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CORPO
IDEAL, CORPO REAL E ILUSÃO CORPORAL: ALGUMAS REFLEXÕES
Andréa Luciana Gomes Narcizo - Universidade
de Sorocaba – Uniso
Eliete Jussara Nogueira - Orientadora - Universidade de Sorocaba –
Uniso
O corpo desde a antiguidade tornou-se uma constante na
história da cultura, incitou curiosidades e necessidade de significação,
seja na pintura, na música ou na literatura, o corpo sempre foi
motivo de representações culturais. Eco (2004), apresentou
as várias concepções da beleza dos corpos humanos,
dos animais, da natureza, das roupas, do sagrado e do profano, em diferentes
épocas, desde a Grécia antiga até hoje, reconstruindo
a história da Beleza sob a ótica tanto dos intelectuais
como dos homens comuns. Em seu trabalho observou que diversos conceitos
de Beleza entraram em conflito, não somente em épocas diferentes,
mas também em uma mesma cultura. Isso nos possibilita entender
porque é tão difícil estabelecer um padrão
universal de beleza. Será que é possível generalizar
a beleza? E o corpo, existe um único padrão que seja ideal?
Se o corpo e a beleza não são uma preocupação
recente, então, por que esta apologia ao corpo nos dias atuais?
E por que esta necessidade de se ditar um padrão universal?
Refletir sobre o corpo no mundo de hoje, necessita contextualizá-lo
para além do biológico, e da dicotomia corpo/alma. Abordar
sobre o tema corpo não é uma tarefa fácil. A sensação
é que qualquer tentativa de enquadra-lo dentro de conceitos esvazia-se
por si. Gil escreve:
“Qualquer discurso sobre o corpo parece ter que
enfrentar uma resistência. Ela provém da própria natureza
da linguagem: como para a morte ou para o tempo, a linguagem esquiva-se
à intenção de definir: cada definição
permanece num ponto de vista parcial, determinado por um domínio
epistemológico ou cultural particular.
... A esta docilidade da linguagem vale uma violência real exercida
sobre o corpo: quanto mais sobre ele se fala, menos ele existe por si
próprio”. (1997,p.13)
Tentando enfrentar o desafio de entender o corpo, este
trabalho tem como proposta apresentar algumas reflexões sobre os
conceitos de pós-modernidade e suas implicações nas
representações do corpo, utilizando para tanto os referenciais
teóricos de Stuart Hall, David Harvey, José Joaquín
Brünner e Anthony Giddens. Os quatro autores oferecem leituras diferentes
com relação às mudanças do mundo pós-moderno,
porém há uma linha comum entre eles quando os mesmos se
referem à descontinuidade, fragmentação, ruptura
e deslocamento do momento.
O termo pós-modernidade traz muitas discussões, para alguns
estudiosos não existe pós modernidade, ainda estamos na
modernidade, para outros, estamos em um período de transição,
e na falta de um termo melhor para definir esse momento usa-se pós-modernidade,
como poderia utilizar por exemplo: “sociedade de consumo”,
“sociedade de informação”, “sociedade
pós-industrial”, “modernidade tardia”, “hipermodernidade”,
entre outros. Independente do nome que se dê, o importante seria
contextualizar este período contemporâneo marcado por: mudanças
constantes, diminuição da relação espaço-tempo,
produção e consumo em massa, aumento considerável
da velocidade e quantidades de informações decorrentes do
avanço acelerado da tecnologia, principalmente dos meios de comunicações,
dissolução política, distanciamento das relações
sociais e “crise de identidade”. Não esquecendo do
evento da globalização, que influencia muito atualmente,
porém não é um fenômeno recente. Giddens diz:
“A modernidade é inerentemente globalizante”(1990,
p.69). E o mesmo autor define a globalização como: “a
intensificação das relações sociais em escala
mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos
locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância
e vice-versa” (1990, p.69).
Juntamente com Giddens, Harvery diz que essas mudanças não
são novas, porém acrescenta que: “sua versão
mais recente por certo esta ao alcance da pesquisa materialista-histórica,
podendo até ser teorizada com base na metanarrativa do desenvolvimento
capitalista que Marx formulou” (1996, p.293).
A importância de todo esse processo é que ele tem impacto
na identidade cultural do indivíduo. Ao falar da questão
de identidade como parte de um processo mais amplo de mudança,
Stuart Hall mostra que:
“Um tipo de mudança estrutural está
transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso
está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos
tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos
sociais. Estas transformações estão também
mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos
de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de
“um sentido de si” estável é chamada, algumas
vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse
duplo deslocamento – descentração dos indivíduos
tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos –
constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo”.
(2005, p.9)
Por outro lado, o estudo do Brünner trabalha a globalização
cultural sob quatro fenômenos, os quais estão inter-relacionados:
1. A ligação entre economia industrial, mercado e comunicação;
2. As diversas fases do capitalismo e a democracia; 3. A democracia e
a transformação política na pós-modernidade;
4. As múltiplas relações das comunicações
e a pós-modernidade. Brünner define a pós-modernidade
como:
“la manifestación en la cultura de la civilización
material emergente. Es su arquitectura espiritual. Su lenguaje y su autoconciencia.
Por ese concepto, ella incide, a su vez, sobre la economía, la
política y las relaciones sociales. Alimenta los mercados, proporciona
el clima moral y estético de la política y contribuye a
conformar el escenario de nuestras ciudades”. (1998, p.30)
Podemos observar que a pós-modernidade é
uma condição que se encontra em movimento e como tal não
deve ser observada de forma estanque, isto é, fim da modernidade
e início da pós, e sim como um período de transição,
porém não podemos negar que estamos vivendo um momento de
mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais
profundas. Resta saber onde fica a noção de sujeito?
Com tantas mudanças é impossível pensar que o indivíduo
saia ileso, mesmo porque ele é o agente condutor e transformador
da história. Podemos refletir na capacidade de adaptação
que o ser humano vem apresentando no decorrer dos anos. Estamos falando
de uma época onde as mudanças acontecem em alta velocidade.
Será que o corpo/alma estão acompanhando estas mudanças?
As adaptações a essas mudanças podem ser identificadas
com alguns sinais; por exemplo, com o aumento da incidência de algumas
patologias como a síndrome do pânico; estresse (inclusive
infantil); distúrbios alimentares; transtornos da imagem corporal;
depressão; entre outras.
Dizer que as identidades antes eram unificadas e coerentes e agora estão
totalmente deslocadas é uma maneira muito simplista de contar a
história desse sujeito. Segundo Hall, historicamente o indivíduo
passou por várias fases: a Reforma e o Protestantismo libertaram
a consciência individual das instituições religiosas
e a colocaram diretamente aos olhos de Deus; o Humanismo Renascentista
colocou o Homem como o centro do universo; e o Iluminismo centrou a imagem
do Homem racional e científico, onde tudo pode ser compreendido
e dominado (2005, p.26). Nas sociedades modernas, a medida que se tornaram
mais complexas, elas foram adquirindo uma forma mais coletiva e social.
A partir daí então nasceu uma concepção mais
social do sujeito, o qual passou a ser visto de forma mais localizada
dentro dessa estrutura, porém nesta mesma época (metade
do século XX), aparece o indivíduo isolado e exilado nas
metrópoles quase sempre impessoais. E agora na modernidade tardia
(na segunda metade do século XX), o sujeito além de desagregado,
está deslocado, culminando com o seu próprio descentramento.
Stuart Hall expõe que a descentração foi marcada
por cinco episódios: 1. A releitura dos trabalhos de Marx; 2. A
descoberta do inconsciente por Freud; 3. O trabalho do lingüista
estrutural Saussure, que diz que a língua é um sistema social
e não individual; e 4. O impacto do feminismo como crítica
teórica e movimento social.
Para Hall, esse deslocamento é causado pela globalização,
que por sua vez gera uma compressão espaço-tempo intervindo
sobre as identidades culturais. É importante lembrar que o tempo
e o espaço são coordenadas básicas de todos os sistemas
de representação, seja ela na escrita, pintura, desenho,
fotografia, arte e telecomunicações. “E a identidade
está profundamente envolvida no processo de representação.
Assim, a modelagem e a remodelagem de relações espaço-tempo
no interior de diferentes sistemas de representação tem
efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas
e representadas” (HALL, 2005, p.71).
Portanto o sujeito, o qual nos reportamos, está inserido nas mudanças
tanto no campo físico como no mental. Faz-se necessário
então retomar a questão: será que este corpo suporta
o bombardeio de informações, mudanças constantes,
perda das referências e o excesso de produção e consumo,
sem se manifestar? Hoje, vivemos um movimento constante e rápido
de mudanças culturais, econômicas e políticas. Esses
movimentos contínuos abalam as estruturas e processos centrais
das sociedades modernas, fragilizando os pontos de referências do
indivíduo, os quais dão uma ancoragem estável no
mundo social. A relação tempo e espaço diminui com
o avanço tecnológico, tudo fugaz. O corpo por sua vez, necessita
de um tempo para adaptação, tempo esse, que depende da história
de vida de cada um, de sua estrutura bio-psico-social, porém a
velocidade dos processos de mudanças, por vezes, não respeita
esse ritmo e o corpo, padece.
No contexto da pós-modernidade, o homem acelerou o processo de
fragmentação e distanciamento de si, tornando-se mais vulnerável
e manipulável. O discurso sobre o corpo convive com um esvaziamento
e a mercantilização do mesmo, impondo um corpo retificado,
redefinido e com seus fragmentos costurados. (LE BRETON, 2003, p.10)
Quando analisamos a evolução da Engenharia Genética,
parece que tudo, prinpalmente o corpo caminha para o artificial (NOVAES,
2003, p.9). A viabilidade de sermos clonados e a implantação
de chips em nosso corpo dá a sensação vulgar que
tudo pode ser reproduzido, como um robô, feito de várias
peças. Isso nos convida a pensar nas cirurgias plásticas
onde compro nariz, boca, seios, glúteos, como num mercado. Exaltamos
não o corpo que vivemos, mas o corpo redefinido, fragmentado. Na
outra extremidade tem-se o relacionamento via internet, onde o corpo do
outro está distante, é virtual. Substituímos nossas
experiências como seres humanos para conversarmos com máquinas,
que dificilmente dará riqueza de detalhes observados quando nos
atrevemos a viver de fato. A moda e a mídia vende o corpo da modelo
como ideal, porém a grande parte delas são anoréxica.
É o padrão a qualquer preço, mesmo que coloque em
risco a saúde. O corpo retificado, redefinido e fragmentado distancia-se
de si, vive a ilusão da imagem, de ser o que não é,
vive a ilusão corporal.
Se buscarmos no trabalho do Keleman, podemos fazer algumas associações
que poderão nos ajudar a compreender sobre o distanciamento de
si e o deslocamento do sujeito quando ele aborda sobre o corpo abandonado
e qual a relação desses fatores com o corpo ideal, corpo
real e a ilusão corporal. Keleman escreve:
“Abandonamos
o corpo em nome da racionalidade e linguagem, símbolos e signos.
O cérebro organizou uma realidade de imagem e pensamento, ao venerar
a vida invisível da consciência.
Nós existimos numa Terra Devastada, onde as imagens vampirizam
a vitalidade do soma, onde o pensamento está enamorado pelo próprio
reflexo”. ( 2001, p. 12)
Estamos presenciando o avanço tecnológico acelerado, principalmente
dos meios de comunicações. O mundo está predominantemente
visual. As imagens invadem nossas mentes sem pedir licença. Elas
estão por toda parte: nas ruas, nas casas, nos telefones, nas comidas,
nos medicamentos. ). “As imagens em nossa mente funcionam como uma
conexão interior”, só que “O corpo tornou-se
vítima do seu próprio processo de produção
de imagens que se descontrolou” (Keleman, 2001).
Quando fragmentamos perdemos a conexão com o todo, com a essência,
e somos fagocitados pelas imagens que acreditamos que sejam reais. Ficamos
enamorados pelas imagens que a mente produz e acabamos desconhecendo o
próprio corpo. Nos distanciamos dele e de suas experiências
emocionais e somáticas. O corpo torna-se desabitado, devastado.
Buscamos um referencial de corpo no externo e nos distanciamos cada vez
mais de nossos referenciais internos. Por conta disso compramos facilmente
a idéia da existência de um corpo ideal, mesmo que ele não
supra as reais necessidades que cada indivíduo tem. Ficamos com
a própria imagem deslocada e desfoscada.
“Quando
idealizamos a imagem em lugar da experiência, nós nos descobrimos
vivendo na imagem. Atualmente, grande parte da sociedade se organiza de
maneira que se coloca à parte da sua natureza. A natureza tornou-se
uma fotografia, uma idéia, um símbolo, uma imagem no cérebro
– e o mesmo acontece com o corpo. Vivemos na imagem do corpo, não
no corpo”.
(Keleman, 2001)
Quando deixamos
de viver o corpo para vivermos as imagens, temos a ilusão corporal.
E quando o corpo experiência as informações corporais
e emocionais presentes no mundo externo e interno, alterando a experiência
de si nesse mundo, temos o corpo real.
A grande questão é: será que existe um corpo ideal
com padrão Universal ou esse corpo é um produto da mídia?
Se de fato existe um corpo ideal, qual seria seu padrão de beleza?
A busca da eterna juventude as custas de invasões, mutilações
e mercantilização do corpo trariam esse padrão? Por
que a busca incessante do corpo ideal? É necessário ou será
que é mais fácil do que nos propormos a uma viagem em busca
de nossos referenciais internos, cruzando fronteiras e voltando para o
corpo real, para casa, para a Terra da Abundância.
Imaginarmos um corpo perfeito, sem rasuras, é vê-lo sem vida.
Se considerarmos que o corpo está em constante movimento e como
tal sofre alterações do meio, sejam elas físicas
ou emocionais, é impossível imaginar o corpo perfeito sem
rasuras. Até mesmo as obras de artes, quando apresentam como resultado
final a perfeição dos traços, houve antes algumas
rasuras e correções. “ O corpo humano só é
corpo na medida que traz em si mesmo o inacabado, isto é, promessa
permanente de autocriação, e é isso que faz dele
um enigma que a tecnociência pretende negar” (NOVAES, 2003,
p.9).
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