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MONTEIRO
LOBATO – LITERATURA E DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA PARA
CRIANÇAS
Rosane de Bastos Pereira - Mestranda na Faculdade
de Educação da Unicamp/FE
Pedro da Cunha Pinto Neto - Orientador
Todos os projetos que abraçamos nessa vida têm
sua razão de ser. Muitos deles são pensados, outros são
meros frutos do acaso. O texto que utilizo para desenvolver este trabalho,
intitulado A Ciência do Visconde, foi-me uma daquelas descobertas
inesperadas – e felizes, por sinal. No primeiro semestre de 2005,
matriculei-me na minha última disciplina de mestrado, no Instituto
de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
com a professora Marisa Lajolo, especialista em Monteiro Lobato. Numa
de nossas aulas fomos conhecer – na verdade eu já o conhecia
- o arquivo do Centro de Documentação Cultural Alexandre
Eulálio (Cedae), onde estão acervos famosos, entre eles
o do criador do Sítio do Picapau Amarelo.
Sei que estávamos numa das salas do Cedae, no IEL, a ver manuscritos,
fotos, textos do escritor Monteiro Lobato, quando me deparo com A Ciência
do Visconde. Estavam lá os datiloscritos do século passado,
feitos à máquina, rasurados em cinco versões não
concluídas, com rabiscos, marcas do tempo e recuperados pelos arquivistas.
Estavam ali as idéias vivas do escritor e jornalista nascido em
1882, em Taubaté, e que morreu em 1948, em São Paulo. O
escritor tinha uma imaginação rica, polêmica e instigante.
Ao ler as cinco versões do texto, optei pela primeira que, apesar
de estar confusa em alguns pontos, pareceu-me a mais completa. Não
tenho informações de que o texto tenha sido finalizado e
publicado no Brasil. Parece que se isso aconteceu, talvez tenha sido na
Argentina. Independente disso, mergulho nesse texto porque acredito que
nele Lobato contribuía para divulgar para as crianças as
idéias científicas daquele período, ainda que nem
todos concordem com o meu ponto de vista.
A história de A Ciência do Visconde se passa no Sítio
do Picapau Amarelo e começa assim:
O Visconde de Sabugosa estava se tornando cada vez mais
científico e respeitado no Sítio do Picapau Amarelo, menos
por tia Nastácia, a única que duvidava da ciencinha dele.
Cada vez que o ouvia falar em "evolução", "adaptação",
"sobrevivência" ou qualquer outra dessas palavras que
usam cartola e óculos, a boa negra fazia um muxoxo de caçoada.
_Ché!...exclamava. Isso de palavras bonitas não adianta.
Eu queria que o visconde fizesse com a tal ciência dele alguma coisa
útil, de comer ou usar. Mas não sai nada.
Emília tomou as dores do sabugo científico.
_É que ele faz "ciência pura" e não "ciência
aplicada" – dona Benta já explicou a diferença.
Mas se o visconde quiser, aplica a sua ciencinha pura e até jaboticaba
sem caroço é capaz de conseguir.
Tia Nastácia deu uma risada gostosa.
_Jaboticaba sem caroço? Eu queria ver! Nem Deus, que é Deus,
conseguiu isso, quanto mais ele...
Emília explicou que as frutas nascem com caroço, ou semente,
para a perpetuação da espécie, pois se as frutas
começassem a vir sem sementes todas as plantas que dão frutas
desapareceriam da face da terra.
Ao longo do texto, ou da história, os personagens
dialogam sobre a importânica dos avanços científicos
e das transformações que a ciência do Visconde provoca
no Sítio. De repente, ele começa a criar jabuticabas sem
caroço e frutas antes não comestíveis, como o cragoatá,
tornam-se deliciosas. Visconde decide transformar todas as frutas do mato
em frutas de mesa, para mostrar que a ciência dele tinha razões
para existir e que ele não ficava em vão no laboratório
“destripando” o átomo. A ironia da Emília Sabe-Tudo
é uma constante artimanha do escritor para aguçar a curiosidade
das crianças leitoras. A boneca de pano, apesar de se achar auto-suficiente,
é também um serzinho que aprende a cada dia, a partir das
histórias contadas pela Dona Benta e pelas próprias aventuras
vividas no Sítio. Tia Nastácia é a negra ignorante
nas criações de Lobato, que nessa história aparece
desde o começo para debochar da ciencinha do Visconde. Mas ela
também é a mulher simples que carrega toda uma cultura popular.
Embora não seja possível saber o ano em que Monteiro Lobato
escreveu A Ciência do Visconde, percebe-se a influência da
cultura norte-americana sobre sua forma de ver o mundo, a sociedade, não
só nesse texto, mas em vários outros. O escritor viveu em
Nova Iorque como adido comercial, onde permaneceu de 1927 a 1931. Era
um leitor ávido e nas suas obras aparecem referências a leituras
de notícias científicas em publicações estrangeiras,
citadas dentro das narrativas dos personagens do Sítio. Ele defendia
a exploração do petróleo, abraçou a causa
da Escola Nova, com o educador Anísio Teixeira, na década
de 1930, e passou a publicar livros para serem adotados pelas escolas
brasileiras. A exemplo do seu personagem científico, o Visconde
de Sabugosa, vivia entre idéias-mães.
Para retomar a evidência de influências norte-americanas na
escrita lobatiana em determinados momentos, talvez pela sua passagem pelos
Estados Unidos, o autor revela, por meio da fala de Tia Nastácia,
que “para a boa negra, havendo na frase palavras eruditas ou científicas,
tinha por força de ser inglês – isso depois que o almirante
Brown esteve lá no Sítio, sentado na rede da sala de jantar,
a conversar com dona Benta em inglês”. Sabe-se que, como todo
ser humano, o escritor se encantou pelo novo país onde vivia e
teve ímpetos de admirar em demasia a cultura estrangeira, além
de fazer críticas ao Brasil. Em A Ciência do Visconde, enquanto
o sabugo de milho científico tenta provar o valor de sua ciência,
ele se lembra do cientista Burbank como se fosse alguém bem próximo
deles. Para mim, isso tem a ver com as próprias leituras de Lobato
e suas concepções sobre o valor da ciência:
_Está aí uma coisa linda que posso fazer:
transformar todas as frutas do mato em frutas de mesa. Aquele célebre
Burbank, que dona Benta considera maior que Alexandre e Napoleão
juntos, quase que criava frutas novas. Recebia encomendas: “Senhor
Burbank, precisamos dum tipo de melão assim assim, de tal tamanho
e tal forma, e tal gosto, etc.” E ele aplicava lá sua ciência,
depois de uns tantos meses apresentava a fruta exatamente de acordo com
as condições da encomenda. Assim nasceram os melões
Cantaloup e Honeydew, que constituem uma grande riqueza para os americanos.
Também fez sob encomenda o peti-pois americano, e a ameixa e a
uva sem sementes, e o cactus sem espinho.
O pesquisador Luther Burbank, ou Lutero Burbank, tornou-se
famoso ao desenvolver várias frutas híbridas, novos tipos
de flores, cactus sem espinhos e a Batata Russet Burbank, entre as últimas
décadas do século 19 e começo do século 20.
Talvez seja por isso que, mais adiante, apareça no texto a expressão
“na batata da ciência”. A conversa que prossegue entre
Emília e Visconde traz para os leitores infantis explicações
científicas que, a meu ver, enriquecem o vocabulário e a
percepção de mundo, como no trecho abaixo:
O visconde explicou que são os cactus as únicas
plantas que vingam nos desertos, nessas zonas onde não há
chuvas. “E vingam duma maneira muito interessante: diminuindo a
superfície de evaporação e retendo água no
corpo.”
Emília não piscou, como fazia quando não pescava
do assunto, e desenvolveu o tema:
_ Eu sei o que é diminuir a “superfície de evaporação”.
Quanto mais folhas tem uma planta, maior é a superfície
de evaporação dessa planta, porque é pelas folhas
que se evapora a água que a planta bebe da terra por meio de suas
raízes. Se a gente extender no chão todas as folhas duma
jaqueira, por exemplo, forma um tapete de mutíssimos metros quadrados.
A área desse tapete é a superfície de evaporação
da jaqueira. Acertei ou não acertei, visconde?
_ Está claro que acertou, Emília, respondeu o sabugo em
tom envaidecido. Meus alunos acertam sempre...
_Gabola!...Os cactus diminuem a superfície de evaporação
com a ausência de folhas, isso eu sei – mas como é
que retêm a água no corpo?
_Porque são carnudos. Aquela carne não é massa seca,
é esponja. Eles vivem cheios d’agua. Corte um pedaço
de cactus e exprema e veja quanta água pinga. O talo dos cactus,
isto é, seu corpo, são verdadeiras esponjas vegetais embebidas
de água. E para que a água dessas esponjas não se
evapore ao calor do sol, eles se revestem duma película vidrenta,
impermeável, que conserva água presa lá dentro por
maior que seja o calor do sol. Quer ver? E o visconde levou- a para junto
de um pé de mandacará, no jardim, no qual ele havia pendurado
um letreiro com o nome científico desse cactus: Cereus mandacaru.
Todas as árvores do pomar tinham seu letreirinho em chapa de metal.
As laranjeiras: Citrus aurantium. A pitangueira da Emília: Eugenia
uniflora. O pé de fruta-do-conde do visconde: Anona squammosa.
Os mamoeiros de tia Nastácia: Carica papaya. As jaboticabeiras
traziam na chapinha o nome científico, Eugenia cauliflora, e mais
o nome da variedade – Sabará, rajada, etc. Até o pezinho
de cabeluda, que era um coitado, de tão raquítico, tinha
sua chapa: Eugenia tomentosa.
O Visconde de Sabugosa empolga-se tanto com os seus novos experimentos
de botânica que não demora muito e começam a surgir
os primeiros resultados. Ele foi desafiado por Tia Nastácia, que
o acusava de não criar nada de útil. Foi aí que ele
investiu seus dias e sua energia em fazer ciência aplicada, o que
resultou em um novo pomar. Os moradores do Sítio recebem, então,
visitantes curiosos, como o coronel Teodorico, que fica encantado com
o poder da ciência do Visconde:
O resultado só podia ser o que foi. O “pomar
novo”, que eles formaram em seguimento ao velho, para lá
do ribeirão, tornou-se o grande acontecimentos da zona. Vinha gente
de longe ver a maravilha. O coronel Teodorico também apareceu por
lá e abriu a boca, sem entender o que via. Quando Pedrinho apareceu
com um cacho de cragoatá e lhe disse: “Experimente um, coronel!”
ele deu uma risada gostosa.
_Pensa que sou bobo, menino? Ainda me lembro de quando queimei a minha
boca com essa peste, lá nos meus oito anos...
_Queimou a boca com o cragoatá bravo, disse Pedrinho, mas este
foi civilizado, “educado” pelo visconde. Virou fruta-de-mesa,
e para prova do que dizia comeu regaladamente dois cragoatás, enquanto
dona Benta e Narizinho faziam o mesmo. Vendo aquilo, o coronel animou-se
e, sempre ressabiado, levou um à boca e deu uma mordidazinha leve.
Esperou um bocado, a ver se picava a língua. Como não picasse,
deu uma mordida maior, e por fim comeu gostosamente a linda fruta amarela
como se aquilo fosse maçã. Ah, a cara que ele fez ninguém
mais esqueceu. Arregalou uns olhos deste tamanho. Por fim duvidou.
-Estão mangando comigo. Isto nunca foi cragoatá. É
mas é uma fruta do céu. Nunca imaginei que houvesse coisa
mais gostosa e cheirosa.
-Pois é o mesmo cragoatá selvagem que sempre existiu e visconde
com sua cienciazinha aperfeiçoou, fazendo perder o picante e outras
más qualidades, disse dona Benta. O compadre bem sabe que todas
as nossas frutas-de-mesa – uvas, maçãs, peras, laranjas,
mangas, etc. – antes de serem o que são eram verdadeiros
cragoatás silvestres, miúdos, azedos, feios. Mas o homem
foi lidando com eles e cultivando-os, e selecionando-os, e aperfeiçando-os
por meio de enxertos e trato, de modo que as temos hoje como verdadeiras
maravilhas. Pois foi o que o visconde fez com o cragoatá e tantas
outras frutas do mato que nunca valeram coisa nenhuma.
O coronel comia um cragoatá atrás do outro e babava. Insistia
em que aquilo era mais que fruta – era um pedaço do céu.
E tinha razão. De todas as frutas do mato aperfeiçoadas
pelo visconde, nenhuma melhorou tanto como o cragoatá. Perdeu o
picante, a acidez, a fibrosidade, as sementes e ficou uma verdadeira manguinha
de sabor especialíssimo – coisa muito mais do céu
do que da terra. E quando, a chamado de dona Benta, tia Nastácia
veio lá da cosinha com dois pratos na mão, um de doce inteiro
de cragoatá, outro de “cragoatazada”, o espanto do
coronel chegou ao auge. Eram doces que batiam longe todas as compotas
e marmeladas.
O fazendeiro não cessava de espantar-se. Por fim lambeu os beiços
e disse:
_Comadre, este seu sítio até parece que tem parte com o
demo. O que acontece por aqui deixa uma pessoa tonta. Já não
falo das reinações dos meninos, dessas viagens que eles
andam fazendo lá pelas Grécias no lombo do tal de pirlimpimpim.
Falo das coisas que vejo aqui. A beleza dos porcos que a senhora cria;
a beleza das galinhas e a quantidade dos ovos que elas botam – um
por dia e lá as minhas um por semana. E o milho que a senhora colhe,
comadre, 300 alqueires por um, o dobro da fazendeirada aqui dos arredores
– e cada espiga que até parece boca de cavalo com os dentes
arreganhados. E agora estas frutas... Será que seu sítio
tem parte com o demo, comadre?
Dona Benta riu-se:
_ Tem parte com a Ciência, isso sim. Tudo quanto fazemos aqui não
é feito às cegas, como os outros. É ali na “batata
da ciência”, como diz Emília – e por essa razão
as coisas do Picapau Amarelo assombram os visinhos. Este cragoatá,
por exemplo, é a ciência de Lutero Burbank aplicada ao velho
cragoatá selvagem que toda gente conhece.
O coronel não sabia quem era Burbank e piscou. Dona Benta teve
de contar a vida desse grande mágico da botânica, que conseguiu
o cactus sem espinhos e tantas outras maravilhas.
No trecho acima fica clara a idéia de como a ciência
ocupa um lugar mais que divino – ou, melhor dizendo, humanamente
criada - na escrita lobatiana. Os cientistas começam a fazer coisas
que contrariam a própria criação de Deus. Se as frutas
nascem com caroço, por exemplo, não seria uma interferência
demoníaca essa do homem ao alterar sua própria constituição?
Dona Benta chega para apascentar os sentimentos e denota como a ciência
torna a vida melhor. O coronel Teodorico ouviu dela que os cactus espinhentos
que habitavam vastas extensões de território norte-americano
foram substituídos pelos cactus sem espinhos de Burbank, o que
permitiu transformar as áreas antes inabitáveis em excelentes
pastagens para o gado bovino e os cactus tornaram-se comestíveis.
Pedrinho também mostrou ao coronel as amoras brancas e deliciosíssimas
aperfeiçoadas pelo Visconde, as uvaias e goiabas sem bicho nem
caroço “e os maracujás-guaçus do tamanho de
mangas coração-de-boi, e polpa tão deliciosa como
a dos melões”. O coronel, que antes não acreditava
nos livros nem na ciência, descobriu que, cada vez que ia ao Sítio,
percebia, segundo ele, a diferença entre o saber e a ignorância,
como descrito abaixo:
Depois de apresentá-lo a todas aquelas “frutas
novas”, dona Benta disse:
_ O mais interessante, compadre, é que todas estas
maravilhas brotaram dum desafio de tia Nastácia, feito à
ciência do visconde há uns anos atrás. Ela duvidou
que a ciencinha dele pudesse produzir coisas de comer ou usar –
e o visconde ajudado por todos nós produziu o que o compadre está
vendo.
O coronel quis dizer qualquer coisa, mas calou-se. Sentiu que qualquer
coisa que dissesse sairia asneira. Nunca aquele homem percebeu tão
bem a diferença entre o saber e a ignorância. Por fim disse:
_ Cada vez que venho a este sítio saio mais chato que um percevejo.
Eu antigamente não acreditava nos livros nem na ciência –
hoje estou vendo que fora da ciência
Infelizmente, este trecho da história fica inacabado. Monteiro
Lobato cria um capítulo a seguir, meio solto, com frases incompletas,
em que explica os porquês dos nomes científicos das plantas.
Não dá para saber as suas intenções. Escolhi
este texto para escrever sobre ele porque lamento não vê-lo
concluído, pois o considero muito rico, especialmente para mim,
que sou jornalista e professora universitária, com especialização
em Jornalismo Científico pelo Laboratório de Estudos Avançados
em Jornalismo (Labjor/Unicamp), e me interesso pela forma como lidamos
com o conhecimento e o trabalhamos em sala de aula. Preocupa-me saber
como nós, professores, educadores, divulgadores ou popularizadores
da ciência, do saber ou do conhecimento, que seja, lidamos com a
arte de promover trocas mútuas com os estudantes sem que sejamos
apenas meros reprodutores do conhecimento imposto como uma camisa-de-força.
Às vezes me pergunto por que abrimos mão de recursos mais
criativos em sala de aula para proporcionar aos alunos uma aprendizagem
menos traumática e mais salutar. Vejo na literatura um caminho
para ampliarmos os recursos do processo de ensino-aprendizagem.
Agora vamos lá, ao título do meu trabalho: Monteiro Lobato
– Literatura e Divulgação Científica para Crianças.
Confesso que não é uma tarefa fácil entrar nesse
campo, abordar uma questão tão complexa, e nem pretendo
aqui esgotar nada. Interessa-me apenas questionar, inclusive questionar
a mim mesma, e refletir a respeito do valor que damos a esse “maravilhoso
mundo científico”. Não podemos deixá-lo de
lado, pois as crianças são o exemplo da inquietação
e da curiosidade humana. Elas vão querer saber, perguntar, buscar
explicações e nós teremos que responder - nem sempre,
ainda bem, porque muitas respostas nos faltam e aí reside a beleza
da vida. Entretanto, precisamos nos municiar de alguns conhecimentos básicos,
pois sem eles não poderemos ir para a sala de aula, e reconhecer
que não deveríamos reproduzir formas preconcebidas de ver
o mundo, como se fossem remédio para todos os males. Mas, a meu
ver, o maior desafio do professor não é responder e, sim,
estimular entre as crianças e os jovens alunos a perspicácia
e dar-lhes liberdade para indagar e procurar suas próprias respostas.
Nesse ambiente de informações científicas que nos
invadem a cada momento, creio que precisamos parar e encontrar o equilíbrio
e identificar se somos pessoas ativas ou passivas na construção
da nossa história.
No livro Escola, Leitura e Produção de Textos, Ana María
Kaufman e María Helena Rodríguez dizem que “sem dúvida,
uma nota de enciclopédia ou um texto de um livro de Zoologia nos
fornecerão dados mais precisos sobre os répteis do que um
conto de Quiroga. Mas este conto nos fará gozar e sofrer com o
jogo das diferentes imagens que vão tornando cada vez mais angustiante
o suspense, até culminar com a morte da personagem”. Dessa
forma, concordo com as autoras quando dizem que os textos produzidos para
uso extra-escolar, incorporados como materiais de leitura, e aí
incluem-se obras de literatura infantil, jornais, revistas, enciclopédias
e livros de consulta, podem ser fontes complementares. “É
indiscutível que os leitores não se formam com leituras
escolares de materiais escritos elaborados expressamente para a escola
com a finalidade de cumprir as exigências de um programa. Os leitores
se formam com a leitura de diferentes obras que contêm uma diversidade
de textos que servem, como ocorre nos contextos extra-escolares, para
uma multiplicidade de propósitos (informar, entreter, argumentar,
persuadir, organizar atividades, etc.)”, acreditam as autoras.
Quando me refiro ao texto de Lobato como de divulgação científica
para crianças por meio da literatura, volto a dizer que não
emprego a palavra “divulgação” como ela é
entendida por alguns especialistas. Não se trata de imaginar Lobato
a adequar uma linguagem para um público não-especializado.
Tampouco o vejo como um educador, a exemplo do que outros dizem. Quero
acreditar que divulgar, aqui, em A Ciência do Visconde, é
levar ao leitor sua visão de mundo, de época, de ciência,
seus valores, suas idéias, percepções e sentimentos
de autor, de homem, de cidadão. O fato de Lobato ter sido também
jornalista me faz crer que ele buscava em seus textos infantis comunicar
algo aos seus leitores que fosse além da mera criação
literária. Não o vejo apenas a inventar histórias.
Parece-me que há uma linguagem voltada para o comunicar, muitas
vezes próximo da escrita diária do jornalismo, embora ele
tenha se dedicado mais ao literário. Ao falar de ciência
pura e de ciência aplicada, e de suas diferenças, o autor
vai além da mera elaboração de uma história.
Ele expõe as sensações presentes, ele que convivia
com as idéias darwinistas e, talvez contraditoriamente, fosse um
apaixonado pela obra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche
(1844-1900), que via a ciência a seguir o caminho da indústria,
menos preocupada com o bem-estar do homem.
Para permear as minhas idéias, escolhi um livro de que gostei muito
– A Divulgação da Ciência como Literatura -,
de Ana María Sánchez Mora, divulgadora profissional na Dirección
de la Ciencia (DGDC) da Universidad Autónoma de México (Unam).
Fico a me perguntar se o que Lobato fazia também não era
uma espécie de transposição didática, em que
ele criava um mecanismo literário para dar um outro formato ao
conteúdo escolar. A autora ressalta que a divulgação
científica bem-sucedida está mais ligada à literatura
do que à ciência. Ela cita exemplos que vão de Aldous
Huxley ao neurologista e escritor inglês Oliver Sacks para justificar
a sua forma de pensar e os recursos literários de que se utilizam
para abordar os fatos. Os atributos dos bons textos de divulgação
científica, na opinião da autora, são: base na história
e na tradição; emprego da ironia e do humor, entrelaçamento
de arte e ciência; uso de analogias e metáforas; recurso
do cotidiano; um lugar para a metafísica e a religião; referência
à cultura popular; reconhecimento dos erros humanos e dessacralização
da ciência. “Nos casos relativos à segunda metade do
século XX, o caráter literário do texto parece ser
um dos postulados fundamentais da divulgação, a qual deixa
de ser uma disciplina ‘subsidiária’ da ciência
para se transformar em discurso autônomo e criativo sobre a ciência,
paralelo mas com intenções diferentes”, explica.
Ao ler a definição de tais características, vejo
logo que A Ciência do Visconde possui algumas delas, porém
não se enquadra exatamente nos propósitos de um texto de
divulgação científica se levarmos a palavra divulgação
ao pé da letra com o propósito de adequação
da linguagem, como mencionei anteriormente. Para mim, ainda é uma
incógnita saber se Lobato “comunicava” o saber científico
por meio da literatura ou se ele “dividia” com o leitor esse
conhecimento e investia num processo de aprendizagem, se ele era um divulgador
ou um educador, ou ambos, embora eu ainda veja o divulgar no sentido de
promover uma troca. “A literatura dá forma à vida,
nos ajuda a saber quem somos, como sentimos e qual é o sentido
das nossas experiências privadas. O escritor deve relacionar essas
experiências, de modo humanamente satisfatório, com as experiências
públicas dos universos dos fatos naturais e das convenções
culturais; e continuar com a tarefa de tirar o melhor proveito possível
de todos os mundos onde os seres humanos estão predestinados a
viver, perceber, sentir, pensar e morrer”, diz Ana María
Sánchez. É inegável que havia uma figura de peso
nesse processo da escrita lobatiana – o leitor –, sem o qual
não haveria esta literatura infantil; um leitor que se transforma
ao ler, ao contribuir para o processo de constituição da
escrita e da leitura . Não quero me prender à explicação
teórica do que seja ou não divulgação, até
porque não é minha área de estudo. Apenas acredito
que ao liberar algo que sabemos, seja por meio de textos escolares tradicionais
ou de textos literários, nos abrimos para novas perspectivas. As
perguntas, portanto, ainda são mais evidentes do que as respostas.
Bibliografia
KAUFMAN,
Ana María e RODRÍGUEZ, María Helena. Escola, Leitura
e Produção de Textos. Porto Alegre, Editora Artmed, 1995.
LOBATO, Monteiro. A Ciência do Visconde. Arquivo Cedae/Unicamp.
Código Mlb 4.1.000 34/A Caixa 12.
MORA, Ana María Sánchez. A Divulgação da Ciência
como Literatura. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2003. |
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