, conhecimentos, atitudes) de uso efetivo dessa tecnologia
em práticas sociais que envolvem a língua escrita se chama
letramento.
Neste aspecto, ainda segundo Soares (2003),
Dissociar alfabetização e letramento é
um equívoco porque, no quadro das atuais concepções,
psicológicas, lingüísticas e psicolingüísticas
de leitura e escrita, a entrada da criança (e também do
adulto analfabeto) no mundo da escrita se dá simultaneamente por
esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional
de escrita – a alfabetização, e pelo desenvolvimento
de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita,
nas práticas sociais que envolvem a língua escrita –
o letramento. Não são processos independentes, mas interdependentes,
e indissociáveis: a alfabetização se desenvolve no
contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita,
isto é, através de atividades de letramento, e este por
sua vez, só pode desenvolver-se no contexto da e por meio da aprendizagem
das relações fonema-grafema, Isto é, em dependência
da alfabetização (grifos da autora, p.12).
Alfabetizar e letrar são então dois termos
que designam processos interdependentes, indissociáveis e simultâneos,
mas de natureza fundamentalmente diferente, pois envolvem conhecimentos,
habilidades e competências específicos, implicando em aprendizagens
diferenciadas, e em conseqüência, em procedimentos de ensino
diferenciado.
É neste sentido que se torna fundamental perceber o trabalho desenvolvido
pelas escolas de 1ª fase do ensino fundamental. Como as professoras
alfabetizadoras percebem essa relação? A escola possibilita
um trabalho que leva em conta a interface alfabetização-letramento?
Na década de 60, no Brasil, Paulo Freire ao refletir teoricamente,
e produzir material para a alfabetização de adultos, indicava
a necessidade de perceber o trabalho pedagógico como um trabalho
político, ou seja, um trabalho que levasse em conta as relações
econômicas e os aspectos culturais dos sujeitos a serem alfabetizados.
Para ele, tornar-se leitor é tornar-se sujeito capaz de fazer a
leitura do mundo, compreender o mundo e transformá-lo.
Assim, é preciso compreender a escola como o espaço da cultura
da alfabetização-letramento, pois nela se dá o processo
de escolarização, e o fracasso no desenvolvimento de habilidades
de uso social da leitura e da escrita discrimina e exclui, impossibilita
formar cidadãos para ler e transformar o mundo.
Nessa perspectiva, foi realizado um trabalho de pesquisa, no ano de 2004,
em uma escola pública de 1ª fase no município de Catalão-Go,
com o objetivo de investigar as práticas de leitura e escrita desenvolvidas
em uma sala de aula de 1ª série.
Os dados coletados deixam evidências de que a escola pesquisada
desenvolve o ensino da leitura e da escrita, na 1ª série do
ensino fundamental, de forma mecânica, isto é, repetição,
memorização e reprodução do código
escrito. Exemplo: a professora escreve no quadro a família do “ma”
(ma, me, mi, mo, mu), em letras minúsculas e maiúsculas.
Em seguida lê as sílabas e pede para os alunos repetirem,
com ela, em voz alta, em torno de quatro a cinco vezes, até que
os mesmos mentalizem a família silábica. Após esse
exercício, pede para os alunos, sem a sua ajuda, lerem sozinhos.
Na aprendizagem da escrita os alunos primeiro reproduzem a família
silábica apresentada no quadro, ou seja, copiam no caderno as sílabas
apresentadas, memorizadas; depois realizam atividades registrando palavras
com as letras já “conhecidas”.
Essa prática da professora, de acordo com as teorias da aprendizagem
que consideram o letramento como o desenvolvimento de competências,
habilidades, conhecimentos, atitudes de uso efetivo da alfabetização
em práticas sociais, nega a inserção das crianças
no mundo letrado, pois desconsidera a cultura, o saber dos alunos, tornando-os
futuros analfabetos funcionais.
Mas quais são as condições de trabalho dessa professora?
Nas observações das aulas e no contato com o planejamento
da professora foi repassado, à pesquisadora, material do “Projeto
Aprender” da Secretaria Estadual de Educação (SEE).
Junto a este material encontra-se o planejamento feito pela SEE para as
primeiras séries do ensino fundamental. O documento “Fluxo
das Aulas de Acordo com os Dias Letivos” traz todo o conteúdo
(incluindo páginas e nomes dos textos) e dinâmica das atividades
a serem realizadas em sala de aula. Na 39ª aula do Fluxo é
indicado o “Estudo com palavras que tenham em sua estrutura ortográfica
a letra M, m”. No projeto também estão incluídos
momentos de avaliação dos alunos e da professora. Essa avaliação
é percebida, muitas vezes, pelo corpo docente, como um controle
da secretaria. Frente à ausência de autonomia para o planejamento
do seu trabalho de sala, como “alfabetizar-letrar” os alunos,
se a própria professora torna-se repetidora das propostas do sistema
de ensino? Ao refletir sobre essa questão percebe-se que a alfabetização-letramento
dos alunos é complexa, pois está relacionada também
às políticas públicas sobre educação.
É perguntado à professora: O que você lê quando
está no seu momento de folga da escola? Ela responde: “As
horas vagas são muito poucas, e normalmente estou cansada e com
vários trabalhos domésticos para fazer. Não me sobra
muito tempo, e no mais tenho que preparar minha aula”.
Aqui vale ressaltar as dificuldades encontradas, vividas pelas professoras
das séries iniciais. Com salários aviltantes as docentes
não têm como investir em momentos de lazer, como cinema,
literatura, teatro, enfim participar das produções culturais
que auxiliam na leitura do mundo.
A pesquisadora pergunta: Quais são as suas dificuldades para letrar
seus alunos? Resposta: Primeiro eu não tenho tempo de estudar sobre
o que seja letramento. Em segundo lugar, temos que seguir um projeto criado
pelo Estado do qual não podemos fugir.
Em outra aula a professora introduz “ao, ão”. Utiliza
a mesma dinâmica, da repetição, fragmentação.
Logo após, pede para os alunos dizerem palavras como Catalão,
avião, leitão, grandão.
Ao ser questionada sobre o porquê da ênfase na repetição
das famílias silábicas ela responde que “só
assim eles conseguem memorizar e mesmo assim alguns deles não conseguem
lembrar a letra estudada”.
È importante ressaltar que a memorização é
exigida até mesmo quando se propõe a trabalhar com textos.
Ao introduzir ao, ão ela trabalha com a música “Meu
Pintinho Amarelinho”
Meu pintinho amarelinho
Cabe aqui na minha mão
Quando quer comer bichinho
Com seus pezinhos, ele cisca o chão
Ele bate as asas
Ele faz piu... piu
E tem muito medo
É do gavião.
Dentre as atividades escritas, direcionadas para os alunos, pode-se perceber
a preocupação com a memorização das sílabas
apresentadas. São levantadas as perguntas: Por que o pintinho tem
medo do gavião? Você já viu um gavião? Como
ele é? Por que o pintinho cisca o chão? Retire do texto
as palavras que tenham ão. Escreva outras palavras que você
conhece que têm a sílaba ão.
Observa-se que essa repetição é exigida pelo projeto
da SEE, pois no planejamento diário do “Projeto Aprender”
tem-se na 145ª aula do Fluxo o “Estudo com palavras que tenham
na sua estrutura ortográfica ão (nasalação)”.
Na busca do material didático que dá suporte ao trabalho
da professora encontra-se o livro: Educação, a Fórmula
da Vitória. Este é produzido pelo Instituto Ayrton Senna
e dele fazem parte caderno de atividades do módulo de Alfabetização.
Aqui cabe indagar: Que significa uma instituição privada
planejar, direcionar o trabalho docente em escolas públicas de
1ª fase do ensino fundamental?
Os dados aqui representam o que acontece na sala de aula. Ensino mecânico,
repetição, fragmentação. Desta forma, impossibilita
ao aluno e à professora fazer inferências, ler e transformar
o mundo.
CONSIDERAÇÕES
O exercício da pesquisa em educação,
e especificamente, no campo da alfabetização, torna-se fundamental
para o professor e para o aluno futuro professor das séries iniciais.
Propicia momentos de indagação, busca de respostas; aprendizagem
na organização e sistematização das idéias
originadas das reflexões sobre os aportes teóricos e a coleta
de dados.
Investigar as práticas de leitura e escrita na 1ª fase do
ensino fundamental desenvolvida na escola pública revela a complexidade
da prática educativa. Percebe-se a necessidade de pensar essa prática
na sua relação com o social, com o político, econômico
e cultural.
A organização do sistema de ensino deixa claro a sua interferência
no dia a dia da escola. Esta pesquisa revelou que a professora segue rigorosamente
o planejamento elaborado pela Secretaria Estadual de Educação
com todo o material didático produzido por uma instituição
privada. O que a SEE entende sobre alfabetização-letramento?
A professora ao ser perguntada sobre o que significa letramento respondeu:
“Não sei, mas já ouvi falar. Se não me engano
tem a ver com o social”.
Cabe indagar: Qual o papel da SEE? Dar condições de trabalho
para a professora ou determinar o que ela deve fazer em sala de aula?
Como fica a relação teoria-prática frente a esses
dados? Ao professor não cabe indagar, conhecer, refletir para transformar?
Como letrar os alunos sem a oportunidade de ser letrado?
Dessa forma a escola não cumpre a função de permitir
ou contribuir para com a inserção do aluno no mundo da cultura,
no mundo da reflexão da indagação e da vontade de
transformar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, Paulo (1982). A Importância do Ato de Ler.
São Paulo: Hucitec.
KLEIMAN, Ângela (1995). Os significados do Letramento: uma nova
perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Editora
Mercado de Letras.
ROJO, Roxane (Org.) (1998). Alfabetização e Letramento:
perspectivas lingüísticas. Campinas, SP: Editora Mercado de
Letras.
SOARES, Magda (19980. Letramento: um tema em três gêneros.
Belo Horizonte: Editora Autêntica,
SOARES, Magda (2003). Alfabetização e Letramento. São
Paulo: Editora Contexto.
TERZI, Sylvia Bueno (2001). A Construção da Leitura: uma
experiência com crianças de meios iletrados. Campinas, SP:
Editora Pontes.