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EFEITOS
DE SUBJETIVIDADE NO DISCURSO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA:
O PAPEL DOS VERBOS NO DISCURSO RELATADO
Silvia Regina Nunes – Universidade Estadual
de Maringá - PR (UEM)
O texto aborda as práticas de difusão e
de circulação de saberes científicos na mídia
impressa brasileira. Analisou-se uma reportagem da revista SAÚDE!
usando como pressupostos teóricos os estudos sobre discurso relatado
(discursos direto e indireto) oriundos de Bakhtin, Maingueneau e Benites.
Discutiu-se a relação entre os discursos científico
e jornalístico na produção de efeitos de sentido
que indicam objetividade ou subjetividade neste tipo de texto. Evidenciou-se
que os verbos analisados apontam para vestígios de subjetividade
no discurso de divulgação científica.
INTRODUÇÃO
Ao pensar sobre a relação entre o discurso
científico (DC) e o discurso jornalístico (DJ) através
do discurso de divulgação científica (DDC) um fato
muito peculiar tem nos chamado atenção: o jornalista está
sujeito a coerções próprias dos dois primeiros discursos
(DC e DJ), contudo, ao divulgar ciência, ele não obedece
completamente a estas coerções.
O DC prima pela objetividade, pelo positivismo e pelo empirismo a fim
de denotar a veracidade e a validade dos pressupostos da ciência;
o DJ também tem normas para sua redação, elas se
pautam pela imparcialidade, pela isenção, pela objetividade.
O intuito é o “puro registro dos fatos” (BENITES, 2002)
para mostrar ao público a ética e a idoneidade do jornal.
Já o DDC, discurso que utiliza padrões tanto do DC quanto
do DJ e tem como objetivo a transposição (DESTÁCIO,
2002) da linguagem do primeiro para a do segundo como forma de promover
a divulgação da ciência, não segue o mesmo
ordenamento que os anteriores preconizam. O sujeito-jornalista ao produzir
o texto de divulgação científica utiliza marcas lingüísticas
que acabam por mostrar sua opinião acerca do que escreve. A exemplo
de trabalhos como o de Coracini (1991) e Benites (2002) sobre a ilusão
da objetividade no discurso científico e no discurso jornalístico
respectivamente pretendemos aqui analisar o funcionamento dos verbos introdutores
do discurso citado em enunciados do discurso de divulgação
científica para compreender como o sujeito-jornalista se subjetiviza
ao escrever seu texto e que efeitos de sentido são instaurados
neste processo.
Elencamos enunciados recortados da revista SAÚDE! para análise.
Com o auxílio de teóricos como Bakhtin, Maingueneau e Benites,
dentre outros que estudaram acerca do discurso de outrem e do discurso
citado (discurso direto e indireto) empreenderemos a análise.
DISCURSO RELATADO: MUITAS VOZES
Quando tomamos um objeto de estudo como o discurso de
divulgação científica, inevitavelmente percebemos
as diversas vozes que o atravessam, sejam elas institucionais ou não.
O teórico Mikhail Bakhtin (1990) é nossa primeira referência
para traçarmos uma trajetória sobre as questões em
pauta. O autor tornou-se conhecido no ocidente primeiramente como literato,
porém à medida que os estudos sobre sua obra progrediram,
verificou-se que a pertinência de sua teoria extrapolava o âmbito
literário abarcando também outras questões da linguagem.
Assim, quando promoveu uma retomada crítica sobre os estudos filosófico-lingüísticos,
comparando e apontando problemas nas teorias que ora circulavam, realizou
um corte epistemológico que abriu novos olhares sobre a linguagem
humana.
Sua crítica mais contumaz recaiu sobre duas orientações
principais que ele classificou como subjetivismo idealista e objetivismo
abstrato.
A primeira tendência interessa-se pelo ato de fala,
de criação individual, como fundamento da língua
(no sentido de toda atividade de linguagem sem exceção).
O psiquismo individual constitui a fonte da língua. As leis da
criação lingüística – sendo a língua
uma evolução ininterrupta, uma criação contínua
– são as leis da psicologia individual, e são elas
que devem ser estudadas pelo lingüista e pelo filósofo da
linguagem. (BAKHTIN, 1990:72).
A língua, nesta perspectiva e de acordo com as
proposições elencadas pelo autor: a) opõe-se a sistema,
b) é concebida como forma de expressão individual (psicologizante),
c) é análoga à criação artística
e produz o “gosto lingüístico” (decorrente daí
a concepção estética da língua). Esta orientação
realiza uma crítica ao positivismo em Lingüística e
toma a língua como realização individual e estética.
A segunda orientação diz respeito ao estudo do sistema lingüístico
abstrato das formas da língua:
(...) o centro organizador de todos os fatos da língua,
o que faz dela o objeto de uma ciência bem definida, situa-se, ao
contrário, no sistema lingüístico, a saber, o sistema
das formas fonéticas, gramaticais e lexicais da língua.
(BAKHTIN, 1990:77).
Observamos aí que esta orientação
pressupõe a imanência, a língua tomada como sistema,
a exemplo de Saussure, que dividiu a língua e a fala e priorizou
o estudo da primeira e sua sistematização, sem preocupar-se
com o “outro” que efetivamente faz uso tanto de uma, quanto
de outra.
O objetivo de Bakhtin, ao apresentar suas críticas a estas duas
orientações, foi o de construir o conceito de dialogismo,
propondo a compreensão, a evolução e a interação
na enunciação. Mais do que isso, o princípio dialógico
introduz o “outro” na linguagem, fato desconsiderado até
então pelas duas orientações citadas. Daí
em diante outros conceitos foram construídos por ele, como o de
polifonia e o de gêneros discursivos promovendo uma série
de (re)formulações teóricas no processo da comunicação
humana.
Nesta linha ainda em Marxismo e Filosofia da Linguagem, o autor tece considerações
sobre o discurso de outrem (p.144) e inicia suas asserções
sobre o discurso citado caracterizando-o como “o discurso no discurso,
a enunciação na enunciação, mas é,
ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação
sobre a enunciação” (BAKHTIN, 1990:144) e mais: argumenta
que deve haver uma orientação recíproca entre o discurso
citado e o discurso narrativo para que os estudos sobre o discurso de
outrem sejam mais profícuos. Grigoletto (2003: 345-346) completa
dizendo que “a diluição da palavra citada no contexto
narrativo não se efetua completamente, já que a substância
do discurso do outro continua palpável”.
Tais considerações nos levam ao estudo dos esquemas do discurso
direto (DD) e do discurso indireto (DI) que são as formas mais
utilizadas no discurso de divulgação científica.
Nesta direção o teórico russo propõe a concepção
de duas orientações essencialmente opostas que foram por
ele chamadas de estilo linear e estilo pictórico (Bakhtin, 1990:150).
A primeira é construída a partir de uma tendência
fundamental da reação ativa ao discurso de outrem, visando
a conservação da sua integridade e autenticidade. A segunda
orientação procura atenuar os contornos exteriores nítidos
da palavra de outrem. Segundo Grigoletto “se, na primeira tendência,
havia uma preocupação em demarcar nitidamente as fronteiras
da fala do outro, aqui ocorre o contrário, há um enfraquecimento,
muitas vezes até um apagamento, do discurso citado” (2003:
346).
Para melhor entendermos a dinâmica do processo de citação
tanto de forma direta, quanto indireta, ouviremos Benites que afirma que
“(...) ao contrário do discurso indireto, em que predomina
a interpretação, no discurso direto predomina a repetição,
a imitação. Esta é a razão porque o discurso
direto autentica os enunciados reportados”. (2002:59)
A utilização desta forma de citação orienta
para a fidelidade do discurso do “outro”, ou seja, é
uma forma de atribuir ao locutor citado total responsabilidade pelo que
está escrito. Porém, Benites alerta para o fato de que,
mesmo parecendo objetivo e fiel, o deslocamento contextual pode alterar
o sentido da transcrição mais exata.
Bakhtin ao explicar questões acerca do discurso direto preparado
diz que:
Não nos ocuparemos aqui dos procedimentos mais
primitivos de que dispõe o autor para replicar ao discurso direto
e comentá-lo: a utilização do itálico (que
equivale a um deslocamento de acento), a inserção aqui e
ali de observações e conclusões entre parênteses,
ou mesmo simplesmente o ponto de exclamação, de interrogação,
sic, etc. Para atenuar a inércia do discurso direto, outro procedimento
muito eficaz consiste nas várias possibilidades de colocação
do verbo introdutor, associado por vezes a observações,
réplicas e comentários. (1990:166). (grifo nosso)
Estas considerações são muito relevantes
para nosso intento, uma vez que o DD enquanto mecanismo de citação
que pretende demonstrar objetividade e fidelidade do discurso de outrem
funciona, muitas vezes, de um modo diferente do previsto indiciando a
subjetividade do locutor citante. Adiante veremos na análise alguns
exemplos típicos desta ocorrência.
Para Benites (2002:59) o discurso indireto “não mantém
estável, em sua globalidade, o conteúdo do discurso citado;
ele é uma interpretação de um discurso anterior,
e não a sua reprodução. Por reconstruir não
uma seqüência de palavras, mas o conteúdo proposicional
do enunciado-fonte, o discurso indireto resulta na imbricação
das palavras do sujeito que cita com as do sujeito citado”.
Maingueneau reitera dizendo que:
Com o discurso indireto, o enunciador citante tem uma
infinidade de maneiras para traduzir as falas citadas, pois não
são as palavras exatas que são relatadas, mas sim o conteúdo
do pensamento (...) a escolha do verbo introdutor é bastante significativa,
pois condiciona a interpretação, dando um certo direcionamento
ao discurso citado(...) (2002:149).
Para Bakhtin o DI se divide em duas variantes que servem
para balizar algumas diferenças dentro dele mesmo. A primeira é
a variante de discurso indireto analisador de conteúdo e a segunda,
de discurso indireto analisador de expressão.
A primeira se presta a tematizar o discurso de outrem colocando uma distância
entre o sujeito que cita e o sujeito citado apoiando-se no estilo linear
que apresenta um grau mais elevado de racionalidade e objetividade e tem
como objetivo “marcar os limites do discurso citado” (BENITES,
2002:58).
A segunda variante é a que apresenta as formas do dizer e que denota
um maior grau de subjetividade no discurso, no dizer de Bakhtin “sua
coloração se destaca mais claramente” (1995:163),
esta variante se relaciona mais com o estilo pictórico apagando
as fronteiras do discurso citado.
Podemos resumir as considerações de Bakhtin acerca do Discurso
Indireto no seguinte esquema:
Discurso
Indireto |
analisador
de conteúdo (plano temático/estilo linear/racional) |
analisador da expressão (maneiras de dizer/estilo
pictórico/subjetivo) |
Para concluir
não devemos esquecer suas recomendações acerca do
DI: “o discurso indireto ouve de forma diferente o discurso de outrem;
ele integra ativamente e concretiza na sua transmissão outros elementos
e matizes que os outros esquemas deixam de lado (...). A análise
é a alma do discurso indireto.”(1995:159).
Encontramos nessas reflexões uma importante aliança para
a análise dos enunciados que faremos adiante, pois em conjunto
com os verbos delocutivos, a observação do estilo linear
e do estilo pictórico e as duas variantes do discurso indireto
podem nos conduzir à percepção da instauração
da subjetividade dentro do discurso de divulgação científica.
VERBOS INTRODUTORES
DO DISCURSO RELATADO
Maingueneau,
em Novas Tendências em Análise do Discurso, ao abordar a
importância dos verbos introdutores do discurso relatado (tanto
em DD quanto em DI) sob a perspectiva microcontextual, isto é,
mostrando como as citações inscrevem-se no detalhe da estrutura
lingüística, diríamos no intradiscurso, diz que “de
fato, em função do verbo escolhido (sugerir, afirmar, pretender...)
toda a interpretação da citação será
afetada”. (1993: 87).
Para exemplificar o fenômeno, lança mão do estudo
de Charolles (apud MAINGUENEAU, 1993:88) que chama os verbos introdutores
de DI de verbos de comunicação e mostra que, excetuando
dizer, aparentemente neutro, os demais veiculam diversos tipos de pressupostos.
Utiliza também os estudos de Ducrot (apud MAINGUENEAU, 1993: 88)
que categoriza os verbos de “opinião” classificando-os
com o auxílio de critérios semânticos associados aos
valores +/- como o resumo a seguir:
CRITÉRIOS
SEMÂNTICOS:
P: julgamento
pessoal fundado na experiência;
M: implica uma experiência da própria coisa;
O: implica predicação original;
C: o L mostra-se seguro quanto à opinião expressa;
R: o L apresenta sua opinião como o produto de uma reflexão.
|
P |
M |
O |
C |
R |
Considerèr
(considerar) |
+ |
+ |
+ |
+ |
+ |
Trouver
(achar, imaginar). |
+ |
+ |
+ |
- |
- |
Estimer
(estimar, julgar, reputar). |
+ |
+ |
- |
+ |
+ |
Juger (julgar,
decidir). |
+ |
- |
- |
+ |
+ |
Avoir l’impression
(ter a impressão) |
+ |
- |
- |
- |
- |
Être sûr
(estar seguro) |
- |
- |
- |
+ |
- |
Penser
(pensar) |
- |
- |
- |
- |
+ |
Croire
(acreditar) |
- |
- |
- |
- |
- |
Já
Benites (2002:112) realiza um percurso por várias teorias que abordam
o aparecimento de verbos que fazem referência à atividade
delocutiva focalizada no discurso relatado. Cita também Charolles
(1988) e outros estudiosos como Hohenberg (1962), Leão (1973) e
Thompson e Yiyun (1991) que contribuíram significativamente para
o entendimento das ocorrências verbais no discurso citado. Com apoio
na leitura que Benites (2002) realizou dos referidos autores pudemos compreender
que os verbos dizer e afirmar são considerados mais neutros do
que os outros. Há os verbos comumente chamados sentiendi (de sentir)
como gemer, suspirar, lamentar-se, explodir ou berrar. Sussurrar, murmurar,
segredar, cochichar caracterizam-se como formas de enunciação.
Pedir, suplicar e solicitar são conativos, visam conseguir que
o alocutário haja segundo o interesse do locutor. Explicar é
um verbo essencialmente metalingüístico, pois chama a atenção
para a própria língua.
Thompson e Yiyun (apud Benites 2002:113) dizem que os verbos delocutivos
apresentam aspectos relacionados à denotação e ao
potencial avaliativo. No primeiro a expressão verbal é componente
obrigatório, são exemplos os verbos: escrever, apontar,
nomear considerados textuais. Acreditar, pensar, focalizar, preferir que
são verbos que denotam atividade, processo mental; medir, calcular,
quantificar, obter, achar são muito utilizados quando o locutor
citado descreve o processo físico ou mental na pesquisa.
No âmbito do potencial avaliativo os autores consideram três
instâncias separadamente: a do autor, a do escritor e a da interpretação
do escritor. “A instância do autor compreende a atitude do
autor (locutor citado) diante da validade da informação
ou opinião reportada”. Desta forma, os verbos aceitar, enfatizar,
invocar, notar, apontar, subscrever revelam a atitude positiva do locutor
citado, ao contrário temos atacar, rejeitar, questionar, divergir,
objetar, opor que revelam a atitude negativa do locutor citado. Examinar,
avaliar, focalizar, citar, ocupar-se com denotam atitude neutra deste
locutor.
Já na instância do escritor (locutor citante) os verbos conhecer,
trazer à luz, demonstrar, identificar, provar, reconhecer mostram
que o autor retrata o locutor citado como verdadeiro e correto. Ignorar,
confundir, desconsiderar, trair, abusar retratam o autor como apresentando
uma falsa informação ou opinião incorreta a respeito
do enunciado. Avançar, acreditar, clamar, examinar, generalizar,
propor, reter, utilizar funcionam como forma do locutor citante não
dar sinal claro de sua atitude diante da informação.
Passamos à análise dos enunciados para tentarmos compreender
como o sujeito-jornalista deixa suas marcas no DDC. Anteriormente pesquisamos
a metáfora como forma de subjetivização do jornalista
no DDC e compreendemos que a utilização dela neste tipo
de discurso é totalmente diferente da ocorrência no discurso
literário. Compreendemos também que a metáfora instaura
um efeito de sentido que varia a intensidade sobre a opinião do
jornalista acerca do que escreve. Finalmente observamos que a construção
metafórica no DDC não promove um esvaziamento do DC, ou
uma facilitação excessiva da linguagem como era uma de nossas
hipóteses, mas sim evoca na mente do leitor imagens e informações
que ficam armazenadas no interdiscurso promovendo uma ressignificação
dos sentidos do DC no DDC e, portanto, um melhor entendimento das informações
científicas.
Vamos à análise.
OS CAMINHOS DA ANÁLISE
A revista
SAÚDE! há vinte e um anos em circulação foi
a pioneira na abordagem de assuntos próprios do discurso científico
como nutrição, prevenção de doenças,
hábitos saudáveis, tratamentos médicos de ponta,
etc. Suas reportagens e seções são redigidas de maneira
econômica no que diz respeito a linguagem utilizando muitas construções
metafóricas e apelos ao leitor. Sua divisão é temática,
por exemplo: nutrição, medicina, família, bichos,
corpo, bem-estar, etc., e há várias seções
que são recorrentes em suas edições: A palavra-chave
é..., Sempre quis saber, Gôndola, Nesta edição,
Que fim levou. A revista conta ainda com um grande número de fotografias,
infográficos, tabelas e esquemas que funcionam como informação
visual para uma melhor compreensão das reportagens, contudo não
nos deteremos na análise das imagens e esquemas, somente nos textos
das reportagens.
Observamos na construção dos textos que, quando eles utilizam
o DD ou o DI, há um diferencial. As citações em DD
são muito mais numerosas do que as em DI, nelas as construções
se dão regularmente na seguinte seqüência: introdução
sobre o assunto, fala do locutor citado entre aspas e logo após
verbo finalizador da fala; este locutor citado, geralmente é uma
pessoa física, empírica. Nas citações em DI
não há uma seqüência regular, como as ocorrências
são menos numerosas elas aparecem aleatoriamente. Percebemos também
que o DI é utilizado pelo jornalista sempre que o locutor citado
é uma instituição ou um grupo de pesquisadores, resumindo,
um sujeito genérico.
Observemos os exemplos a seguir retirados da reportagem de capa da revista
SAÚDE! do mês de dezembro de 2004 intitulada Mente Magra,
Corpo Magro que fala sobre uma nova fórmula de emagrecimento, chamada
de mobilização do Qi mental, baseada na técnica oriental
que consiste em direcionar a energia mental para emagrecer e que afirma
que é possível perder até três quilos por semana
sem tomar remédio. Na primeira parte da reportagem a jornalista
provoca o leitor a se imaginar magro e diz que se ele consegue se ver
bonito na praia sem as “banhas laterais” e a barriga protuberante,
este já é um grande passo, se não já é
hora de por a imaginação para funcionar. Entra então
a primeira seqüência em que, na forma de discurso indireto
ouvimos a primeira voz diferente da da jornalista:
S1 –
Especialistas do setor de Medicina Chinesa e Acupuntura da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp) descobriram que fantasiar uma silhueta
esbelta ajuda pra valer no processo de emagrecimento.
SAÚDE!. Mente Magra, Corpo Magro. São Paulo: Editora Abril,
dezembro de 2004, p. 26-31.
A fala dos
especialistas (percebamos a generalização, pois não
é um especialista nominado que fala, mas especialistas) comprova
a fala da jornalista sobre o exercício da imaginação
e da fantasia para a obtenção de um corpo perfeito, mesmo
que este perfeito seja para os padrões capitalistas vigentes na
sociedade. Além do mais, a utilização do verbo descobrir
que também pode significar achar, desvelar refere-se ao processo
de pesquisa pelo qual os especialistas transitaram para chegarem à
descoberta. Percebe-se nesta construção que a utilização
do verbo descobrir indica seriedade por parte dos estudiosos que somente
depois de todo um processo científico construíram uma idéia
que não existia antes. Na análise realizada em DI a jornalista
demonstra uma atitude positiva diante desta descoberta e a ratifica, pois
descobrir, via pesquisa algo que estava supostamente desconhecido é
um feito útil à humanidade.
Na segunda seqüência há a explicação sobre
a técnica utilizada cujo novo nome é Qi mental, pois ela
foi adaptada de uma técnica milenar oriental chamada tao yin. Para
comprovar a explicação sobre a técnica a jornalista
utiliza em DD a fala de um acupunturista:
S2 –
“É um treinamento mental para regular a energia do seu corpo”,
define o médico acupunturista Ysao Yamamura.
SAÚDE!. Mente Magra, Corpo Magro. São Paulo: Editora Abril,
dezembro de 2004, p. 26-31.
Nesta seqüência
podemos perceber que a necessidade de objetividade preconizada pela ciência
é muito forte, por isso o médico utiliza a expressão
treinamento mental. Se formos avaliar o status que as técnicas
orientais possuem em relação à medicina tradicional
ocidental veremos que elas não são vistas com muita confiança,
há muitas lacunas científicas que ainda não foram
preenchidas. Assim, quando a jornalista utiliza o verbo definir para reportar
a fala do acupunturista, notamos uma maneira de isentar-se da responsabilidade
do que está sendo dito. Primeiro porque ela citou em DD, embora
tenha escolhido exatamente a fala que lhe interessava para isentar-se,
segundo porque este verbo serve para enunciar as propriedades específicas
de alguma coisa, neste caso da adaptação da técnica
oriental. Ela simulou um efeito de objetividade próprio da ciência.
Em S3, após a explicação sobre o Qi mental a jornalista
faz uma comparação com a medicina ocidental e explica que
reorganizar as energias significa identificar e resolver as emoções
envolvidas no surgimento do problema. Não existe milagre, pois
o controle alimentar está por trás da dieta. Mais uma vez
lança mão da fala em DD para corroborar suas afirmações:
S3 –
“A mente domina todo nosso organismo, por isso nela está
o ponto de origem dos distúrbios físicos”, afirma
João Yokoda, médico homeopata e especialista em Medicina
tradicional chinesa, que coordena o grupo de obesos da Unifesp. “Por
meio desse método identificamos as emoções que levam
a comer além da conta e modificamos os seus registros”, explica.
Aí é que entra a energia da mente.
SAÚDE!. Mente Magra, Corpo Magro. São Paulo: Editora Abril,
dezembro de 2004, p. 26-31.
Temos nesta
seqüência dois verbos utilizados pela jornalista para arrematar
a fala do médico homeopata: afirmar e explicar. O primeiro indica
que o locutor citado declara com firmeza seu enunciado não deixando
dúvidas quanto a sua verdade. O locutor citante ao escolher este
verbo destaca a firmeza da declaração do médico e
tenta mostrar ao leitor que a técnica da qual se fala é
digna de confiança.
Na ocorrência do verbo explicar notamos, além de uma remissão
à prática de pesquisa (que necessariamente explica todos
os pormenores) ou a sua função metalingüística
(chamando a atenção para a própria língua),
um tom professoral. A jornalista utiliza este verbo para imprimir ao enunciado
um maior grau de credibilidade, pois um assunto novo quando é detalhadamente
explicado angaria maior crédito do que um que só é
relatado por cima. Percebemos então que, todo o tempo, o objetivo
do locutor citante, que representa a revista, é conseguir a adesão
do leitor às suas proposições (o leitor tem que ler
o que gosta e acredita e a revista tem que vender).
Há um enunciado ao lado de uma fotografia de uma mulher em pose
de meditação que resume a primeira parte da reportagem trazendo
sugestões metafóricas que podem ser criadas pela imaginação
num tom um pouco mais apelativo. Vejamos uma seqüência em DI
que faz parte deste enunciado.
S4 –
Você precisa imaginar a sua silhueta sendo modelada. Vale visualizar
sua gordura se derretendo como uma margarina e escoando para fora do seu
corpo. Os orientais garantem que fixar uma imagem como essa acelera o
emagrecimento. Em tese, a mente poderia influenciar a queima de gordura,
mas para a ciência ocidental há controvérsia, já
que isso não está provado.
SAÚDE!. Mente Magra, Corpo Magro. São Paulo: Editora Abril,
dezembro de 2004, p. 26-31.
Em S4, além
do tom apelativo, a utilização do verbo garantir em DI precedido
pelo sujeito os orientais remete a uma peculiaridade, embora o artigo
definido os determine o substantivo orientais, se nos ativermos à
gramática normativa, num nível textual perceberemos que
os orientais é usado genericamente. Desta forma, a garantia evocada
pelo verbo se restringe a uma generalização sem nome, que
não pressupõe autoridade, nem assunção explícita
da palavra. O locutor citante ao usar garantir pretende isentar-se da
responsabilidade que a autoria do texto lhe confere e tenta transferi-la
aos orientais, entretanto nesse ato ele comete o deslize de apresentar
um verbo que ratifica uma verdade que é posta em dúvida
pelo todo da reportagem.
A reportagem continua apresentando a voz de vários outros médicos
sempre em DD com introdutores ou finalizadores verbais bastantes significativos,
porém achamos que os elencados acima já nos bastam para
o fim pretendido. A partir daí encontramos várias opiniões
de médicos e estudiosos adeptos da medicina tradicional que afirmam
não existir comprovação científica, ainda,
para a técnica do Qi mental. Não encontramos mais citações
em DI e isto é um ponto muito importante e sintomático para
nossa análise conforme veremos a seguir.
FINALIZANDO
Retomando
questões propostas em outros trabalhos juntamente com as discutidas
aqui podemos afirmar que os enunciados em análise, mesmo observando
as orientações quanto a construção de objetividade
e neutralidade nos textos científicos e jornalísticos instauram
sentidos que indicam vestígios de envolvimento do locutor citante
e mesmo do locutor citado no momento da enunciação. Estes
sentidos mostram que o locutor não consegue manter sua isenção,
objetividade e neutralidade, há deslizes que se materializam na
palavra (no sentido de Bakhtin).
Sobre o discurso citado em modo direto e indireto no DDC um fato muito
peculiar nos chamou atenção: o locutor citante ao reportar
a fala em DI sempre utiliza um sujeito genérico (Especialistas
do setor de Medicina Chinesa e Acupuntura da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp), os orientais) e para citar em DD materializa um sujeito
empírico com sua designação profissional ou teórico-científica
(o médico acupunturista Ysao Yamamura, João Yokoda médico
homeopata e especialista em Medicina tradicional chinesa, etc. Existem
outros não recortados para análise, porém com a mesma
incidência).
Isto nos leva a supor que por ser o DD uma citação de autoridade
(MAINGUENEAU, 1993) o locutor citante se isenta mais confortavelmente
das asserções, das polêmicas, pois desloca o peso
do que está escrito para longe de si, talvez por isso o maior número
de citações em DD. Constrói então um efeito
de sentido de objetividade, pois foi o outro quem falou e este outro existe
materialmente, ele é de carne e osso, a responsabilidade é
dele. Contudo o direcionamento dado pelo verbo introdutor (MAINGUENEAU,
2002:149) ou finalizador da citação indica a direção
da interpretação do enunciado que por si só já
instaura um efeito de subjetividade.
Sendo o DDC considerado de acordo com Destácio (2002) uma transposição
da linguagem do DC para a do DJ, ele é produzido tanto com o DD
quanto com o DI e é extremamente heterogêneo. A utilização
do primeiro (DD), conforme já vimos, se deve às normas estabelecidas
para a demonstração de isenção, fidelidade
e objetividade, próprias do DC e do DJ, pois se distanciar através
da fala do “outro” ratifica estas orientações.
O uso do DI se deve à necessidade da transposição
de uma linguagem elaborada, fechada e técnica para uma linguagem
um pouco mais simples e acessível à maioria da população
promovendo uma facilitação dos termos científicos
oriundos do DC. Por conseguinte, ao realizar, mesmo que seja a citação
direta ou a indireta, o jornalista vaza e apresenta avaliações,
apreciações sobre os acontecimentos. Isto é percebido
nas marcas lingüísticas, como os verbos aqui em análise,
ou na utilização de um adjetivo, uma metáfora, uma
designação. Além do mais, se um locutor “contenta-se
em relatar as alocuções assertivas de um terceiro, em lugar
de garantir pessoalmente através de uma simples afirmação”
a verdade da asserção, é porque ele não acredita
muito nessa verdade, vendo-se, portanto, impedido de, por si só,
subscrevê-la. (BERRENDONNER apud BENITES, 2002:57).
Contatando Bakhtin, podemos compreender que o DD nestas análises
constrói um efeito de sentido que, a priori, enquadrar-se-ia no
estilo linear por buscar a conservação da autoridade e integridade
do texto original (BENITES, 2002:58), porém percebemos uma mescla
do estilo pictórico pelo direcionamento subjetivo efetuado pelo
verbo introdutor. No DI que seria analisador de conteúdo por transpor
um conteúdo científico e, portanto, racional e lógico
percebemos inserções da tendência analisadora de expressão
na escolha do verbo introdutor como o uso do verbo garantir em S4.
Se recordarmos a crítica que Bakhtin promove acerca do subjetivismo
idealista e do objetivismo abstrato, concordaremos com ele, principalmente
em relação ao objetivismo abstrato que tentou banir as manifestações
do sujeito e por conseguinte do “outro” da linguagem. Não
há objetividade e sistematização absolutas, o objeto
não sobrevive por si só, a heterogeneidade é constitutiva
da linguagem e diria mais, da ciência.
Por ser um discurso de transposição ou tradução
que realiza a análise e sintetiza o conteúdo relatado, o
DI funciona no sentido de diminuir o “fosso” que há
entre a população dita comum, e o saber, principalmente
o institucionalizado. Contudo, às vezes, a construção
do texto é feita às pressas pela situação
de redação própria do campo jornalístico e
o processo análise-síntese resultante pode conter equívoco.
Faz-se necessário, portanto, uma formação mais específica
e eficaz para o jornalista que trabalha na área científica,
para que o discurso da ciência e mesmo seu processo de investigação
não corram o risco de serem banalizados ao chegarem ao leitor ou
sufocados pelo espetáculo capitalista da mídia.
Entendemos que a divulgação científica deve ser implementada
não só através da mídia, mas de outros mecanismos
como a escola, a igreja e as associações e conselhos populares.
Também somos favoráveis que os próprios cientistas
escrevam com mais simplicidade promovendo um acesso mais completo e sem
interferência sobre os assuntos da ciência.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN,
M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995.
BENITES, S. A. L. Contando e fazendo a história: a citação
no discurso jornalístico. São Paulo: Arte & Ciência;
Assis: Núcleo Editorial Proleitura, 2002.
CORACINI, M. J. R. Um Fazer Persuasivo: o discurso subjetivo da ciência.
São Paulo: Educ; Campinas,SP: Pontes, 1991.
DESTÁCIO, M. C. Leitura e Escritura de Divulgação
Científica. Revista Eletrônica Espiral, ano 3, n.º 10,
jan-fev-mar de 2002.
GRIGOLETTO, E. Da homogeneidade à heterogeneidade discursiva: reflexões
sobre o funcionamento do discurso outro. International Bakhtin Conference
(11.:2003:Curitiba, PR, Brazil). Proceedings of the Eleventh International
Bakhtin Conference = XI Conferência Internacional sobre Bakhtin,
Curitiba, July 21-25, 2003; edited by Carlos Alberto Faraco, Gilberto
de Castro, Luiz Ernesto Merkle; organization Universidade Federal do Paraná.
Curitiba: [s.n.], 2004. xiv, 806p. Em CD-ROM.
MAINGUENEAU, D. Análise de Textos de Comunicação.
São Paulo: Cortez, 2002.
__________________ Novas Tendências em Análise do Discurso.
Campinas, SP: Pontes; Editora da Unicamp, 2.ª edição,
1993.
SAÚDE. Mente Magra, Corpo Magro. São Paulo: Editora Abril,
dezembro de 2004, p. 26-31. |
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