|
QUEM
É QUE NÃO TEM UMA HISTÓRIA PARA CONTAR? NARRATIVAS
QUE SIGNIFICAM AS PRÁTICAS EDUCATIVAS
Renata Cristina Nunciato - Secretaria Municipal
de Educação (SME) Campinas
Vera Lúcia Batista - Secretaria Municipal de Educação
(SME) Campinas
Resgatar, através da memória, as histórias
que constituíram a trajetória de vida das profissionais
de educação infantil, é uma proposta do curso de
aperfeiçoamento oferecido pela SME de Campinas. Rememorando suas
próprias histórias, e ouvindo tantas outras, cada integrante
do grupo (re)significa sua prática, seu modo de olhar a infância
e o trabalho realizado nas creches. Por esse motivo, a prática
de "contação de histórias" é utilizada
como estratégia mediadora no compartilhamento de experiências
e reflexões sobre o cotidiano do trabalho com crianças pequenas.
Como afirma Walter Benjamim, "o narrador retira da experiência
o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos
seus ouvintes" (1994, p. 201). É nessa perspectiva que as
narrativas, entendidas como um exercício de (re)conhecimento, constituem
a dinâmica dos encontros semanais deste grupo de formação.
Por conta da prática de "contação" reconhecemos
nas histórias compartilhadas caminhos pelos quais encontramos os
sentidos e significados que os indivíduos atribuem às situações
vividas.
Através dos relatos, constatamos que a trajetória de vida
(profissional e pessoal) aponta as razões que levam as integrantes
do grupo a ingressarem e permanecerem no exercício do ofício,
bem como os significados construídos por elas em relação
ao trabalho realizado nas creches. Significados que dão sentido
às experiências práticas acumuladas no cotidiano.
Queiroz define história de vida como:
“o relato de um narrador sobre sua existência
através do tempo, tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou
e transmitir a experiência que adquiriu. Narrativa linear e individual
dos acontecimentos que nele considera significativos, através dela
se delineiam as relações com os membros de seu grupo, de
sua profissão, de sua camada social, de sua sociedade global (1988,
p.20).
Neste curso de formação, as histórias
são contadas de diferentes modos: na escrita de cartas, em rodas
de conversas, na elaboração de desenhos, em registros fotográficos,
na re-leitura de filmes e imagens. Fundamentados nas vivências do
cotidiano e, muitas vezes, legitimados pelo discurso teórico disseminado
no local de trabalho, os relatos retratam as diversas dimensões
(sociais, afetivas, educativas etc.) que norteiam as atividades com as
crianças de 0 a 3 anos.
Como exemplo para reflexão dessa estratégia de produção
de conhecimento a partir das vivências cotidianas, destacamos neste
texto algumas experiências nas quais as narrativas possibilitaram
a (re)descoberta dos fazeres e saberes das monitoras que participaram
deste curso de formação no ano de 2004.
Propusemos ao grupo a elaboração de uma carta, onde as monitoras
contariam as atribuições desse profissional nas creches.
Depois de escritas, as cartas foram colocadas em uma caixa e escolhidas
aleatoriamente por elas, que deveriam compartilhar a leitura com o grupo.
Enquanto a carta era lida, os olhares e os gestos, demonstravam o quanto
cada uma se reconhecia nas palavras e frases pronunciadas. Era difícil
para o grupo identificar qual a autoria da mensagem.
"- Nossa, parece que copiamos umas das outras", falavam. Trajetórias
diferentes que, no entanto, se encontravam em concepções
tão parecidas com relação ao trabalho nas creches.
Por que isso acontecia? Indagamo-nos. Será que as referências
trazidas eram reproduções do que a sociedade, de modo geral,
indicava como sendo o perfil ideal para se trabalhar com crianças
pequenas?
Diante da escrita e leitura das cartas, desvelamos as imagens sociais
que permeavam a constituição dos profissionais de educação
infantil. As cartas eram "espelhos" que refletiam as contradições
presentes na busca pela identidade profissional evidenciada nas falas
e debates ocorridos nos nossos encontros.
"Foram provocantes." ( N.)
"Só
agora pude ver que na creche sou uma profissional, e não alguém
da família da criança" (F.)
Além
disso, os relatos revelavam as imagens do grupo sobre o papel profissional
dos monitores, como também a concepção que tinham
da creche, enquanto instituição pública de educação
infantil.
"É
que sou do tempo da Promoção Social. Quando entrei na creche,
só precisava saber limpar, trocar, alimentar a criança.
Nunca tinha trabalhado fora. Achei que deveria fazer como se estivesse
cuidando dos meus filhos." (B.)
"Não
temos formação nenhuma. Tudo que sabemos aprendemos com
as mais antigas. E elas também aprenderam na prática. Só
que, às vezes, fico me perguntando se é daquele jeito mesmo
que se faz. " (S.)
Da mesma
forma, mostravam que as monitoras utilizavam-se de suas experiências
pessoais para desenvolverem seu trabalho junto às crianças
da creche. Enfatizavam a questão da afetividade e confundiam-se,
diante do conflito de saberem que não eram parentes (principalmente
mães), mas profissionais de educação infantil que
assumiam responsabilidades de cuidado e educação com características
diferentes das atribuições familiares.
A atividade das cartas foi ponto de partida para definição
dos temas que iríamos discutir nos encontros futuros. As reflexões,
disparadas após a leitura das mesmas, evidenciaram algumas questões/desejos
que faziam parte da busca pelo curso de aperfeiçoamento. Todas
as discussões partiram das experiências práticas vividas
por cada integrante do grupo. Dinâmica que (re)significava os conhecimentos
compartilhados e o modo de ser profissional de educação
infantil.
Ao nos apropriarmos das narrativas como prática de produção
de saberes, estamos em busca de situações disparadoras de
lembranças que irão nos auxiliar na reflexão da própria
prática, num movimento onde compartilhamos com diferentes interlocutores
possibilidades de reinventar o vivido.
Von Simson, pensando na reconstrução de um passado recente,
acrescenta que:
“o
trabalho com a memória possibilita uma transformação
da consciência das pessoas nele envolvidas direta ou indiretamente
no que concerne à própria documentação histórica
(ampliando essa noção que abarca agora mais diversos suportes:
textos, objetos, imagens fotográficas, músicas, lugares,
sabores, cheiros), compreendendo seu valor na vida local, maneiras de
recuperá-la e conservá-la” (2000, p.67).
Nos baseando
nas análises de Michel de Certeau (1994), que reconhece a memória
como um saber que se caracteriza pela duração de sua aquisição
e por intermináveis conhecimentos particulares, os processos constitutivos
deste grupo de formação específico para os profissionais
de creches identifica na memória um saber mediador das transformações
sociais. Como Certeau, acreditamos que a memória produz uma ruptura
instauradora, "continua escondida (...) até o instante em
que se revela, no momento oportuno (...) o resplendor dessa memória
brilha na ocasião" (p.158). Ocasião que não
é criada, mas aproveitada.
Reconhecer a memória como um saber, significa dizer que através
das diversas modalidades das experiências coletivas vividas, o sujeito
produz e compartilha conhecimentos nas práticas cotidianas. Significa
reconhecer o cotidiano como espaço de construção
de experiências, de saberes que não precisam da legitimação
acadêmica para serem considerados como tal.
Para Von Simson,
"Memória
é a capacidade humana de reter fatos e experiências do passado
e retransmiti-los às novas gerações através
de diferentes suportes empíricos (voz, música, imagem, textos,
etc.). Existe uma memória individual que é aquela guardada
por um indivíduo e se refere às suas próprias vivências
e experiências, mas que contém também aspectos da
memória do grupo social onde ele se formou, isto é, onde
este indivíduo foi socializado”( 2000, p 63).
Neste sentido,
recorremos à memória para refletirmos sobre as idéias
e representações em torno da infância, buscando entendê-la
a partir das práticas sociais e culturais dos diferentes grupos
de onde advém as crianças com as quais convivemos como profissionais
de educação infantil.
Com o grupo de monitoras que participou do curso em 2004 assistimos ao
filme “Colcha de Retalhos”, antes de rememoramos a infância
vivida. Pretendíamos usá-lo com interlocutor/disparador
das memórias que seriam partilhadas, para pensarmos a riqueza presente
nos depoimentos, nas histórias de vida de cada uma. Fomos além,
e chegamos a conclusão que cada experiência, cada história
contribuiu para formação daquele grupo, e dos outros que
fazem (e fizeram) parte do cotidiano de todas nós.
Sugerimos que todas relembrassem a infância que tiveram. Para tanto,
deveriam escrever um relato sobre as “Memórias de Infância”,
onde colocariam suas lembranças, seus sentimentos, suas recordações.
Os textos produzidos, revelaram os prazeres e as experiências de
ser criança, e como os acontecimentos vividos neste período
ficam para sempre em nossa memória. Alguns relatos foram além,
remetendo à infância ações que fazem hoje (adultas),
numa tentativa de expressar o quanto a primeira fase da vida influenciava
diretamente nas demais.
As memórias relativas à infância contribuíram
para demonstrarmos os sentimentos e o entendimento que o grupo tinha sobre
as diferentes formas de ser criança. Constatamos que cada criança
vive uma infância específica relacionada ao seu contexto
social, ao seu tempo histórico e as práticas culturais do
grupo onde estão inseridas.
Durante os relatos, ficávamos atentas, olhávamos e interagíamos
umas com as outras, por meio de comentários, risos e expressões
faciais. Compartilhávamos o mesmo sentimento, a mesma busca: desvendar
os "segredos" específicos das infâncias (que vivemos
e que convivíamos).
Por conta das experiências vivenciadas nos encontros, constatamos
que contando histórias podíamos abrir as portas para um
mundo mágico onde prevaleceriam, além da imaginação
e fantasia, os sentidos e significados que os indivíduos atribuem
às situações vividas.
(Re)descobrimos que contar histórias é uma ARTE. Em nossas
conversas eram unânimes as falas que ressaltavam a importância
de se contar histórias através de diferentes recursos (livros,
fantoches e, principalmente, a memória). Muitos motivos eram apontados,
e todos relacionavam-se ao aspecto simbólico presente neste ato.
Segundo Bosi,
“O
narrador está presente ao lado do ouvinte. Suas mãos, experimentadas
no trabalho, fazem gestos que sustentam a história, que dão
asas aos fatos principiados pela sua voz. Tira segredos e lições
que estavam dentro das coisas, faz uma sopa deliciosa das pedras do chão,
como no conto da Carochinha. A arte de narrar é uma relação
entre alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria,
a vida humana” (1994, p.90).
Começamos
pensar sobre a necessidade de compartilhar com as crianças a produção
das histórias. Elas poderiam, coletivamente criar narrativas, que
seriam registradas pelo(a) educador(a). Ou ainda, confeccionar um objeto
que identificasse a história ouvida, fazendo com que a lembrança
da mesma fosse disparada sempre que víssemos tal objeto.
Fomos conhecer outros "segredos" dessa arte com a Malu , em
uma oficina onde prevalecia o encantamento diante dos gestos, da forma
como as palavras eram ditas, das lembranças que davam sentido a
cada história narrada.
Recorremos à oficina para ampliarmos nossa prática com relação
à contação de histórias e, para surpresa geral,
(re)descobrimos que nós mesmas trazíamos histórias
fascinantes, que poderiam ser compartilhadas com as crianças com
as quais convivemos.
Talvez por isso, a contação de histórias tenha sido
um meio educativo que, priorizando a característica simbólica
dos seres humanos, recorreu ao lúdico para o ensinamento dos conhecimentos
construídos e acumulados pelos diferentes povos.
No caso aqui descrito, do uso das narrativas como estratégia de
reflexão da prática, contamos histórias para relatar
experiências vividas, para rever o passado com os olhos do presente
e, principalmente, para produzir conhecimento a partir das experiências
relembradas.
Referências Bibliográficas:
BENJAMIM,
Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de NiKolai
Leskov. In: Magia e Técnica, arte e Política: ensaios sobre
a história e a cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos.
São Paulo: Cia das
Letras, 1994.
CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: 1 artes de
fazer.(Trad. Ephrain F. Alves) Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
QUEIROZ, Maria Isaura de. – Relatos Orais: do “indizível”
ao “Dizível”, In: Experimentos com Histórias
de Vida: Itália-Brasil. Org. VON SIMSOM, Olga de Moraes. São
Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1988.
VON SIMSOM, Olga Rodrigues de Moraes. Memória, Cultura e Poder
na Sociedade do Esquecimento, In: Arquivos, Fontes e Novas Tecnologias.
Org. FILHO, Luciano Mendes de Faria . Campinas/SP. Autores Associados:
Brag. Paulista SP. Univ. S. Francisco, 2000. |
|