Uma experiência com formação
de jovem leitor
Lívia Abrahão do Nascimento
O mundo parece ser feito apenas de coisas que a gente
vê nele. Mas há coisas que não vemos embora existam.
São as coisas que lemos. Elas estão escondidas no meio das
letras. É preciso ler para que elas apareçam diretamente
em nossas cabeças.
Era uma vez uma criança do interior de Minas Gerais,
que se encantou com histórias contadas com muita perícia
e amor por uma tia leitora.
A trajetória da criança leitora, ávida por livros
de bibliotecas escolares e de amigos, levou-a ao curso de Letras e ao
magistério.
Cursando o terceiro grau e lecionando para o segundo, tentava seduzir
seus alunos para a leitura com pequenos trechos de obras literárias,
contos, romances e poemas. E assim, com esses “panfletos”,
quiçá precários, convidava-os para viagens a determinados
cantos da imaginação ou pensamentos jamais visitados.
E os livros, onde encontrá-los? Na pequena biblioteca da escola,
dos amigos e da própria professora.
Estas foram batalhas travadas na década de 1970. A primeira, convencer
os alunos de que eles são “agentes”, “mocinhos”,
“turistas” bem vindos àquelas leituras. Que era possível
sim, assistir aos programas de T.V, jogar futebol e ler. A segunda batalha,
a mais espinhosa, era convencer a direção da escola da importância
de se conseguir mais e mais livros, e colocá-los à disposição
dos estudantes.
Foram anos difíceis. Mas não estava sozinha. Lutávamos,
agora, alunos, professores, alguns coordenadores e conquistávamos,
palmo a palmo, centímetro a centímetro a capacidade de adquirir
obras, ler, aprender a criticar cada texto (obras literárias),
maior ou menor, dependendo da etapa e da formação do leitor.
Assim, conseguíamos ampliar a pequena biblioteca, com livros novos
e usados, que oferecíamos a todos da escola, desde a alfabetização.
Era uma escola grande, no interior de Goiás, formadora de professores
também. E esta equipe “Pró-leitura”, que vinha
se formando, não se esquecia que crianças, desde pequenas
até maiores, adoravam ouvir histórias, encenar histórias,
recriar histórias. Foi um tempo produtivo. Era importante não
esquecer que esta paixão meio universal pelas histórias
populares é um ponto de partida para as grandes inquietações
humanas, é a forma de conhecer ou relembrar as explicações
sobre elas. Criamos biblioteca improvisada, contadores de histórias,
campanhas para arrecadar livros. Muitas apresentações.
Naquela época (1970), apenas sonhávamos com políticas
de incentivo à leitura, com formação de bibliotecas
(com bibliotecários capacitados) e com livros, muitos livros com
os quais pudéssemos nos banquetear. Mal sabíamos que livros
na escola não seriam suficientes para o nosso projeto de formar
jovens leitores.
Quando surgiu o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) foi
um alívio. Para quem, na escola pública não tinha
nada, o livro didático representava, às vezes, o único
acesso efetivo do educando à palavra escrita; “um livro pra
chamar de seu” mesmo que fosse apenas por um ano.
Depois vieram outros programas do MEC e Secretaria Estadual de Educação,
possibilitando às escolas a formação ou implementação
de suas bibliotecas. Exultávamos. À primeira vista, estavam
dados os primeiros passos para iniciarmos, com mais facilidade a formação
do leitor.
Mas levou pouco tempo para que percebêssemos um vazio que se instalava
na escola depois do primeiro alumbramento com os livros. Os alunos apenas
folheavam em busca de gravuras, se encontrassem, o livro merecia um pouco
de atenção, senão...Os professores, alguns liam e
propagavam a leitura, outros comentavam a grande perda de tempo: “matéria
atrasada”, “alunos desinteressados”, “gastar dinheiro
à toa”.
Foi quando percebemos, ou melhor, confirmamos que há outros fatores
de grande importância para a formação de leitores
do que a simples possibilidade de contato com os livros. Não basta
oferecê-los. É difícil encontrar um aluno que leia
sem um professor leitor, sem que a leitura seja um valor para a família,
para aqueles com quem convive.
É necessário trabalhar através do viés de
sedução para a leitura, com professores e alunos, abrindo
o significado de leitura à dimensão do universo: quem lê
constrói uma nova dimensão de significado: quem lê
viaja.
Década de 1990. Curso de Letras. Disciplina: Didática de
Língua Portuguesa. Com tantas experiências de incentivo à
leitura, era a oportunidade de, em um curso de formação
de professores, formá-los e informá-los para que tirassem
aquele ranço de leitura como obrigação, trabalho,
prova.
Era convencê-los de que ler significa pensar, refletir, estar a
favor ou contra, comentar, trocar opiniões, posicionar-se. Dizer
“gostei” ou “não gostei” e justificar-se.
No afã de preparar esses profissionais da educação
muito se tem discutido sobre leitor-leitura e formação de
leitor. Afinal, o professor-leitor também precisa ser “formado”.
O que é a Universidade senão também uma escola?
A leitura acontece no cotidiano de cada pessoa de forma plural porque
um mundo globalizado lê-se, mesmo informalmente sobre vários
assuntos, e o mesmo não acontece com a leitura do texto literário
em se tratando das camadas mais pobres da população que
pouco acesso ou interesse tem por ela.
Ainda que o trabalho escolar nunca possa dissociar-se ou distanciar-se
do que acontece no dia a dia, é na escola, enquanto instituição
de formação de educação, que atividades ligadas
à ampliação do universo cultural do indivíduo
e ligadas à aprendizagem sistemáticas dos diferentes campos
dos saber, devem ser concebidas e desenvolvidas de maneira competente.
Mas como conseguir que a escola, através da leitura, alargue os
limites do próprio processo de produção do conhecimento
e de reflexão do que produziu? Professores, alunos, textos e leituras
devem interagir todo o tempo de forma organizada e sistemática.
Se, por meio de projetos de leitura nas escolas, pode-se tentar ampliar
os limites do conhecimento, tal projeto, em todos os níveis terá
que quebrar preconceitos do senso comum com relação à
cobrança de obras literárias lidas, e direcionar a leitura
para o que ela tem de prazerosa. O prazer que resulta do trabalho intelectual,
árduo, de um necessário corpo a corpo que se instaure entre
o leitor-aluno, sua experiência prévia do mundo e o texto
estético, seu autor e outros leitores virtuais ou reais com quem
irá partilhar interpretações e significações
recém inauguradas.
Assim, em qualquer faixa etária e de ensino, o contato com os textos
artísticos (visuais, verbais, entre outros) precisa ocorrer, de
forma plena, e com a contínua intermediação da vida
real de cada um, ampliando também as possibilidades de refinamento
do imaginário pessoal e coletivo. Atividades que, desenvolvidas
na escola, geram também, lá fora, intercâmbios ilimitados.
Neste sentido, o projeto “Literatura em minha Casa” do MEC/FNDE/PNDE
vai além dos primeiros projetos que visavam a biblioteca da escola
ou de sala de aula.
A coleção é montada em forma de um kit e contempla
vários gêneros, conto, poesia, teatro, novela, clássicos
universais, histórias do folclore. Traz nomes consagrados pela
literatura do Brasil e do mundo. É primorosamente editada e escolhida
para ser entregue para o aluno levar para casa, ser seu dono e formar
sua biblioteca.
E na apresentação , seu organizador Bartolomeu C. de Queiroz
(2.003) diz sobre este projeto:
Meus queridos leitores e amigos, após a leitura
destes contos, vocês poderão sugerir que também as
suas famílias os leiam. Como vocês, elas sairão abraçadas
pelas tramas capazes de alimentar nosso imaginário e de inquietar
nossos entendimentos.
Os resultados não foram os esperados. Contrariando os otimistas,
professores leitores entusiasmados, os livros começaram a ser vendidos
em “sebos”, trocados por figurinhas ou abandonados na escola
ou no caminho para casa.
Se o aluno não tem os livros como um bem, se não sabe o
que fazer com ele ,é hora de todos os responsáveis pelo
processo de letramento, entre eles o professor, entrarem em ação.
Fazer um trabalho de “marketing”. Valorizar aquela mercadoria,
aquele bem tão precioso que ele , o aluno , não sabe avaliar.
É não permitir que os pessimistas, aqueles que dizem que
os Kits do projeto são “pérolas aos porcos”
não se encham de razão.
É mostrar a todos que aqueles alunos da escola pública de
periferia, e por isso mesmo, tem direito ao acesso a estes e a também
outros bens culturais que a literatura vai poder abrir caminho.
O que fazer? Alguns requisitos devem ser exigidos daqueles responsáveis
pelo bom aproveitamento deste material de leitura.
A esta altura, surge como essencial à atividade do professor. De
um professor que deve sim, ser bem formado e mostrar-se capaz de pensar
em um projeto de leitura para a faixa etária, o nível de
escolaridade e a fase de letramento em que estão seus alunos.
E mais, saber usar, de forma competente e criativa os livros que tem à
sua disposição, sejam eles enviados pelo MEC ou pela Secretaria
Estadual de Educação, porque estas e outras ações
que fazem parte das políticas públicas para a formação
de leitor têm como propósito incentivar e apoiar a leitura
de livros na escola e fora dela.
Que os professores sejam, antes de tudo, leitores com a imaginação
povoada de tantas outras leituras, que se entrelaçam à do
mundo.
Que a direção da escola veja na leitura, em suas múltiplas
facetas, um bem cultural necessário, possível de ser adquirido
por sua clientela, capaz de apropriar-se dele.
Que o livro seja discutido e apresentado a partir da capa. E que a carta
escrita ao leitor seja mostrada a seus pais.
Que se possa sugerir e implantar uma das proposições de
Bartolomeu C. de Queiroz “o círculo de leitura” do
qual participaria a família, vizinhos e colegas de outras salas,
que fariam leituras compartilhadas e discussão das obras.
Que as atividades propostas posteriores à leitura das obras não
funcionassem como “camisa de força” direcionando ou
cerceando leituras possíveis.
Que as obras não fossem trancadas na biblioteca e nunca lidas,
ou apenas distribuídas sem serem mencionadas depois.
Pensando então nesta valiosa oportunidade é que eu levei
meus alunos, a convite das escolas estaduais e municipais, para ministrarem
oficinas à partir dos títulos tão variados que compõem
os kits do projeto Literatura em minha casa. As atividades tinham como
objetivo apresentar as obras, incentivando a leitura das mesmas.
Nem todos os alunos, de todas as séries e períodos receberiam
os livros do projeto Literatura em minha casa. O projeto da escola, elaborado
com minha ajuda, objetivava oportunizar a leitura dos livros por todos
da escola. Quem recebia os livros etiquetava-os e depois de lê-los
e fazer as atividades propostas pelo professor da série, emprestava-os
a outros que não haviam recebido.
Algumas escolas não entregavam todas as obras de uma só
vez. Trabalhavam uma a uma em atividades que variavam da reescrita, ilustração,
contação de histórias até a encenação.
Outra chamou a comunidade, jornais e fez a entrega solene dos livros.
Em comum, o interesse das escolas e professores em valorizar aquele material
e mostrar o destino que se esperava que dessem a ele.
A seguir vamos relatar as experiências vividas pelos quartanistas
do curso de Letras, turmas matutina e noturna do Campus – UFG, em
Catalão – Goiás, em escolas públicas estaduais
e municipais, urbanas e rurais, desde a educação infantil
até o ensino fundamental.
O trabalho desenvolveu-se em duplas ou trios, que propagavam uma obra
literária das que o aluno receberia para levar para casa, ou mesmo
outra que ele poderia obter por empréstimo. As atividades eram
desenvolvidas por aproximadamente uma hora e trinta minutos.
Nas séries do ensino fundamental apresentou-se, mesmo que superficialmente,
a teoria do gênero textual, objetivando uma melhor compreensão
da obra a ser lida.
Aos estagiários do curso de Letras (quartanistas), foi solicitado
que preparassem oficinas que despertassem nos jovens e crianças
a curiosidade e interesse pelos livros que receberiam.
Durante a preparação, os alunos estagiários tiveram
a liberdade de escolher o gênero textual que gostariam de trabalhar
e pesquisar qual seria a clientela, para melhor adequar suas ações.
O objetivo era comum a todos: despertar o interesse pelo livro, seduzir
o leitor.
Foram preparadas atividades variadas que seriam oferecidas como um cardápio.
Muitas, porque se algumas não surtissem efeito, outras surtiriam.
Os alunos que foram para a escola municipal localizada na zona rural,
viajaram de ônibus escolar por mais de uma hora, acompanhando todo
o percurso do ônibus que recruta os estudantes de casa até
a escola.
À primeira vista, o prédio que cedia a escola desanima.
De perto, os temores se confirmam. As salas são pequenas, separadas
por placas de cimento que não chegam ao teto, permitindo que se
ouça o que se fala nas salas vizinhas. O que animou os estagiários
foi a recepção calorosa de alunos e professores. Essa e
a outra escola municipal que nos recebeu programaram um dia especial.
As aulas foram suspensas. As atividades, em todas as turmas, giravam em
torno da leitura de livros literários. O lanche foi especial, o
recreio mais longo. Os professores haviam programado encenações
de trechos das obras trabalhadas, simulação de entrevistas
com os autores lidos, jograis, performances. Todas as atividades foram
filmadas. O jornal local foi chamado e fez uma reportagem de folha inteira
com entrevistas de alunos, professores, direção e estagiários.
As instalações da escola municipal urbana são um
pouco melhores, mas está localizada em um bairro pobre, da periferia,
o que faz com que a participação entusiasta dos alunos seja
ainda mais surpreendente.
A escola funciona em dois turnos e oferece, mesmo em espaço exíguo
e improvisado, inúmeras atividades que surgiram em foram de projetos
bem direcionados às necessidades e interesses dos alunos.
Sobre as obras e atividades desenvolvidas pelos estagiários, vamos
deixar que eles mesmos se manifestem:
Nessa escola, pela qualidade dos textos produzidos (depois
da oficina de leitura e análise de poemas, 7a. e 8a. séries)
no que se refere à articulação das idéias
e pela desenvoltura dos alunos ao fazerem a leitura dos poemas e de seus
trabalhos, percebemos que ali se faz estas atividades de forma sistemática.
Isto é muito positivo e surpreendente, pois, apesar da escola atender
a um público de periferia, (a escola está situada na parte
mais pobre da cidade) seus professores estão conscientes da função
das atividades de leitura e produção de textos na vida dessas
crianças. (Sara e Ana Marta )
Outro grupo trabalhou várias versões do
“Chapeuzinho Vermelho”. Foram colocados em uma caixa mais
de oito livros contando a história e entre eles gibis da Mônica,
Magali, tio Patinhas e um gibi maior que os outros, que era de autoria
da própria estagiária. Foi o que mais chamou a atenção
porque todos quiseram escrever a sua versão´da história.
Foram propostos ainda atualização da história com
a sugestão de um elemento novo: um helicóptero, ou celular,
ou gás paralisante. Essas novas histórias foram encenadas
e ilustradas em outros momentos.
O filme “Sherek” também serviu como incentivo para
que os alunos procurassem ler histórias às quais o filme
se referia, além de aprenderem um pouco sobre o que é paródia
e estilização (tão comuns em letras de músicas
ou quadros de programas humorísticos).
O conto de Moacyr Scliar, “Um sonho no caroço do abacate”,
lido por duas estagiárias, serviu de mote para a discussão
sobre o preconceito racial, religioso e, ainda, a nossa decepção
ao concretizarmos alguns dos sonhos que temos. Os alunos lembraram que,
às vezes, a aparência deles desperta suspeita nas pessoas
e aqueles da zona rural lembraram do deboche com a sua origem. Foram elaborados
cartazes e bilhetes que alertavam sobre o mal que o preconceito causa
às pessoas e afixadas nas escolas.
Outra obra que levou a muitas discussões foi O Menino Narigudo
de Walcyr Carrasco. As estagiárias apresentaram a visão
original, de forma resumida, de Cyrano de Bergerac, do escritor francês
Edmond Rostand, leram alguns trechos da peça teatral e falaram
sobre o teatro grego e o moderno. Depois a turma fez leitura expressiva
do texto de Carrasco,e encenaram trechos dessa peça teatral.
Partindo desta história, comentaram sobre as angústias e
frustrações por não terem um corpo, na maioria das
vezes, esteticamente aceito pelos padrões de beleza impostos pela
sociedade. Foram mostradas revistas e eles leram depoimentos de pessoas
que seguiam a cânone estético preconizado pela moda e outras
que estavam longe disso e mesmo assim haviam se acomodado e não
se sentiam infelizes.
Os adolescentes falavam de seus medos e inseguranças com relação
às transformações do próprio corpo. Conseguiam
falar de seus “defeitos” e alguns lembraram o nariz de Pinóquio
(rapidamente resenhado para quem não conhecia). O livro de poesias
de Roseana Murray e de Carlos Queiroz Teles, sobre problemas comuns na
adolescência, despertou curiosidade.
Alguns projetos das estagiárias foram controversos. Foram bem aceitos
em algumas escolas e detestados em outras, a ponto de terem que modificar
o que havia sido planejado e trabalharem com as atividades de reserva.
Um deles foi o conto “A Cartomante” de Machado de Assis. As
alunas programaram discussões sobre a “leitura da sorte”,
amuletos, sortilégios, tarô. Usaram, para início,
literatura de dois contos curtos do livro As sete faces do destino, da
editora moderna. Depois as estagiárias encenaram uma adaptação
do conto de Machado. Na escola da zona rural, a discussão não
fluiu. Os alunos se mostraram reticentes, receosos. E as estagiárias
se ativeram na parte final do programa que era apenas o conto “A
Cartomante”. {Em compensação, na escola estadual de
ensino noturno, o tema “destino” foi debatido e os alunos
ao ouvirem/lerem os contos do livro As sete faces do destino, expressaram-se
livremente contra ou a favor de tais práticas e a leitura de Machado
veio como fecho de ouro}.
Em sentido contrário, estava a proposta de se trabalhar com os
contos populares. Os estagiários assim relataram:
A proposta apresentada iniciou-se com a exposição
oral sobre literatura dando um passeio pela teoria do conto tradicional
ao moderno. E feita a leitura do conto tradicional, em círculo,
falamos do necessário resgate, o que foi um exercício de
interpretação que se tornou um gostoso exercício
lúdico também para nós. (Branca )
Os alunos da escola municipal rural sabiam de vários
contos que tinham ouvido e, às vezes, lido também e faziam
comparações entre eles. Propuseram-se a coletar histórias
correntes na oralidade, na comunidade em que viviam e editar um livro
com elas.
Na escola estadual, de ensino noturno, com relação aos contos
populares o graduando anotou:
Por se tratar de alunos do período noturno, a nossa
postura de humildade (de contadores de causo), foi confundida com insegurança
e medo pelos alunos e sua professora. Tal atitude fez com que, além
de cercar o nosso discurso de autoridade de quem aprendeu e gosta de literatura
popular. A autoridade de ser humano, que quando pede para ser ouvido tem
o direito de sê-lo. No final, nossa segurança os seduziu
e perceberam o valor da literatura popular que não pode e não
deve ser desprestigiada. Mostramos a eles que a escola e eles podem e
devem ser e ver além do que estava escrito naqueles contos aparentemente
simples. (Reginaldo ) .
Na nossa opinião, mais do que propagar o valor literário
e humano contidos na coletânea de contos, estes estagiários
conseguiram mostrar àqueles alunos o que tinham em comum. Eram
estudantes do ensino noturno, trabalhadores e pobres em busca de um futuro
melhor através do estudo, que para eles a escola é uma ponte,
que pode ou não ser atravessada, porque o saber está logo
ali, ao alcance de quem se interessa por ele.
Os contos que falavam de seres fantásticos, que despertavam medo,
foram bem aceitos, lidos e comentados. Percebe-se que é um tema
que vem sendo abordado pela mídia de várias formas.
Uma obra que foi apresentada na escola municipal urbana surpreendeu as
estagiárias:
Nós trabalhamos com o tema “drogas na vida
dos adolescentes” fazendo uso de uma parte do filme Cidade de Deus
e dos livros A droga da obediência de Pedro Bandeira e Walace e
João Vitor de Amanda Shauz. Houve muitos debates, mais na 6ª
e 7ª série. Os alunos deram depoimentos de uso de droga na
família, dos amigos, conhecidos, porque eles vivem num ambiente
de drogas. Fizeram muitas perguntas sobre os problemas que a droga pode
causar e produziram textos sobre pessoas e fatos que conheciam. (Renata
e Dagma ).
As estagiárias sabiam do conhecimento dos alunos e possível
envolvimento com drogas e mesmo assim surpreenderam-se com a desenvoltura
com que fizeram depoimentos sobre o assunto. Nas outras escolas limitaram-se
aos comentários do filme e dos livros.
Outra decepção das estagiárias foi o projeto preparado
em torno de uma crônica que tratava dos “Reality shows”.
Tínhamos como objetivo incentivar os alunos a lerem este e todos
os outros textos do livro que recebiam. Outro propósito era fazer
com que os alunos assistissem a estes e a outros programas com um pouco
mis de espírito critico.(Ana Carolina e Ana Paula).
Falaram sobre o que era um Reality show e lembraram de outros programas
com este formato “Big Brother”, “Acorrentados”,
“Casa dos Artistas”, “No limite”, “Amor
a bordo” e “Fama”. Formaram-se grupos para lerem reportagens
diversas que abordavam o tema ou discorriam sobre outros programas similares
em outros países.
Foram levantadas questões provocatórias, que suscitavam
debate, o aspecto anticultural deste tipo de programa, a não aleatoriedade
da escolha, do perfil dos candidatos, os possíveis motivos pelos
quais os programas ainda têm tanta audiência, apesar das críticas,
a possibilidade de haver manipulação de resultados, a exposição
da vida íntima em busca de fama, tão efêmera. E concluem:
Apesar de nossos esforços, o tema suscitou pouco
debate. Observamos dificuldades na apresentação (mesmo depois
de lerem algumas reportagens). A nós pareceu que temiam a nossa
opinião e a dos colegas. Parecia que as críticas que os
programas receberam, e que eles tomaram conhecimento através das
reportagens, deixou-os com dificuldades para dizer se teriam vontade de
participar de um programa assim. Então, indagamos sobre o tipo
de programa que assistiam. A maioria citou “Malhação”.
Falamos sobre os temas abordados neste programa e os alunos debateram
com mais entusiasmo e escreveram sobre o que conversamos. (Ana Carolina
e Ana Paula ).
Muito teríamos ainda a relatar, mas para o nosso propósito
nesse momento, o exposto pareceu suficiente.
Desta experiência pudemos concluir que não há dúvidas
que o processo de leitura, letramento, formação do leitor,
passa necessariamente pela escola,pois, mesmo não sendo a única,
é a principal agente deste processo. Como a sociedade brasileira,
dada as suas dificuldades, atribui à escola responsabilidade maior
de formação de leitores, temos em vista esse espaço,
quando propusemos a levar estagiárias pra incrementar projetos
de leitura.
Move-nos a certeza de que o domínio da cultura letrada abre, a
cada sujeit ,um leque maior de possibilidades de compreensão do
real e de exercícios de cidadania. Por essa razões, aqueles
que envolvem com a educação de crianças e jovens
precisam estar cientes de seu papel na formação de leitores
e, principalmente, ser também, leitores. Isso porque só
transmitimos um valor quando o introjetamos, quando estamos convencidos
de sua importância. Assim, quem não lê, não
pode incentivar os outros a lerem.
Urge, portanto, investir na preparação de professores, bibliotecários
e outros animadores culturais, para lidarem com o livro (e especificamente
o literário, na escola, conhecendo a natureza, função
e dinâmica de circulação deste material).
Constatamos que apenas as iniciativas oficiais de enviar os livros às
escolas, seja para as bibliotecas ou para os alunos, não são,
por si só, eficientes ou suficientes. São partes do processo.
Aquele professor, leitor interditado, na definição de Luiz
Percival Leme Brito, nem sempre é capaz de entender que o trabalho
com a obra literária, previsto nos P.C.Ns, é parte importante
do “conteúdo” que julga obrigatório passar para
o aluno.
Há de se ter uma parceria com a universidade na formação
de professores aproximando todas as áreas do conhecimento, uma
vez que nenhuma delas dispensa o ato de ler. Cuidar de metodologias de
ação, enraizadas nas necessidades da clientela, providenciar,
ainda, o desenvolvimento de prática leitoras diversificadas em
cada região escola brasileira.
Este é um pequeno relato de uma leitora apaixonada que objetivou
uma docência e observação, mostrando que é
possível levar adiante o prazer de ler. O que é possível
se entrarmos em contato com o objeto de estudo, nos descobrirmos leitores
e socializarmos os resultados alcançados. Conhecendo o caminho,
podemos trilhá-lo com nossos alunos, sejam eles da educação
infantil ,da graduação ou além dela.
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