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LEITURA E A PRODUÇÃO DE POEMAS NA APRENDIZAGEM DA MATEMÁTICA
Frederico
Reis Marques de Brito A literatura e as artes deveriam ter mais destaque no ensino. Elas poderiam constituir em eixos transdisciplinares. Morin Às folhas tantas de um livro de Matemática ( ... ) Assim começa um célebre poema do não menos célebre Millôr Fernandes. E o que poderia ser apenas uma brincadeira ou no máximo uma incursão poética desinteressada ou mais um dos fantásticos diálogos da literatura com o mundo real, revela-se do ponto de vista didático-pedagógico, um fenômeno bem mais profundo e inobservado. Na opinião de um dos grandes matemáticos da era moderna, “um matemático que não tenha algo de poeta nunca será um matemático completo” . Essa frase, embora imbuída de certo sentimentalismo, retrata bem uma faceta comum, mas pouco difundida, da matemática, ou mais precisamente dos matemáticos: a obsessão pela harmonia e pela estética: “Os desenhos do matemático, como os do pintor ou do poeta, devem ser belos; as idéias, como as cores ou as palavras, precisam entreligar-se de maneira harmoniosa. A beleza é a primeira prova: não há lugar permanente neste mundo para uma matemática feia” . Num certo sentido, a Matemática se aproxima da arte exatamente por esse apelo estético e, talvez, ainda por ele, a arte muitas vezes desfrute da Matemática em suas realizações, ainda que em grande parte delas, de forma inconsciente. Ninguém menos que Fernando Pessoa, em torno de 1925, quando o mundo foi abalado pelas idéias relativísticas de Einstein, em muito baseadas na geometria criada por Gauss, escreveu: Um poeta que saiba o que são as coordenadas de Gauss tem mais possibilidades de escrever um bom soneto de amor do que um poeta que não o saiba. Nem há nisto mais que um paradoxo aparente. Um poeta que se deu ao trabalho de se interessar por uma abstração matemática tem em si o instinto da curiosidade intelectual, e quem tem em si o instinto da curiosidade intelectual colheu por certo, no decurso da sua experiência de vida, pormenores do amor e do sentimento superiores aos que poderia ter colhido quem não é capaz de se interessar senão pelo curso normal da vida que o afeta – a manjedoura do ofício é a arreata da submissão. Um é mais vivo que o outro pelo menos como poeta: daí a relação sutil entre as coordenadas de Gauss e a Amaryllis do momento. Um é um homem que é poeta, o outro um animal que faz versos . Também a música popular brasileira é pródiga em exemplos de interações lúdicas entre Matemática e Poesia, haja visto Aula de Matemática, de Tom Jobim e Mariano Pinto ou ainda, Noves fora, de Fagner e Belchior. Historicamente, Poesia e matemática parecem já flertar desde o século V d. C, quando da publicação da Antologia Grega ou Palatine. Tal documento é uma coleção de problemas, dos quais quarenta e seis são problemas algébricos gregos de resolução aritmética simples, enunciados em epigramas. Como um exemplo significativo, citamos um dos problemas da Antologia: “Bem-aventurado Pitágoras, Ó filho das musas de Hélicon, Diz-me: oh desporto da ciência, Quantos, na tua casa, de boa vontade se lhe entregam? Eu te direi
Polícrates: Um quarto aplica-se no estudo da natureza imortal; Um sétimo no desígnio do silêncio total E do discurso eterno dos seus corações; Mais três mulheres, cuja melhor é Teano. Esse é o número de intérpretes das musas que reuni à minha volta. Mais tarde, em 1906, o inglês A. C. Orr, publicou no Liberary Digest os seguintes versos: “Now I, even I, would celebrate In rhymes unapt, the great Immortal Syracusan, rivaled nevermore, Who in his wondrous lore, Passed on before, Left men guindance, How to circles mensurate.” Ainda que implícita, encontra-se nesses versos uma relação com a Matemática, posto que ao contarmos o número de letras de cada uma das palavras do poema encontraremos os trinta primeiros dígitos, em ordem, do número irracional p ( p = 3, 1415926... ). Trata-se, portanto, de um interessante recurso mnemônico da expansão decimal desse, que seguramente, é um dos mais importantes números da Matemática. Exemplos e citações não faltam para apontar uma natural aproximação entre a Matemática e a Poesia e esses nos motivam a pensar no uso da Poesia como recurso didático no ensino da Matemática. Nesse sentido, propusemos aos alunos das quintas e sétimas séries da Escola de Aplicação da FEMM a leitura de alguns poemas sobre Matemática e a produção de outros novos. Essa proposta foi feita baseada em uma série de pressupostos anteriormente arquitetados a partir do pensamento de vários filósofos da educação. Primeiro, partimos dos princípios dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais). Enfatizamos que a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade deveriam ser a nossa meta principal, visto que tais práticas seriam mais produtivas na formação de um sujeito pensante no coletivo que é seu habitat natural. A matemática é uma linguagem e restringi-la ao isolamento resulta ser equivalente a ter domínio de um idioma e nada ter a dizer. Aprender os conteúdos de forma isolada acarreta o pensamento também isolado e, na vida real, as interações humanas não se processam dessa mesma forma. O peso do pão se associa ao tamanho, ao preço, à quantidade de membros na família, à quantidade de dinheiro disponível para a compra entre outros fatores. Segundo os supracitados PCNs, o domínio da linguagem é um objetivo a ser alcançado de 5ª a 8ª série. Em nosso entender, o texto é o resultado de um conjunto de interlocuções do aluno com outros textos e se o aluno é capaz de apresentar suas idéias sob a forma textual sistematizada, um passo importante foi dado para a aquisição da aprendizagem consciente e reflexiva. Considerando que formar bons leitores é potencializar a formação de bons autores, o fornecimento de poemas sobre a matemática, tornou possível aos alunos a autoria de uma coletânea de textos poéticos. É possível perceber na produção do livro de Poesias que os textos dos alunos de sétima série apresentam informações e formulações de idéias e conceitos matemáticos mais profundos, complexos e elaborados dos que os da quinta série, em que predominam a exploração de palavras montadas com números, clichês, folclore da matemática, brincadeiras numéricas e as quatro operações elementares. Ainda pelos PCNs, a Língua Portuguesa, integrada como códigos de linguagem seria a disciplina mais propícia a possibilitar a inter e a transdisciplinaridade, uma vez que todo conhecimento é processado por meio de alguma sistematização por código. Tratada como Códigos, Linguagens e suas Tecnologias a Língua Portuguesa intercambia a aprendizagem da matemática. Também a matemática deveria ser, em princípio, acessível na resolução dos vários entraves que o homem enfrenta, por ser imprescindível, na medida em que ela faz parte da vida de todas as pessoas. Esse saber é extremamente importante para o jovem no estudo de outras áreas do conhecimento como as Ciências naturais e informática e é a porta para a formação de um raciocínio equilibrado, lógico e racional, como nos revela o poema do aluno Gustavo Henrique, da sétima série A Ciência Matemática Que trabalha com cálculos E exige paciência Em suas resoluções Essa ciência é exata E resolve equações Resolve somas E também subtrações Essa ciência é capaz De uma cidade construir Com ela a gente faz Um prédio subir Essa ciência resolve problemas De uma forma prática Ela exige atenção Ela é a MATEMÁTICA. POESIA MATEMÁTICA Tudo depende dela Em tudo nós a vemos Numa reta, num plano ou paralela Paralelas são duas retas Que nunca se conhecem Ao contrário das pessoas Que sempre se comunicam A soma é uma grande porção Seja em números ou palavrinhas Ao contrário da subtração Que sempre retira umas coisinhas A multiplicação, Multiplica as alegrias Já a divisão Divide as agonias A radiciação Dá a raiz da tristeza Já a potenciação Dá a razão da grandeza Por isso a matemática Faz parte da vida Nos oferece o raciocínio E a devida compreensão da vida. A pesquisa feita anteriormente com esses alunos de 5ª e 7ª séries levou-nos a constatar que boa parte deles declararam horror à matemática. E com justa razão. Isolada dos demais saberes, a matemática não é tão atraente quando pode ser. Para Edgar Morin, as disciplinas como estão estruturadas só servem para isolar os objetos do seu meio e isolar partes de um todo. Eliminam a desordem e as contradições existentes, para dar uma falsa sensação de arrumação. A educação deveria romper com isso mostrando as correlações entre os saberes, a complexidade da vida e dos problemas que hoje existem. Caso contrário, será sempre ineficiente e insuficiente para o cidadão do futuro. Pensamos, então, que seria necessário mostrar àqueles alunos o quanto a Matemática estaria integrada à vida, às artes e a coisas prazerosas do cotidiano. Optamos, naquele momento, então pela Literatura, por concordarmos com Morin que [n]ada mais passional do que um romance, nada tão maravilhoso quanto a poesia! Nada retrata melhor a problemática humana do que as grandes obras literárias. Os saberes não devem assassinar a curiosidade. A educação deve ser um despertar para a filosofia, para a literatura, para a música, para as artes. É isso que preenche a vida. Esse é o seu verdadeiro papel. A aceitação voluntária da leitura de poemas foi imediata. Por não ser uma atividade curricular, portanto, não susceptível à atribuição de pontos, o recebimento de um conjunto de poemas sobre matemática nos surpreendeu, embora esse resultado fosse condizente com o que propôs Decroly, no início do século XIX quando lançou a idéia do caráter globalizado da vida intelectual, o princípio de que um conhecimento evoca outro e assim sucessivamente. As crianças escreveram os poemas porque leram poemas e neles expressaram os conhecimentos adquiridos nas aulas de matemática. O incentivo ao reconhecimento da presença da matemática em outras expressões humanas levou esses alunos à reflexão e à revisão de seus conceitos negativos sobre tal área do conhecimento. Em vários poemas, os pequenos poetas expressaram prazer e gosto pela matemática.
Renato Augusto Pereira – 7º D É muito surpreendente Mais do que eficiente Famosa e grandiosa. Matemática é amor Matemática é envolver Matemática é resolver Matemática é aprender Matemática é entender Matemática é um movimento Uma curva Uma volta Um salário Um dia Uma inspiração Um viver Matemática é a resposta De tudo que podemos resolver.
Pelo fato de não precisarmos os temas que deveriam abordar, ressaltando apenas que, imitando os poetas, escrevessem Poesias em que utilizassem conhecimentos, informações, brincadeiras sobre matemática, a variedade de abordagens também nos surpreendeu. Classificação dos poemas apresentados pelos alunos por temas
Toda aquisição de conhecimento passa por uma prática e a escola não pode prescindir disso, sob pena de oferecer, no caso da matemática, abstrações que parecem aos alunos completamente inúteis e seu ensino um capricho massante dos professores, que insistem em fazer-lhes aprender essas inutilidades. Um dos desafios da educação é transpor a linguagem científica e tecnológica para a linguagem da escola. Esse não é um problema novo, mas ganha importância à medida que a cultura científica se expande. Toda disciplina escolar exige um trabalho de transposição, ou seja, deve tornar-se acessível a um público que não é composto de pesquisadores ou produtores do saber. Dessa forma, toda escola se torna uma imensa empresa de vulgarização, no bom sentido do termo. A formação dos professores exige, não só que eles dominem o saber, mas também que saibam fazer a transposição desse saber. Os conceitos complexos, explicados por alguém que não tem a competência da transposição, ou didática, só serão compreendidos pelos melhores estudantes. Os outros passarão por burros ou preguiçosos. Na verdade, traduzir é responsabilidade principal do professor. Quando as crianças expressam seus conhecimentos da matemática em Poesia e exploram a possível relação entre as duas áreas do conhecimento, é preciso admitir que foi feita a transposição da linguagem científica e tecnológica para sua própria linguagem. Quando isso foi feito de forma poética, embora a idéia de que a literatura não necessite de vínculo com a verdade, percebemos que os alunos estabeleceram relações coerentes e pertinentes entre os conceitos matemáticos e a vida, o que nos leva a crer que, para escrever, primeiro refletiram. Quando transcreve, de forma organizada, o seu pensamento, quando lança mão da ludicidade e da criatividade e alcança a poeticidade, o aprendiz experimenta o prazer de saber que sabe e se conscientiza de seu poder criativo. E sabemos que o indivíduo sensível não pode ser desconsiderado quando se aplica a racionalidade matemática. Aliás, a matemática se torna muito mais interessante quando se pode abordá-la pela sensibilidade e pelos apelos poéticos de sua utilização tanto na Poesia quanto na pintura, na música, na escultura, na arquitetura e nos processos mais simples do ato de brincar da criança, tais como fazer e empinar uma pipa, colocar rodinhas em um carrinho. Por isso os jogos são tão excitantes na matemática. A naturalidade com que alguns dos textos abordam conceitos complexos da matemática, considerando o nível escolar dos alunos apontou-nos também que é verdade que, quando fazem sentido, os conhecimentos parecem que nasceram com a gente e nós podemos lidar com eles com mais prazer e alegria. É o caso da presença de textos de humor, de sabedoria e de relações afetivas entre os números, sinais e fórmulas. Entre os textos de humor destacamos o que se segue, também pela sua retomada de brincadeiras folclóricas. Senhor João Hiago Borges – 5º - C Um dia, senhor João comendo arroz Três, quatro, senhor João no quarto, Cinco, seis, já comeu seis vezes Sete, oito, comeu de novo Nove, dez, comeu meus pastéis Que cara fominha!!! Também vale a pena observar um dos 10 textos que apresentam relações afetivas entre números, sinais e fórmulas. Poema Matemático Vinícius Carvalho Campolina – 7ª C
Da matemática O quociente brigou Com o sistema Juraram morte entre si O quociente processou O sistema O sistema partiu Para aritmética agressão No meio da confusão Retas perpendiculares de palavrões Iam por todos os lados. O sistema tentava calcular O mínimo múltiplo comum Que o segurava Até que então chegaram os Catetos E a xerife Hipotenusa, sarada, Prendem os dois dentro de um livro De geometria Para sua alegria. Lá dentro o quociente fumava bases e ápices O que o fez cair em um círculo concêntrico vicioso. Os dois fizeram planos, equações E diagramas para o futuro Sonhando com a liberdade E a integral felicidade Até que um dia desses No infinito se encontraram E aquelas convenções newtonianas de ódio Foram rompidas E dali em diante Sem preocupação Vivem nos jardins Da quarta dimensão Vivendo mais ou menos Amigos depois da confusão Pensamos que o trabalho das crianças não deve ser uma simples cópia: é necessário que seja realmente a expressão de seu pensamento. Ler vários poemas não foi incentivo para que os copiassem e os levou à reflexão de que podemos ser criativos a partir das informações que recebemos, inclusive na matemática e que decorar as fórmulas nem sempre garante um resultado satisfatório. É preciso explorar o uso integral da inteligência e ajudar as crianças a perceberem que as dúvidas e as dificuldades que elas têm são muito parecidas com aquelas que os grandes filósofos tiveram e que os levaram a grandes descobertas. E que, mesmo quando não as solucionamos, pensar sobre elas já é um exercício importante para a formação de conhecimentos. Por isso, [a] escola não pode se limitar a conectar o conhecimento com a experiência imediata e espontânea, pois cabe a educação, ao mesmo tempo ou no devido tempo, libertar o aluno do cotidiano, fazendo-o superar a experiência imediata para poder alcançar conhecimentos mais amplos e perenes, aqueles sistematizados nas ciências, nas artes e nas linguagens. São esses que, mobilizados, favorecem o enfrentamento das muitas tarefas da vida, do trabalho produtivo e o exercício da cidadania qualificada. A reflexão produzida pela prática da arte pode, de modo lúdico e prazeroso fazer a necessária transposição do imediato para o perene. Segundo Edgar Morin, o professor de Literatura precisa conhecer um pouco de História e de psicologia, assim como o de Matemática e o de Física necessitam de uma formação literária. Hoje existe um abismo entre as humanidades e as ciências, o que é grave para as duas. Somente uma comunicação entre elas vai propiciar o nascimento de uma nova cultura, e essa, sim, deverá perpassar a formação de todos os profissionais . Ainda que, na tentativa de construção de seus poemas, os alunos não tenham aprendido matemática, estabeleceram um diálogo com ela, refletiram, tornaram-na mais humana e menos mitológica, o que contribuirá, inegavelmente, para dirimir barreiras e restaurar as fecundas ligações do saber. Ressaltamos a importância disso com a frase de Paul Davies: “o mundo não é uma coleção de coisas separadas, mas de coisas emparelhadas, uma rede de relações”. No nosso modo de pensar, baseados na rica experiência que vivenciamos com a produção da Coletânea de Poesias Matemáticas dos alunos de 5ª e 7ª séries, vimos que é possível resgatar o verdadeiro princípio que deve nortear a freqüência dos alunos à escola: preparar-se para exercer a cidadania de forma integral, bem sucedida e feliz. Referências Bibliográficas [1] EVES, Howard. Introdução à História da Matemática, 3a ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2002. [2] HARDY, G. H. Em Defesa de um Matemático, São Paulo: Martins Fontes, 2000. [3] BOYER, Carl B. História da Matemática, 2a ed. , São Paulo: Edgard Blücher Ltda, 1996. [4] BELL, E. T. Men of Mathematics, Nova Iorque: Simon and Schuster, 1961. [5] LAGOA, Vera. Estudo do sistema Montessori. ___________ Editora Loyola. [6] MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: Repensar a reforma, reformar o pensamento. Ed. Bertrand Brasil. [7] MORIN, Edgar. Educação e complexidade: Os sete saberes e outros ensaios. Ed. Cortez. [8] MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Ed. Cortez. [9] DAVIES, Paul. Deus e a Nova Física. Edições 70, 2000. www.constructorsui.com.br www.omb.org.br www.ecoledecroly.be |
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