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“MÁ” EDUCAÇÃO E O CORPO QUEER EM CAIO
FERNANDO ABREU
Antonio
Eduardo de Oliveira (UFRN)
A leitura do romance
de Caio Fernando Abreu Onde Andará Dulce Veiga: um romance B (1991)
e do filme de Pedro Almodóvar Má Educação
revela que estas duas obras desobedecem ás normas de “boa”
educação, ou seja, não se condicionam aos modelos
convencionais da ficção e do cinema noir. Além disso,se
enfocarmos o livro e o filme comparativamente percebemos que eles apontam
para imagens produtoras de uma nova cultura indentitária a qual
vamos abordar por meio da queer theory. Teoria esta que aborda a ineficácia
das definições convencionais de sexo, gênero e desejo,
não existindo, no entanto “nenhum consenso crítico
quanto aos limites da definição do queer” (Jagose
1996, 31).
Para nos situarmos melhor em relação ao romance e ao filme
citados vamos relacionar de forma sucinta o plot deles. Em Onde Andará
Dulce Veiga? o enredo é direcionado para a busca do paradeiro da
cantora Dulce Veiga que desaparecera no auge de sua fama. O desenvolvimento
da trama desse romance culmina ao mostrar o encontro do narrador protagonista
consigo mesmo. Por sua vez a Má Educação é
um filme que celebra o cinema em si, presta homeagem ao ícone gay,
a cantora e atriz espanhola Sarita Montiel e a narativa se “desenrola
sobre abuso sexual na infância e mostra um padre pecador transformado
em vítima”.
Uma leitura apropriada destas obras requer um leitor que não se
limite apenas ao reconhecimento dos padrões tradicionais de formas
narrativas e de construções de temáticas fixas .
Assim a ambiência noir apresentada, tanto no romance de Abreu quanto
no filme de Almodóvar é atualizada pelo uso do colorido
ao passo que encontramos tanto a presença de um cenário
urbano como também uma ambiência tropical no caso do romance
de Abreu. O leitor também entra em contato com o uso freqüente
da ironia mordaz do narrador, proporcionando desse modo, a desconstrução
do tom sisudo das narrativas noir. È, no entanto a substituição
arquétipa da loura fatal pela imagem do travesti o elemento de
conotação mais queer, no filme “Má educação”
representado pelo travesti Zahara, que imita a cantora Sarita Montiel
e no romance pela figura de Saul, drogado e travestido de Dulce Veiga.
como Dulce Veiga, Saul torna-se um corpo queer associado à afetividade,
uma vez que seu gesto performático é inspirado pela saudade
sentida pela ausência de Dulce Veiga, fato este que leva o narrador
a expressar um sentimento de compaixão por Saul:
Em frente aquele morto-vivo travestido de outra morta-viva, como atores,
como atores que não tivessem decorado o texto nem as marcas de
m filme ou peça, talvez livro de qualidade duvidosa (Abreu, 1991,
155).
Caio também
fez o seu narrador em Onde Andará Dulce Veiga? expressar simpatia
por Jacyr, o outro corpo queer do romance. Observamos que a política
identitária dos personagens do romance está fundamentada
no afeto. Assim o conflito identitário do personagem principal,
retratado em crise só assume sua homossexualidade ao defrontar-se
com a lembrança de Pedro, o único homem que amara. Este
lhe trouxera luz para a vida solitária e conflitada do personagem.Largado
na urbe. Quando Pedro parte o narrador se vê como um corpo abandonado
ao léu na ambiência urbana. Ele nos revela o seu desamparo
ao refletir que: Desde esse dia, perdi meu nome. Perdi o jeito de ser
que tivera antes de Pedro não encontrei outro. Eu queria que voltasse,
não conseguia viver outra vez uma vida assim sem Pedro. Nos meses
seguintes, não havia nenhum sinal dele pelas ruas, os hospitais,
paradas de ônibus, estações de metrô, uma por
uma, tarde da noite, amanhecendo nas padarias (Abreu, 1991, 116).
E o narrador volta a viver como um corpo imerso na solidão pois
sem a volta de Pedro: as luzes da casa nunca mais tornaram a acender com
sua chegada (Abreu, 1991, 116). Imerso na sua própria homofobia
internalizada o narrador rejeita a imagem e o beijo de Saul quando o encontra
travestido de Dulce Veiga. Repleto de citações cinematográficas
e musicais, o romance Onde Estará Dulce Veiga? se apresenta como
um texto fílmico mostrando vários fragmentos de filmes dentro
de filmes para expressar os afetos do narrador. Sua vida só parece
ganhar significado quando associado às suas fantasias cinematográficas
como percebemos no fragmento de número trinta do romance. Enquanto
janta num restaurante popular, o personagem transforma pela imaginação
pessoas comuns que o cercam num ‘corpo cinematográfico diversificado’.
Enquanto degusta o filé ao molho madeira visualiza na sua mente
cinematográfica a loira com o perfil de Grace Kelly.. Neste devaneio
pop outras estrelas e astros do cinema também são evocados:
Daryl Hanna, Mel Gibson e Alan Ladd,Humphrey Bogart e até mesmo
projeta a fantasia que evoca um encontro imaginário de Jean Paul
Belmondo com a musa de Almodóvar: Belmondo Carmen Maura de mãos
dadas.( Abreu 1991, 109).
Estas epifanias cinematográficas do romance de Caio transformam
a página do texto escrito numa metafórica sala de cinema
onde é projetada a imaginação cinematográfica
do narrador.Um processo análogo ocorre no texto cinematográfico
de Almodóvar que homenageia o cinema utilizando o recurso do filme
dentro do filme e que também homenageia uma diva da cultura pop
espanhola, a atriz e cantora Sara Montiel. Em duas, entre outras, belas
seqüências do corpo do texto fílmico vemos Ignácio
e Enrique dentro do cinema Olympo ainda na infância descobrindo
a paixão pela sétima arte. Na tela é projetada uma
seqüência de um filme com Sarita Montrel. Esta cena funciona
como um tipo de jogo de espelhos, pois remete o espectador a uma cena
anterior que nos fala da força do cinema na vida das pessoas.Noutra
sequência vemos os travestis Zahara e Paquito conversando sobre
o passado tendo como cenário de fundo o prédio antigo e
em estado de deterioração do cinema antigo.
Almodóvar e Abreu propõem pela linguagem do cinema e da
literatura uma educação de expectador de cinema e de leitores
de livros, fundamentada pelo respeito pela diferença. Isto é
mostrado através de personagens queer cuja representação
não está restrita apenas ao desejo mas também pela
legitimação e outros elementos constituintes do ser humano,
tais como a sensibilidade e a afetividade propulsoras da vida de Zahara
em Má educação e de Saul em Onde andará Dulce
Veiga.
REFERÊNCIAS
ABREU,Caio.
Onde andará Dulce Veiga? São Paulo: Companhia das Letras,1997.
ALMODÓVAR,Pedro. Má educação. Espanha.2004.
CULLER,Jonathan. Literary Theory. Oxford:Oxford University Press.2000.
DUNCAN,Paul.Film Noir: films of trust and betrayal. Great Britain: Pocket
Essentials.2000.
DUNCAN, Paul. Film Noir: dark highways. Great Britain: Pocket Essentials.2000.
KAPLAN,Ann E. (Editor). Women in film noir. London: BFI Publishing.1990. |
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