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LINGUAGEM
ESCRITA E LINGUAGEM ORAL: UM ESTUDO DOS FENÔMENOS LINGÜÍSTICOS
NOS TEXTOS PRODUZIDOS POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Flávia
Girardo Botelho - Aluna do curso de Mestrado em Educação
da Universidade Federal de Mato Grosso, UFMT
Izumi Nozaki - Professora Doutora do Programa de Pós-graduação
em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, UFMT
A
escrita, como atividade, segundo Cagliari (1987) “é uma das
manifestações mais antigas da humanidade, ao lado da arte
e da arquitetura ” e nasceu de uma forte necessidade do homem de
controlar quantidades, o que era feito na forma de entalhes na argila.
A história da escrita revela que a necessidade de deixar marcas
fez com que surgisse um meio de comunicação que fosse duradouro
e, com ele, uma outra atividade que marcaria de forma indelével
a história social do homem, a leitura. A escrita não só
traçou o destino da humanidade como também deu ao homem
a possibilidade de se inscrever no mundo. Ao deixar marcas nas cavernas,
o homem marcou também seu destino, fazendo com que aqueles traços
fossem lidos e interpretados muitos anos após suas inscrições.
Da mesma maneira como o ato de escrever teve decisiva importância
no seu surgimento, na sociedade atual esta relevância permanece.
Dentre as diversas manifestações do homem, a escrita, por
seu papel intelectual e ideológico, tem lugar privilegiado de tal
forma que, segundo Teberosky (1997), “a civilização,
e particularmente a civilização urbana, é impensável
sem a escrita ”.
A escrita, na sociedade, exerce três funções, que
lhe são exteriores, mas que estabelecem uma relação
com o mundo. São as funções de registro ou função
mnemônica, de regulação e controle social da conduta
e de comunicação. Dessa forma, para Teberosky (1997), “escrever
é uma atividade intelectual que se realiza por meio de um artefato
gráfico manual, para registrar, comunicar, controlar ou influir
sobre a conduta dos outros ”.
Para Cagliari (1995), pela sua história, podemos distinguir três
fases bem distintas - a fase pictórica, a fase ideográfica
e a fase alfabética.
A fase pictórica apresenta o sistema de escrita através
de desenhos ou pictogramas, que estão associados a uma imagem e
não a um som. A fase ideográfica apresenta a escrita através
de desenhos especiais denominados ideogramas, extremamente centrados nos
significados. À medida que os ideogramas passavam a significar
mais que as imagens, assumindo valores fonéticos distintos, passaram
também a transcrever sons da fala, evoluindo do sistema ideográfico
para o fonográfico, o alfabético. A fase alfabética
caracteriza-se, deste modo, pelo uso de letras que representam os sons,
dando origem aos alfabetos. O uso da escrita alfabética proporcionou
ao homem maior liberdade em sua comunicação, já que
este sistema apresentava-se como um código amplamente difundido.
Ao longo do tempo, a escrita alfabética trouxe novas necessidades
e, deste modo, convenções ortográficas foram necessárias
para regularizar o sistema de escrita. Segundo Silva (1994), “a
convenção ortográfica, instituída para solucionar
as dificuldades causadas por essas variações, deixou de
lado o princípio básico do sistema alfabético e adotou
uma forma fixa para cada palavra ” e essa forma fixa desvinculou
a palavra da sua oralidade, da maneira como ela era produzida pelos falantes
em seus dialetos.
Assim, a escrita alfabética tornou-se independente da oralidade
dos grupos de falantes, assumindo uma forma fixa, pôde ser difundida
por todo mundo ocidental, por meio da imprensa, do comércio e,
mais tarde, por meio da Educação formal, regularizando e
padronizando as formas de comunicação. Quanto mais os usuários
utilizavam a escrita alfabética, mais o faziam guiados por seu
significado e não mais pelas relações entre os sons
e as letras. Para Silva (1994), “isso quer dizer que dificilmente
ele (usuário) recorre à relação entre a letra
e seus valores fonéticos para decidir como escrever e/ou ler uma
determinada palavra ”.
Historicamente, a escrita tornou-se um meio de expressão e de comunicação
muito utilizado, mas na atualidade, o processo de sua aquisição
tornou-se uma das grandes preocupações da educação
brasileira. Ao longo dos anos, pesquisadores têm se dedicado ao
estudo do problema da alfabetização e explicam diferentemente
as dificuldades de aquisição da escrita tanto por parte
das crianças como dos adultos.
Sobre a alfabetização, Abaurre (1988) afirma que “o
ato de escrever é bem mais complexo do que transcrever a fala ”
e que a escrita não é uma mera tentativa de transcrição
da fala. Entretanto, para Abaurre, em alguns momentos a criança
faz o registro escrito tendo como referência sua fala, porém
de uma forma inconsciente.
Em conformidade com a tese de Abaurre, Silva (1994) também entende
que, para a criança, a escrita é mais complexa do que uma
simples transcrição da fala, e que no ato da escrita, a
criança formula hipóteses baseadas tanto na própria
fala como na observação do modelo escrito à sua volta.
Por isso, o texto da criança representa graficamente unidades e
cortes semelhantes aos da linguagem oral, refletindo as várias
reestruturações de representações lingüísticas,
ao mesmo tempo em que também representa unidades da escrita convencional
ou aspectos que as caracterizam, refletindo o envolvimento da criança
com a escrita.
Cagliari (1995) também entende a escrita da criança em relação
à sua fala. E deste modo, defende que as crianças, ainda
em fase de alfabetização, ao produzirem textos espontâneos,
enfrentam o desafio de escrever novas palavras e constroem hipóteses
sobre a ortografia a partir da fala, já que pensam a forma escrita
em relação à fala.
Lemle (1995), diferentemente de Abaurre, Silva e Cagliari que explicam
a relação da escrita com a fala através das hipóteses
de escrita, defende que o que ocorre é uma correspondência
entre fonemas e letras durante o processo de aquisição da
escrita. Para Lemle, o aprendiz, seja ele uma criança ou um adulto,
constrói sua escrita a partir de um caminho que passa por três
etapas relativas à correspondência fonema e letra: na primeira,
o aprendiz acredita que cada som corresponde a uma letra e cada letra
corresponde a um som; na segunda, ele descobre que a relação
de biunivocidade não é verdadeira e é condicionada
pela posição; na terceira, conclui que há posições
de concorrência entre letras e reformula sua segunda etapa, chegando
à teoria de que existem restrições para as posições
das letras e casos de concorrência de fonemas e letras.
Segundo a autora, a correspondência entre fonema e letra pode levar
a três tipos de falhas que o aprendiz pode cometer durante o ato
de escrita: as falhas de primeira ordem referem-se à repetição
de letras, omissão de letras, trocas na ordem das letras e falhas
decorrentes da incapacidade de classificar algum traço distintivo
do som; as falhas de segunda ordem referem-se às particularidades
na distribuição das letras em relação aos
fonemas, as quais acontecem porque a escrita do aprendiz é como
uma transcrição fonética da fala; e, finalmente,
as falhas de terceira ordem que se limitam às trocas entre letras
concorrentes. Dessa forma, para a autora, quando o aprendiz comete falhas
de segunda ordem isto representa que ele ainda não completou sua
alfabetização, uma vez que somente aqueles que apresentam
em sua escrita, falhas de terceira ordem é que podem ser considerados
como alfabetizados porque estas são falhas que podem ser superadas,
gradativamente, com a prática de leitura e escrita.
Como se viu, a história da escrita demonstrou que, à medida
que a escrita se difundiu como um sistema, tornou-se independente da oralidade.
Entretanto, quando se trata da aquisição da escrita pela
criança, estudiosos mostraram que, embora com enfoques divergentes,
de alguma forma, a fala não é de todo independente da escrita.
Deste modo, a história da escrita da humanidade e a história
da escrita da criança se assemelham no que tange ao desenvolvimento
da independência em relação à fala no decorrer
de um processo. Na história da escrita da criança, no entanto,
a independência em relação à fala é
caracterizada pela apropriação das convenções
do sistema lingüístico da língua materna, convenções
estas estabelecidas pelos próprios homens que constituem a gramática
da língua. Tais convenções, todavia, notadamente,
são apropriadas pela criança no processo de escolarização,
e neste processo, a criança não só se apropria, mas
as aplica, e ao fazê-lo, faz também desaparecer os fenômenos
lingüísticos da oralidade, e transforma a sua escrita, que
antes era dependente da fala, em uma escrita independente da fala.
Este processo de desenvolvimento da independência da fala na escrita,
assim como o processo de aquisição da escrita, não
deve ser entendido como processos mecânicos ou marcados por etapas
bem definidas. Pelo contrário, tal como explica Vygotsky (1998),
a história do desenvolvimento da linguagem escrita não segue
uma linha reta, única e direta, pois surgem formas novas, processos
de redução, desaparecimento e desenvolvimento reverso de
velhas formas.
Segundo Vygotsky, ainda, “a linguagem escrita é constituída
por um sistema de signos que designam os sons e as palavras da linguagem
falada, os quais, por sua vez, são signos das relações
e entidades reais ”. E neste sentido, a compreensão da linguagem
escrita é efetuada, primeiramente, através da linguagem
falada; no entanto, “gradualmente, esse elo intermediário
(a linguagem falada) desaparece e a linguagem escrita converte-se num
sistema de signos que simboliza diretamente as entidades reais e as relações
entre elas ”. Assim, a linguagem escrita, ao assumir sua independência
em relação à fala, adota um sistema de regras que
passam, então, a regular esta forma de comunicação.
Luria, na mesma perspectiva de Vygotsky, compreende que
“a
linguagem escrita é o instrumento essencial para os processos de
pensamento, incluindo, por um lado, operações conscientes
com categorias verbais, transcorre mais lentamente do que a oral; permitindo,
por outro lado, retornar ao já escrito, garante o controle consciente
sobre as operações que se realizam. Tudo isso faz da linguagem
escrita um poderoso instrumento para precisar e elaborar o processo de
pensamento ” (LURIA, 1986, p. 171).
Deste
modo, para Luria, é assim que a linguagem escrita permite que se
organize o pensamento, planeje o que se vai escrever e que se reveja o
que se escreveu.
Luria ainda indica que “a peculiaridade da linguagem escrita consiste
em que todo o processo de controle permanece dentro dos limites da atividade
do próprio sujeito que escreve, sem que haja correções
por parte do destinatário ”. Assim sendo, como a escrita
conta com poucos recursos que a auxiliem na expressão, “toda
a informação expressa na linguagem escrita deverá
se apoiar somente na utilização suficientemente completa
dos meios gramaticais desdobrados da linguagem ”, de forma que,
aquele que escreve deve estar consciente de que está mediado não
somente pelos hábitos da escrita, mas também pela gramática
e sintaxe de sua língua.
Sendo assim, se a aquisição da escrita pressupõe
a mediação da gramática e da sintaxe da língua,
meios estes apropriados no processo de escolarização, a
pergunta que se levanta é: em que momento histórico da escolarização
os fenômenos lingüísticos da oralidade desaparecem da
escrita?
Na tentativa de responder à questão, observaram-se, primeiramente,
os resultados de uma pesquisa realizada pelo Sistema de Avaliação
do Ensino Básico SAEB, no ano de 2003. No tocante às crianças
brasileiras da 4ª série do Ensino Fundamental, o estudo revelou
que 55,4% delas encontravam-se nos níveis muito crítico
e crítico no desempenho em Língua Portuguesa. Estes níveis,
segundo os critérios estabelecidos pela pesquisa, significam, dentre
outros aspectos, que as crianças “não desenvolveram
habilidades de leitura mínimas condizentes com quatro anos de escolarização.
Não foram alfabetizados adequadamente” .
Ao se analisar os resultados referentes aos alunos do 3° ano do Ensino
Médio, estes revelaram que apenas 6,3% deles encontram-se no nível
adequado que, segundo critérios definidos representam que os alunos,
dentre outros aspectos, não são leitores competentes, não
demonstram habilidades de leitura compatíveis com as três
séries do Ensino Médio, não dominam recursos lingüístico-discursivos
utilizados na construção de gêneros.
Ao se buscar compreender melhor o fenômeno, estudos de cunho qualitativo
da escrita de crianças e de adultos foram levantados, e dentre
eles, o de Cagliari (1995) e de Signorini (1999) foram apontados como
de significativa relevância.
Cagliari (1995), por exemplo, realizou pesquisas acerca da construção
da escrita pela criança. A partir de textos produzidos espontaneamente
por crianças de 1ª série, de escolas de periferia das
cidades de Aracaju e de Campinas, pôde constatar que um quarto do
total da amostra apresentava uma transcrição fonética
da própria fala. Outros fenômenos encontrados foram uso indevido
de letras, hiper-correção, modificação da
estrutura segmental das palavras, juntura intervocabular e segmentação,
forma morfológica diferente, forma estranha de traçar as
letras, uso indevido de letras maiúsculas e minúsculas,
acentos gráficos, sinais de pontuação e problemas
sintáticos.
Signorini (1999) , por sua vez, analisou diversas cartas produzidas por
três grupos de sujeitos: um de alunos migrantes matriculados em
cursos supletivos no nível de Ensino Fundamental, na região
de Campinas, São Paulo, outro de professores leigos e não-leigos
do interior de Alagoas e, por último, em contexto não escolar,
de sujeitos de diferentes regiões do país em suas tentativas
de comunicação escrita com instituições e
autoridades. O estudo revelou, então, “mixagem de elementos
do oral falado [...] com alguns poucos elementos do letrado escrito ”,
assim como uma escrita constituída por marcas de um universo oral,
com marcadores típicos da fala, discurso entrecortado e descontinuidade
sintático-semântica.
O presente estudo, deste modo, buscou analisar a escrita de crianças
e de adolescentes, ambos os grupos em fase de escolarização,
observando, em especial, com base na teoria de Luria, o processo de controle
dentro dos limites da atividade do próprio sujeito que escreve,
e a informação expressa na linguagem escrita apoiada na
utilização dos meios gramaticais desdobrados da linguagem.
Para se analisar os fenômenos da oralidade presentes na escrita
de crianças em processo de Alfabetização e sua permanência
durante os anos de escolarização, foi analisado um conjunto
de textos de produção espontânea de nove crianças
da Classe de Alfabetização e outro de dez crianças
de uma 5ª série do Ensino Fundamental. A proposta de produção
de texto solicitada às crianças da Classe de Alfabetização
referia-se às brincadeiras infantis, e, aos alunos da 5ª série
do Ensino Fundamental, foi solicitado que produzissem um texto sobre uma
viagem à Lua, tema que fazia parte de um projeto interdisciplinar
desenvolvido pela escola.
Com o intuito de analisar a escrita dos adolescentes, foi tomado como
objeto de avaliação um conjunto de 32 textos espontâneos
produzidos por adolescentes do 3° ano do Ensino Médio sobre
o tema “exploração ambiental”.
O estudo revelou, assim, a presença de diversos fenômenos
da oralidade na escrita espontânea das crianças da Alfabetização
e da 5ª série e dos adolescentes da 3° ano do Ensino Médio,
que foram classificados quanto à a) segmentação dos
enunciados escritos, b) correspondência entre sons e letras e c)
discrepâncias ortográficas relacionadas à não-biunivocidade
entre sons e grafemas.
1.
Sobre a segmentação dos enunciados escritos
Os dados do estudo permitiram identificar as ocorrências de segmentação
dos enunciados escritos, e estas foram organizadas tal como mostra o quadro
abaixo.
Quadro
1: Demonstrativo das ocorrências de segmentação dos enunciados
Especificação |
Alfabetização |
5ª
série |
Ensino
Médio |
hipo-segmentação |
4 |
2 |
0 |
hiper-segmentação |
3 |
1 |
0 |
Os
fenômenos relacionados à segmentação dos enunciados escritos se realizaram
de duas formas na escrita espontânea das crianças em fase de Alfabetização,
como hipo e hiper-segmentação, demonstrando a forte presença da oralidade
no ato da escrita da criança. O fenômeno da hipo-segmentação, como já
comprovado anteriormente por pesquisas de Ferreiro e Teberosky (1979),
ocorre com maior freqüência do que seu concorrente a hiper-segmentação.
Exemplos de hipo-segmentação:
Eu
gasto de brincar de patenete
Na
rua da minha casa com a minha irmã dimãnha e todos
o
dia bem sedo eu subo no patenete coloco um pé no patenete
e
o tro pé no chão (Gabriela, 6 anos)
[...] eles avistaram
a lua e derrepente um cometa bate no motor o ônibos foi caindo até chegar
na lua [...]. (Thiago, 5ª série)
Exemplos de hiper-segmentação:
eu
gosto de brica de ninja e sa bricadira é prisiza de cabo de vassora de
bastante pesouas. (Antonio, 6 anos)
[...]
A equipe se perdeu no espaço e passou pelo Marte, Vênus, Jupter e até
que em fim eles chegaram até a Lua. (Mariane, 11 anos)
2.
Sobre a correspondência entre sons e letras
Os dados do estudo revelaram,
também, a ocorrência de correspondência entre sons e letras, e sua freqüência
foi organizada conforme mostra o quadro abaixo.
Quadro
2: Demonstrativo das ocorrências de correspondência entre sons e letras
Especificação |
Alfabetização |
5ª
série |
Ensino
Médio |
Representação
das vogais nasais |
6 |
2 |
0 |
representação
da lateral |
2 |
4 |
1 |
representação
da vibrante |
5 |
1 |
4 |
representação
das formas do gerúndio |
1 |
1 |
0 |
representação
dos ditongos |
2 |
0 |
4 |
ditongação
de [o] è[ow] |
2 |
0 |
0 |
Rotacismo |
1 |
0 |
0 |
representação
das vogais átonas finais |
2 |
5 |
0 |
representação
das vogais pretônicas |
3 |
0 |
0 |
Entre
os fenômenos relacionados à correspondência entre sons e letras, a pesquisa
constatou a ocorrência de fenômenos na representação das vogais nasais,
dos fonemas laterais na posição de travamento de sílaba, do fonema vibrante
no final de palavra, das formas do gerúndio, dos ditongos, rotacismo,
vogais átonas finais e pretônicas.
O
fenômeno relacionado à representação das vogais nasais foi observado em
seis textos das crianças em fase de Alfabetização, o que revela a dificuldade
no controle dos fonemas nasais /m/ e /n/, já que sua representação varia
conforme o contexto de realização.
Exemplos de representação das vogais nasais:
EU
E MEU IRMÃO ANDRÉ E O FERNANDO
A
GENTE BRINCANMOS DE JOGAR
BOLA
NAQUADRA
DO CONDOMINIO NÃO PODI ENPU
ENPURRAO
OUTRO É UM CONTRAO OUTRO
TENQUE
XUTAR A BOLA NO GOU (Rodrigo, 6 anos)
[...] ai eu
peguei uma pédrinha guardei já o sinbolo do Brasil já estava lá aquela lagrima. [...] e fiz um pedido
desejei que tudo não bastava de um sonho pois aquela tumunto eu não gosto [...] (Annie, 10
anos)
Quanto à
representação da marca de gerúndio, observou-se a representação da terminação
“-ndo” por “-no”.
Exemplos de marcas de gerúndio:
Era
uma vez um gatinho que era bin calão que ficava tenteno
ri E tanben com quen ele foi? Comigo foi comigo la ma praça estovia final
(Yanara, 6 anos)
[...]
Hartomintes ficou dentro da nave controlano [...] (Augusto, 10
anos)
Exemplos de representação das vogais átonas
EU
E MEU IRMÃO ANDRÉ E O FERNANDO
A
GENTE BRINCANMOS DE JOGAR BOLA
NAQUADRA
DO CONDOMINIO NÃO PODI ENPU
ENPURRAO
OUTRO É UM CONTRAO OUTRO
TENQUE
XUTAR A BOLA NO GOU (Rodrigo, 6 anos)
[...] Então
a Nasa construiu um foguete que cabi 99.000.000.000 de quilos [...] (Augusto, 10 anos)
O
fonema /l/ pode ocorrer, como contextos, no início de sílaba ou em um
encontro consonantal. Nos casos em que aparece no final de sílaba, geralmente
correspondente à semivogal /w/ na oralidade, as crianças grafam o /l/
como /w/.
Exemplos de representação da lateral na posição de travamento de sílaba:
Era
uma ves uma roda itinha umote de pesoa era minina era minina cantava nacauzada.
(Priscila, 6 anos)
[...]
No 4o dia voutamos para a Terra. (Luciana, 11 anos)
Chegam
a fazer desmatamentos clandestinos, exploração da madeira, garimpo, exportações
de madeiras para fora na faucatúria [...] (Karina, 16 anos)
O fonema vibrante
simples, ou tepe, na ocorrência como marca final de verbos no infinitivo
pode desaparecer no ato da escrita quando sua pronúncia não é obrigatoriamente
exigida na fala.
Exemplos
do fonema vibrante simples como marca final:
EU
GOSTO DE BRINCAR DE BICICLÉTA PEDALO DE BICICLETA
COMELAMIGNHOS EU BRINDO DE BICICLETA NAPRASSA. (Rafael, 6) anos
[...]
Voltei para o foguete e lá vai eu i
pra terra [...] (Annie, 10 anos)
[...]-
Eles querem ficar no centro da cidade e que se parra isso precisarem desmata
tudo [...] (Lívia, 16 anos)
Outro
fenômeno observado refere-se à representação dos ditongos como sendo o
fenômeno da monotongação, no qual um ditongo que existe no padrão ortográfico
da língua desaparece na oralidade.
Exemplos de monotongação:
[...]
Eu coloco a roupa na barbe eu do comida. (Eduarda, 7 anos)
[...]
Deci do ônibus e perguntei para o casero. (Lívia, 16 anos)
3.
Sobre as discrepâncias entre sons e grafemas
Sobre
as discrepâncias ortográficas relacionadas a não-biunivocidade entre sons
e grafemas, a pesquisa constatou a presença de fenômenos como a grafia
das vogais nasais, dos fonemas [∫ ], [3],
[s], [z].
Quadro
3: Discrepâncias ortográficas na escrita
Especificação |
Alfabetização |
5ª
série |
Ensino
Médio |
grafia
das vogais nasais |
4 |
0 |
0 |
grafia
de [∫ ] |
1 |
1 |
0 |
grafia
de [3] |
5 |
1 |
0 |
grafia
de [s] |
8 |
3 |
3 |
grafia
de [z] |
7 |
1 |
1 |
O
quadro revela, deste modo, os fenômenos que persistiram e os que
desapareceram durante os anos de escolarização. Entre aqueles
que persistiram até a 5ª série do Ensino Fundamental,
destaca-se a grafia dos fonemas [? ] e [3], e entre os fenômenos
que persistiram até a 3ª série do Ensino Médio,
destaca-se a grafia de [s] e [z].
Exemplos
da grafia do fonema [? ]:
EU
E MEU IRMÃO ANDRÉ E O FERNANDO A GENTE BRINCANMOS DE JOGAR
BOLA NAQUADRA DO CONDOMINIO NÃO PODI ENPU ENPURRAO OUTRO É
UM CONTRAO OUTRO TENQUE XUTAR A BOLA NO GOU (Rodrigo, 6 anos)
[...]
o meu onibus era o mais xique [...] (Itacir, 10 anos)
Exemplos
de grafia do fonema fricativo [3]:
A
CEIMADA É ASIN ELA TEN QUE TE UMA BOLA O QUEIMADOR PEGA A BOLA
EJOGA A BOLA E SE ATINJI A PESOUA QUAUQUER ELA QUE VAI SER O QUEIMADOR
MAIS TEM QUE ATINJIR DEZ VESES E SE ATINJIR OMSE VESES AI QUE A OUTRA
PESOUA QUE VAI SER O QUEIMADOR ISSO QUE EU ESCREVI QUE É O FIM.
(Lucas, 5 anos)
Eu
Luciana vou contar sobre a minha viajem a Lua. [...] (Luciana, 11 anos)
Exemplos
relacionados à grafia do fonema [s] apareceram em diversos contextos,
como de início de sílaba ou palavra, de final de palavra
ou sílaba, entre vogais e com realizações diferentes,
tanto como <s> ou <ss> ou <ç>, entre outros.
Exemplos
relacionados à grafia do fonema [s]:
Era
uma vez um gatinho que era bin calão que ficava tenteno ri [...]
(Yanara, 6 anos)
[...]
aqui de sima pareso ver muitas crateras [...] (Carlos Bruno, 10 anos)
[...]
Deci do ônibus e perguntei para o casero. (Lívia, 16 anos)
Exemplos
de grafia do fonema [z] como <s> e como <z>:
Eu
gasto de brincar de patenete Na rua da minha casa com a minha irmã
dimãnha [...] (Gabriela, 6 anos)
[...]
Um certo dia eu Luciana resolvi ir até a lua, mais antes de ir,
a naza resolvel fazer uma intrevista comigo querem ver? [...] (Luciana,
11 anos)
Devemos
nos consientizar que presizamos muito de nossas matas [...] (Leilson,
16 anos)
Conclusões
Em
síntese, os dados do estudo revelaram que alguns fenômenos
persistem até a 5ª série do Ensino Fundamental, outros
persistem até o Ensino Médio, alguns desaparecem gradativamente,
outros desaparecem e reaparecem, e outros, aumentam, e depois, diminuem.
Especificamente quanto à segmentação, tanto a hiper
como a hipo-segmentação, ambas desaparecem gradativamente
ao longo da escolaridade.
Quanto à correspondência, a) a representação
das vogais nasais desaparece gradativamente, b) a ditongação,
rotacismo e a representação das vogais pretônicas
desaparecem na 5ª série, c) a representação
da lateral e das vogais átonas finais aumentam na 5ª série
e diminuem no Ensino Médio, e d) a representação
da vibrante e a representação dos ditongos decrescem ou
desaparecem na 5ª série e aumentam posteriormente no Ensino
Médio.
E quanto à discrepância, a grafia das vogais nasais desaparece
na 5ª série, e as demais grafias decrescem gradativamente
a partir da 5ª série.
O estudo mostra, desta forma, que a linguagem escrita, tal como explicitou
Vygotsky (1998, p. 154), ela é, primeiramente, efetuada através
da linguagem falada, e que, gradualmente essa via é reduzida, abreviada,
e a linguagem falada desaparece como elo intermediário. Todavia,
o estudo revelou que a linguagem falada não desaparece por completo
como elo intermediário até o final do Ensino Médio.
A presença da linguagem falada como mediação da escrita
revela que adolescentes com 16 anos de idade ainda necessitam da linguagem
falada para efetuar a linguagem escrita.
Ademais, ainda que a linguagem escrita deva se apoiar nos meios gramaticais,
tal como defende Luria, os quais devem ser apropriados durante a escolarização,
a escolaridade de pelo menos de 11 anos – da alfabetização
ao 3° ano do Ensino Médio -, não revelou ser suficiente
para a apropriação desses meios pelas crianças e
jovens de modo a torná-los instrumentos de mediação
para a atividade de organização e expressão do pensamento.
Deste modo, o estudo mostrou que as crianças e jovens brasileiros,
mesmo ao final do Ensino Médio, não possuem o controle dos
limites da atividade de escrita, instrumento essencial para os processos
de pensamento, processes esses que incluem operações conscientes
com categorias verbais e garantem o controle consciente sobre as operações
que se realizam (LURIA, 1986).
Com isso, pode-se dizer que, sem a linguagem falada, as crianças
e os jovens não podem chegar à linguagem escrita independente;
sem a gramática e a sintaxe da língua, eles não podem,
suficientemente e com autonomia, planejar seus pensamentos e controlar
suas atividades de expressão e de comunicação através
da linguagem escrita; e sem a mediação de seus professores,
eles não poderão se apropriar dos meios gramaticais e sintáticos,
que por sua vez, são necessários para a mediação
de seus pensamentos.
Referências
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