Luiz Fernando de Oliveira
No ano letivo de 2004 ingressei, através de concurso
público, na rede municipal de educação de Macaé.
Lotado numa das maiores escolas do município, o Colégio
Maria Isabel Damasceno Simão, para ministrar sociologia no Ensino
Médio, elaborei e iniciei um trabalho de formação
docente na área de diversidade étnico-racial, minha especialidade
desde a época do meu curso de mestrado na UERJ. Esse trabalho se
expressou num curso introdutório de História da África
e dos Negros no Brasil, coordenado por mim e ministrado por mais dois
colegas da escola.
O pequeno curso introdutório mobilizou discussões instigantes
a respeito da formação docente e das práticas de
ensino entrelaçados com as questões teóricas e práticas
das relações raciais na educação brasileira.
O curso ganhou repercussões na cidade, em diversas escolas e entre
alguns gestores da Secretaria Municipal de Educação (SEMED).
A partir de uma proposta, organizada por mim junto com o movimento negro
de Macaé, de formação docente, e acolhida pela SEMED
em janeiro de 2005, inicio-se um embrião de política pública
de promoção da igualdade racial na educação
no município. Essa proposta representa um trabalho pioneiro no
Brasil: a implementação do artigo 26A da Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDBEN) oriundo da Lei 10.639/03,
que institui a obrigatoriedade do ensino de História da África
e da Luta dos Negros no Brasil em todo o currículo do Ensino Básico.
A proposta de trabalho levada a SEMED começa a conquistar o interesse
de vários profissionais da educação básica
da rede municipal, abrindo discussões e reflexões acerca
das políticas públicas de promoção da igualdade
racial em educação, das políticas públicas
de inclusão escolar, reflexões críticas e questionamentos
teóricos sobre a formação docente e visões
tradicionais no campo do currículo.
Essas discussões estão sendo desenvolvidas em algumas escolas
do ensino básico através de cursos de formação
continuada, debates e seminários temáticos e reflexões
nos horários pedagógicos dessas escolas.
O tema que me proponho a discutir se insere nesse contexto de implementação
inicial de uma política pública voltada para a educação
das relações étnico-raciais, amparado pelas novas
diretrizes curriculares, aprovada pelo Conselho Nacional de Educação
(CNE), que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História da
África e dos negros no Brasil em todos os componentes curriculares.
A aplicação dessas novas diretrizes não se constitui
em mera obrigação legal. Envolve a formação
docente, o conhecimento da nova legislação, a reorganização
curricular e a mudança de posturas e atitudes subjetivas da parte
dos docentes.
Nessa perspectiva, impõem-se alguns questionamentos específicos
quanto a formação docente, os currículos e a leitura
que os docentes realizam sobre as legislações e textos pedagógicos,
e como esta última, interfere ou não na prática pedagógica
dos docentes.
Que noções de currículo têm os professores?
Para modificar o currículo ou acrescentar novos enfoques teóricos
é necessário não só formar os professores,
mas modificar sua forma de ser e lecionar? Há uma sobrecarga de
trabalho, impedindo os professores de terem tempo para se formar, se informar
e ler sobre as novidades no campo das discussões educacionais?
Iniciar um processo de mudança curricular visando a inclusão
de novas questões no campo da história e das relações
interétnicas requer mudar suas concepções consolidadas
a respeito do racismo, da identidade nacional e de suas visões
estereotipadas em relação ao outro, adquiridos em algumas
leituras pedagógicas? Na medida em que esses docentes tomam conhecimento
das novas legislações, como as leituras das mesmas se transformam
ou não em práticas pedagógicas nas escolas?
Para tentar delinear algumas respostas iniciais, investigaremos as narrativas
de três educadores de duas escolas do município de Macaé,
que já estão cientes das iniciativas das propostas levadas
a SEMED e também das novas diretrizes curriculares, na tentativa
de identificar como suas leituras das novas diretrizes para a educação
das relações étnico-raciais produzem sentidos e saberes
e também como estão ou não sendo traduzidos e mediados
no cotidiano escolar e na prática pedagógica.
Dos três docentes, uma exerce a docência em Língua
Portuguesa em turmas do ensino fundamental, outro em História no
ensino médio e a terceira é Coordenadora pedagógica
de uma escola das séries iniciais do ensino fundamental. Os dois
primeiros pertencem ao Colégio Maria Isabel D. Simão e a
terceira pertence a Escola Municipal Aroeira. Suas narrativas foram coletadas
por meio de entrevistas e relatos pessoais em reuniões pedagógicas.
Como afirmei anteriormente, pensar a aplicação de novas
diretrizes curriculares e, em especial, aquelas destinadas à superação
do racismo e das desigualdades étnicas na educação,
requer uma reflexão sobre currículo e formação
docente. É o que analisarei na segunda parte desse texto, antes
de entrar na análise das narrativas dos docentes em questão.
Currículo e formação docente
Na teoria crítica do currículo, podemos
destacar a análise de APPLE (1994), de que a definição
dos conhecimentos produzidos por determinados grupos como critério
de organização curricular e do que deve ser transmitido
às futuras gerações, ao negar a história e
a cultura de outros grupos, produz uma invisibilidade histórica
destes. O autor trabalha na perspectiva do currículo como revelador
das relações de poder numa determinada sociedade.
No Brasil, a história oficial, impressa nos currículos em
todos os níveis, revela que nossa formação cidadã
dá-se numa sociedade considerada essencialmente descendente de
europeus e marginalmente de índios, negros e outros grupos étnicos.
Como diz a professora Petronilha Beatriz Gonçalves e SILVA (2001),
os currículos dos cursos de formação de professores
são “elaborados e desenvolvidos unicamente a partir de teorias
ocidentais que organizam seu pensamento em base eurocêntrica”.
De fato, quando analisamos os conteúdos que são desenvolvidos
no campo do conhecimento histórico, chama atenção
a presença preponderante das culturas chamadas dominantes e, as
culturas e falas dos grupos dominados ou marginalizados, fora das estruturas
de poder, “costumam ser silenciadas, quando não estereotipadas
e deformadas”. (SANTOMÉ, 1995).
SILVA (1995) na sua leitura sobre o currículo, desenvolve a idéia
de que este se constitui como produção de conhecimento,
de identidade social, de relação de poder, como política
de identidade e como narrativa. Pode-se afirmar ainda, segundo CANDAU
(2003), que o currículo omite componentes culturais diversos e
testemunha preconceitos, conduzindo uma educação que “acaba
sendo marcada de forma unilateral, uma vez que tem como preocupação
central e quase exclusiva privilegiar conhecimentos considerados universais”.
Neste sentido, se o currículo omite uma história africana,
e por conseqüência, a história de seus descendentes
no Brasil, produz-se um conhecimento histórico unilateral, que
tenta consolidar uma identidade social e racial monocultural, legitima
relações de poder e, como narrativa de uma história
oficial passada, constrói-se um sentido do presente.
Por sua vez, considerando o currículo como narrativa, ou seja,
práticas discursivas sobre as coisas do mundo, nossa identidade,
nosso eu, ele “traz implícito uma trama sobre o mundo social,
seus atores e personagens, sobre o conhecimento” (SILVA, 1995).
O currículo reconhecido como narrativa, significa também
reconhecê-lo “como constituído de múltiplas
narrativas” colocando a possibilidade de “desconstruí-las
como narrativas preferidas, como narrativas dominantes”. (SILVA,
1995).
A partir das grandes mobilizações sociais e estudantis dos
anos 60 do século XX, vão surgir teorizações
que contestaram esse modelo monocultural de currículo. A combinação
entre movimentos sociais e estudantis - que questionaram valores, moral
dominante e exclusões sociais - e teóricos no campo da educação
e da sociologia – que percebem que os processos educacionais ao
invés de promoverem igualdades de oportunidades para todos, promovem
exclusões – vão questionar profundamente as teorias
tradicionais educacionais, em especial a questão curricular.
Teóricos como Bourdieu, vai afirmar que a escola tende somente
confirmar e validar o capital cultural das crianças e jovens das
classes dominantes, pois a mesma escola tem nos seus currículos
as bases culturais, sociais e ideológicas das classes dominantes.
Outro autor, L. Althusser, vai identificar na instituição
escolar, um simples Aparelho Ideológico do Estado (AIE), onde serão
reproduzidas as desigualdades sociais e políticas entre as classes
sociais. Outros ainda como, C. Baudelot e R. Establet, vão considerar
que os sistemas escolares estão divididos em termos de classe social,
se expressando também em currículos diferenciados. Todos
esses autores, de uma forma ou de outra, afirmaram que a escola e os sistemas
de ensino são reprodutores das normas sociais dominantes, constituindo
assim, currículos legitimadores da ordem capitalista desigual.
Aqui, não são mais os termos e conceitos técnicos
que vão prevalecer nos processos educacionais envolvendo a reflexão
e a noção de currículo, mas outros como: ideologia,
reprodução cultural e social, poder, classe social, capitalismo,
conscientização, emancipação e libertação.
Nas décadas posteriores, anos 70 e 80, outros autores colocam vários
elementos e problematizações envolvendo a noção
de currículo: M. Young e J.C. Forquim vão questionar a estratificação
dos conhecimentos escolares; M. Apple desejava responder as questões
de como a dominação econômica se transforma em hegemonia
cultural ou por que um determinado conhecimento deve ser ensinado e não
outro; H. Giroux questionará a racionalidade técnica em
questões curriculares e, não se limitando a uma análise
da reprodução social, abrirá a discussão das
possibilidades de transformações sociais via educação
e o currículo. Por fim, no Brasil, Paulo Freire, questionará
a educação bancária e os currículos que não
levam em conta a realidade do educando.
A partir do contexto das grandes mobilizações sociais dos
anos 60, 70 e 80, a tradição crítica iniciou e chamou
atenção para as determinações de classe dos
processos pedagógicos e curriculares, porém, posteriormente,
nas grandes transformações econômicas, culturais e
políticas do final da década de 80, vem a tona o multiculturalismo
que vai mostrar, por exemplo, que as desigualdades em educação,
currículo e práticas provem de outras dinâmicas desiguais,
como as de gênero, raça e sexualidade, que não podem
ser reduzidas à dinâmica de classe.
Segundo GONÇALVES e SILVA (1998), o multiculturalismo não
surgiu no campo da educação. Foi e é expressão
artística de reivindicações, contemplado por políticas
com diferentes enfoques e abrangências, em seguida, necessariamente
invadiu o campo educacional.
O multiculturalismo nasce no embate de grupos, nas sociedades cuja história
foi marcada pela presença e confronto de povos culturalmente diferentes.
O debate acerca do caráter multicultural das sociedades surge,
portanto, como um problema, em sociedades geradas pelo colonialismo ocidental,
no contexto europeu em função das recentes imigrações
e no Brasil, mas recentemente, em função dos novos movimentos
sociais emergentes a partir da década de 80.
Nas recentes tensões políticas e sociais no mundo, entre
o movimento de globalização e aqueles de afirmação
de valores étnicos, religiosos e culturais marginalizados do poder;
as conferências mundiais que revelam o aprofundamento de exclusões;
as reações a estes processos e; por fim, a emergência
da extrema-direita em países da Europa com discursos racistas e
programas ultranacionalistas, ganha força o multiculturalismo –
“movimento teórico e político que busca resposta para
os desafios da pluralidade cultural nos campos do saber, incluindo não
só a educação, como também em outras áreas”
(CANEN, 2002).
Teoricamente, o multiculturalismo estuda o conhecimento transmitido nas
diversas instâncias produtoras e transmissoras de cultura, revelando
etnocentrismos, estereótipos de determinados grupos e buscando
espaços para a incorporação de uma pluralidade de
vozes, de diversas formas de se construir e interpretar a realidade. Busca-se,
nesse ponto de vista, reconstruir histórias e visões de
mundo que produzem identidades plurais procurando desconstruir os discursos
culturais hegemônicos e as narrativas que se pretendem universais.
Nesta perspectiva teórica, a identidade é definida como
construída, por meio dos discursos culturais, elaborados e desenvolvidos
em espaços diversificados (HALL, 1997 e 2003). Ou seja, a cultura
forma nossas identidades. Constitui-se assim uma redefinição
das análises sociais, uma virada cultural que traz, então,
para o terreno das análises, a necessidade de compreender os mecanismos
de regulação e de poder que permitem certos discursos e
silenciam outros, que favorecem o crescimento de certas identidades em
detrimento de outras. A cultura constitui espaços de conflitos,
constitui campos em que se desenvolvem relações de poder.
Surgem os Estudos Culturais, que vão se constituir como ferramenta
de análise em diversas áreas tratando-se, portanto, de um
campo interdisciplinar e integrador de currículos. As teorizações
que vão alimentar os estudos culturais têm também
suas raízes no feminismo, na Sociologia, na Antropologia, bem como
no marxismo, no pós-estruturalismo e no pós-modernismo.
O multiculturalismo pode ser visto como uma das preocupações
dos Estudos Culturais. A diversidade de culturas, características
de identidades plurais, em movimento e em relações assimétricas
de poder, ocasiona a necessidade de se desconstruírem discursos
e práticas que silenciam determinadas identidades culturais.
Se a essência teórica para a reflexão acadêmica
sobre o multiculturalismo pode ser identificado “na matriz da virada
cultural e dos Estudos Culturais, sua existência é percebida
na dinâmica de acontecimentos mundiais nos quais se evidencia a
centralidade da categoria cultura em movimentos de afirmação
e de resistência, que buscam responder a processos de exclusão
e de aniquilamento de identidades culturais” (CANEN e MOREIRA, 2000).
Segundo MOREIRA (1999), nos último 20 anos tem-se intensificado
no campo educacional o foco de análise na formação
docente, nas questões curriculares e na sua materialização
nas práticas pedagógicas. Por dentro das questões
curriculares, e principalmente da formação docente, vem
se destacando uma preocupação com o multiculturalismo.
O surgimento desta discussão adquire relevância a partir
do entendimento de que a pluralidade cultural, étnica, religiosa,
de visões de mundo e diversas manifestações identitárias,
vêm sendo reconhecida em diversos campos da vida contemporânea,
superando os muros da academia. No âmbito pedagógico, implica
“pensar formas de valorizar e incorporar as identidades plurais
em políticas e práticas curriculares” (CANEN e MOREIRA,
2000).
CANDAU (2002), em sua análise sobre as questões educativas
no contexto da globalização, lembra que a discussão
sobre o currículo assume um papel de destaque, na medida em que
este é percebido como campo de possibilidades de diálogo
“entre diversos grupos sociais, étnicos e culturais que coexistem
num mesmo espaço social de dimensões cada vez mais globais”.
Este entendimento passa pela percepção de que a globalização
não significa a homogeneidade cultural dos povos e das relações
sociais, mas a constatação de que o global e o local se
expressam em culturas híbridas, marcadas pelo sincretismo.
Neste sentido, o novo século que se inicia se caracteriza por tensões
referentes à afirmação de identidades plurais em
sociedades cada vez mais multiculturais e desiguais, levando com si, a
necessidade de se pensar o campo educacional, e especificamente os currículos
e praticas de ensino, não mais monoculturais, raciais e culturalmente
míopes, constituídos sobre uma noção de universalidade,
a partir de valores, histórias e narrativas raciais e culturais
dominantes.
Assim, para MOREIRA (1999), “os educadores do próximo século
não poderão ignorar as duras questões que as escolas
terão de enfrentar, referentes ao multiculturalismo, raça,
poder, identidade, significado, ética e trabalho”.
CANEN (2001), citando as análises de CANDAU (1991) de que o conceito
das competências técnicas de ensino sempre foi considerado
“neutro”, afirma que uma perspectiva multicultural crítica
vem ganhando força na medida em que se supera a visão monocultural
de sociedade para um “reconhecimento do caráter multicultural
de grande parte das sociedades e da necessidade de formação
de professores preparados para atuar com alunos de padrões culturais
diversos”.
Formação docente e leitura
Na medida em que identificamos novos questionamentos
e reflexões no campo do currículo, há que se considerar
também as reflexões recentes, no campo da prática
de ensino e formação docente, em especial da leitura docente,
como uma das dimensões dessa mesma formação.
Segundo LELIS (2001), nas discussões mais recentes no campo da
didática e da prática de ensino se percebe uma verdadeira
“ruptura de um idioma pedagógico” pois, se passa de
uma perspectiva prescrita pelo modelo da racionalidade técnica
a abordagem de uma prática de ensino e formação profissional
reflexiva, onde os debates giram em torno de teorias que aspiraram investigações
sobre os “saberes da ação” profissional docente.
Em outros termos, considera-se e aspira-se o professor como “prático
reflexivo”, que busca produzir discursos e narrativas sobre sua
própria prática, na perspectiva de reflexão-ação
sobre a mesma.
O debate teórico sobre as questões de prática de
ensino vem ganhado destaque na literatura educacional, muito em função
da crise dos paradigmas que sustentaram, por longos anos, as relações
entre o fazer pedagógico em sala de aula e a formação
inicial docente. Na verdade as tensões desta relação
se expressam nas contradições entre teoria e prática,
formuladas por uma concepção tecnicista na formação
de professores.
O que ocorre freqüentemente nas faculdades de educação
é uma orientação e o desenvolvimento de cursos de
graduação na qual o estudante cursa disciplinas de formação
geral de sua área e, ao final do processo, disciplinas de licenciatura,
realizando concomitantemente estágios em sala de aula, no ensino
básico, para observar e aprender como se pratica as teorias adquiridas
anteriormente. Ou seja, um modelo de formação de professores
que tem como objetivo principal “capacitar” os futuros docentes
num instrumental teórico necessário para aplicação
prática. Em outras palavras, o objetivo primeiro é aprender
a teoria para depois aprender a ensinar os saberes e conhecimentos através
da observação e execução de uma “prática
de ensino” supervisionada pelo formador que, se bem sucedida, permitiria
a comprovação de que esse futuro professor saberia “dar
aulas” de forma competente.
Esse modelo de racionalidade técnica vem sendo, nos últimos
anos, questionado em função de vários aspectos: 1-
as teorias e leituras apreendidas na formação docente muitas
vezes não encontram conexões com a realidade prática
da sala de aula, é o chamado “choque de realidade”,
2- em função disto diversos professores já não
dão mais importância às teorias pedagógicas,
as leituras de textos pedagógicos, às vezes inclusive rejeitando-as
veementemente, 3- os professores são vistos como meros instrumentos
de repasse de conhecimentos produzidos por outros, 4- o contexto e a realidade
sócio-cultural dos alunos não são considerados nas
teorias pedagógicas deste modelo, estabelecendo dinâmicas
com conseqüências danosas para o processo ensino-aprendizagem
– como, por exemplo, são os casos em que, muitos professores
do ensino básico do município do Rio de Janeiro vivenciam
as contradições entre teorias pedagógicas e práticas
de ensino em contextos escolares marcados pela violência e o tráfico
de drogas.
Ao final, quando esse profissional se forma e entra no magistério,
ocorre freqüentemente aquilo que FAZENDA (2003) afirma: “o
professor entra no magistério, esperando a hora de sair, confuso
com uma realidade que desconhece, despreparado teoricamente para enfrentá-la,
mal pago, mal orientado e não incentivado, acaba por estagnar-se,
hibernar-se em seu trabalho e ai permanece até o final”.
A formação docente baseada na racionalidade técnica,
a popular “receita de bolo”, está em crise, pois, com
as grandes transformações ocorridas nas sociedades contemporâneas,
como afirma SCHÖN (1995), a concepção de que é
a teoria que possui a verdade e que as práticas profissionais não
produzem saberes, leva necessariamente ao descrédito, ineficiência
e culpabilização dos profissionais docentes pelo fracasso
escolar.
Neste sentido faz-se necessário na formação continuada
de professores, pensar algumas questões chaves para melhor compreensão
e produção de processos de ensino-aprendizagem que não
se transformem em verdadeiros fracassos pedagógicos.
Uma primeira questão é pensar o espaço escolar como
dinâmico culturalmente e complexo; é preciso compreender
que nem tudo aquilo que deve ser ensinado e aprendido são lidos
e significados de forma linear e homogêneo por todos, neste aspecto,
autores com P. PERRENOUD (2001), A. NÓVOA (1995), M. TARDIF (2000),
D. SCHÖN (1995), A. CANEN (2201), J. G. SACRISTÁN (1995),
Antônio F. MOREIRA (1999), H. GIROUX (1997), entre outros, são
fundamentais; outra questão é que o professor deve compreender
que seus saberes docentes são construídos ao longo de uma
carreira profissional, não são processos prontos e que suas
subjetividades embasam estes saberes.
Nas novas teorizações a formação do professor
e sua prática de ensino deve ser ressignificada, e que o momento
de formação representa a realização de práticas
reflexivas. Por fim, é necessário refletir sobre que tipo
de público se tem, diferentemente dos adultos, será necessário
contextualizar, pedagogizar os conteúdos e falar com os jovens
e crianças e para os jovens e crianças, sem cairmos no populismo
espontaneísta, que professando partir da realidade dos alunos,
acaba por ficar na realidade do aluno.
Esses desafios e perspectivas colocam para nós outras questões,
envolvendo formação reflexiva docente e suas práticas
pedagógicas: qual o papel das leituras de textos pedagógicos
oficiais, feitas pelos docentes e a construção de saberes
e sentidos subjetivos que os mesmos fazem dessas legislações?
E mais precisamente, como esses docentes estão realizando a transposição
didática da leitura que fazem do novo Art. 26A da LDB, sobre a
educação das relações étnico-raciais?
J. LAROSSA (1995), num breve ensaio, se questiona como “em torno
da experiência da leitura se articula uma certa política
da subjetividade”. Ele analisa as relações entre subjetividade,
pedagogia e experiência. Larossa entende experiência, como
experimento, algo que o sujeito produz, essa experiência resulta
da formação, que implica trans-formação, alter-ação,
metamorfose. Ou seja, uma aposta, onde o que está em questão
é a identidade.
O autor nos fala que em relação a leitura, o ato de ler
“é como deixar-se penetrar, digamos espiritualmente, por
uma substância que tem a capacidade de formar a alma; ler é
como entrar num jogo; ler é como viajar”. Argumentando a
partir daí que a leitura é uma experiência aberta
e não finalizada que tenha capacidade de produzir novidade e singularidade,
ele nos lembra que “só lendo (ou escutando) a pessoa se torna
consciente de si mesma. Só escrevendo (ou falando) pode a pessoa
fabricar um eu.
Na análise do trabalho em questão, nos interessa este último
aspecto colocado por Larossa, pois existe uma articulação
entre textos, leituras de textos e práticas pedagógicas,
nas quais o sujeito (no caso os docentes), se constitui no que é.
Em outro ensaio, LAROSSA (1994), afirma que “a história do
eu como sujeito, como autoconsciência, como ser para si, é
a história das tecnologias que produzem a experiência de
si”, e assim deve-se pensar a pedagogia, a leitura e a prática
docente como formas de experiência de si nas quais esses podem se
tornar sujeitos de um modo particular.
Neste sentido, as leituras que os professores realizam, devem ser vista,
apesar das problematizações que foram expostas anteriormente,
como espaços e momentos de formação e experiência
de si e que por sua vez produzem sentidos e são mediados nas suas
práticas. Ou seja, as leituras dos professores, suas práticas
pedagógicas se relacionam entre si, produzindo saberes e sentidos,
não necessariamente restritos aos sentidos e significados pelos
autores dos textos, e em nosso caso, dos textos e legislações
pedagógicas.
A partir dessas considerações é que analisaremos
as narrativas e construções de sentidos de três docentes
a respeito das novas diretrizes curriculares para a educação
das relações étnico-raciais.
Desafios da transposição didática
nas leituras das diretrizes curriculares para a educação
das relações étnico-raciais.
Partimos da idéia de que o currículo é
uma narrativa (SILVA, 1995) e que, portanto, constitui-se num campo de
disputas de significados. Por outro lado, na problematização
da formação docente, constatamos tensões entre o
apreendido e a experiência prática. Nessa última,
a leitura, como campo específico da formação, nos
revela que os docentes são leitores submetidos a condições
bem delimitadas de formação para a leitura, que tendem a
desenvolver determinadas formas de ler e de se relacionar com a leitura,
a cultura e o contexto escolar que os envolvem.
Os três docentes investigados, como anunciamos acima, afirmam ter
conhecimento da legislação e todos se declaram negros. A
primeira exerce a docência há dez anos, a segunda há
cinco e o terceiro há seis anos. A primeira e a segunda trabalham
de 30 a 40 horas semanais e o terceiro professor mais de 40 horas.
Vejamos o que dizem os três docentes aqui investigados sobre seus
hábitos de leitura:
Professora 1 - Me considero uma professora leitora. Aliás,
eu sou leitora desde muito pequena. Acho que, desde o momento que eu aprendi
a ler, eu sou uma pessoa leitora. Até hoje leio os contos de fadas,
por exemplo.
Eu gosto de romances, e também gosto de ler textos informativos,
trabalhos pedagógicos.
(...)sempre fui uma pessoa que lê muito. Eu li muito a minha vida
inteira. Sempre gostei de ler livros, romances, enfim, sempre fui muito
freqüentadora de biblioteca. Agora, como eu adquiri esse hábito,
na verdade, eu não sei te dizer. Porque eu não tirei esse
hábito de uma vivência familiar. Comecei a ler e a gostar
e fui lendo cada vez mais.
(...) não foi a profissão professora que me fez ler mais.
Eu sempre li muito. O que a formação docente me fez, foi
ler mais assuntos relacionados à educação. Mas eu
sempre gostei de ler, agora eu acrescentei, claro, assuntos e textos voltados
a área pedagógica.
Professora 2 – A minha leitura é mais de
formação humanística do que para a formação
docente. Acho que em termos de atualização profissional
a gente tem muito pouco tempo e espaço do que oportunidade para
melhorar a leitura.
Eu leio muitos textos voltados para a área de formação
humana, tecnologia e filosofia. A minha leitura não é a
literatura, não é a gramática (...).
Antes de ser professora eu lia despreocupadamente, por puro prazer, lia
até mais. Eu parava para ler. Minha família me incentivava
muito a leitura de histórias.
Professor 3 – Meu costume de leitura mais freqüente
são as revistas especializadas de história e os jornais
e revistas da grande mídia. Na minha área me considero um
professor leitor, pois leio muitos artigos e publicações
acadêmicas de história.
Por outro lado, o que suas escolas lhes proporcionam
em termos de leitura:
Professora 1 - A escola me proporciona a necessidade da
leitura. Essa leitura eu é que proporciono, essa vivência
de leitura para a escola, eu que trago esse trabalho de leitura. Por exemplo,
agora, eu estou lendo um livro para tentar acalmar o problema que a gente
está tendo na escola, referente a apelidos. E estou buscando isso
no livro,como pesquisa, como fonte de pesquisa mesmo.
Professora 2 – Sinceramente, desde quando me tornei
professora, em todas as escolas que passei não há um incentivo
a leitura. E atualmente minha escola não incentiva a leitura dos
professores. Eu é que tenho que correr atrás para me atualizar
e me formar.
Professor 3 – Não vejo minha escola incentivando
a leitura para mim e meus colegas, este ano, praticamente não houve
nenhuma discussão de nenhum texto, seja ele pedagógico ou
não.
Nas descrições que fazem dos textos pedagógicos
específicos, eles relatam:
Professora 1 - de dois anos para cá, estou numa
escola do primeiro segmento do ensino fundamental e estou voltada nessa
pesquisa curricular dessa área. Antes eram doze anos trabalhando
com o ensino médio.
Olha só, esses textos legislativos, são muito informativos.
Eles(...) não têm muito poder, é o caso da LDB, por
exemplo. Ela deveria ter partido dos diversos segmentos da educação,
isso não aconteceu. Então, ela é uma coisa utópica,
é difícil da gente acreditar, difícil de alcançar,
difícil da gente seguir.
Na verdade, essa nova LDB, (...) deveria ser construída pelos diversos
segmentos da educação, elaborada, ouvida. E ela é
uma lei utópica, a gente não vê acontecer, a gente
não vê a prática da leitura dessa lei, e como não
tem a prática da leitura, ela também não tem questionamento.
Então, é uma lei sem efeito para mim. Eu acho que o primeiro
passo é ouvir todos os segmentos da nossa educação.
E isso é uma coisa mais simples. Deveria existir um texto mais
simples, com menos informações.
Professora 2 – Os textos pedagógicos eu tomei
ciência na graduação da UERJ. E Atualmente eu tenho
necessidade de ler esses textos por uma questão política.
Pois nossa profissão não é simplesmente educativa,
mas essencialmente política. Esses textos eu leio na medida em
que tenho acesso a coisas interessantes. A coisas que me atualizam, desde
que eu busque e encontre. Quando aparece eu os leio.
Esses textos eu tenho que buscar, procurar para dar conta da realidade
da sala de aula. Pois hoje, nós precisamos nos super-atualizar
para cumprir vários papéis na sala de aula, além
de ser professora. Acho que a escola nos deveria oportunizar mais textos
assim, para continuarmos estudando, para dar conta não só
da pedagogia, mas também do social e do político da sala
de aula.
Outra coisa importante, quanto aos textos pedagógicos é
que eu percebi, depois de me tornar professora, a necessidade de me atualizar
e estudar a questão das diferenças, pois a academia te forma
para uma sala de aula ideal e não para a realidade. Assim, tive
a necessidade de buscar leituras que conseguissem e me possibilitassem
fazer esse equilíbrio entre a realidade e minha formação.
Eu tenho essa necessidade de me atualizar e me formar, para estar sempre
me sentindo útil e capaz de gerenciar a prática. Acho que
todo professor deve ser um estudioso e não aquilo que a sala de
aula e a escola exige: um mero papagaio que repete conteúdos.
Professor 3 – Olha, de vez em quando eu leio textos
pedagógicos. Não tenho esse hábito, pois trabalho
muito e prefiro ler, como lhe disse, textos referentes a minha área
de história. E procuro neles novidades que possam me auxiliar na
minha carreira profissional.
Podemos constatar que se por um lado há um movimento
próprio de busca de referências pedagógicas, independente
dos incentivos que suas escolas lhes proporcionam, por outro, no que se
refere as novas diretrizes curriculares para as questões raciais
em educação, a tomada de conhecimento dessas, se dá
a partir de iniciativas externas a escola e aos sujeitos:
Professora 1 - Eu tomei conhecimento da legislação
para as questões raciais através do trabalho da Secretaria
de Educação no ano passado, em 2004, quando eu estava voltada
para o programa de ensino e legalizando o ensino médio na rede
municipal de Macaé. E quando eu montava o programa de ensino, eu
já colocava a necessidade, a obrigatoriedade de trabalhar com essa
legislação.
Professora 2 - Conheci a legislação sobre
a questão étnica através de contatos com colegas
de profissão e num curso de extensão realizado em minha
escola em 2004.
Professor 3 – Em 2004, fizemos um curso de extensão
na escola em que nos chamaram a atenção da existência
da Lei 10.639, que nos obriga a instituir a história da África
e dos negros no Brasil em nossos currículos escolares.
Ou seja, no caso das novas diretrizes, não é
o leitor quem procura espontaneamente o texto, mas é o texto que
se dirige, através do poder executivo e pela direção
da escola, oficialmente aos seus leitores.
Entretanto, quando tomam conhecimento do texto oficial intencionalizado,
operam uma ressignificação do mesmo, carregado por questionamentos,
críticas e desafios. Vejamos o que afirmam sobre as possibilidades
da aplicação do novo artigo 26A da LDB:
Professora 1 - Eu acho que essa lei não dá
poder. Ela dá, mais ou menos assim, como se fosse uma filantropia:
“olha, vamos trabalhar!”; “olha, vamos estudar!”.
Contando com a boa vontade de todo mundo. E tem outra coisa que falta
nessa lei. São anos e anos de dívida com os afrodescendentes,
e é uma lei que não fala assim, olha: “tantos porcentos
que é dado para a educação, a gente vai dirigir à
aplicação da construção curricular da africanidade
na escola.” Tipo: “vamos ter aula de capoeira”, ou de
outras coisas qualquer. A lei deixa isso vago. Então, é
por isso que eu falo, ela não dá poder de cumprimento. Se,
de repente, conseguirmos uma pessoa da comunidade, para entrar na escola
e trabalhar capoeira, tudo bem, mas essa abertura, esse poder, essa verba,
isso não está definido na lei, e eu acho isso essencial.
(...) Eu acho que ela não teria valor, nesse momento, se ela não
estivesse ligada a essas questões docentes. Mas ela precisa, futuramente,
estar ligada. Ela precisa disso, como outras áreas de conhecimento.
(...) No entanto essa legislação está falha. Na verdade,
o que é conhecimento? A partir de quando nossas decisões
são formadas. A formação do conhecimento existe?
Essas são as questões que a gente tem que estar levantando
na escola, nessa nova era chamada pós-moderna. Porque é
a era do questionamento. Nós saímos do ensino médio
formados, nós saímos da faculdade formados. E, no entanto,
agora, nessa pós-modernidade, o que a gente tem? São quebra
de paradigmas, e esse conhecimento, está sendo questionado, temos
vários olhares, temos os olhares de diversas culturas, principalmente
no Brasil. Hoje, por causa de diversos questionamentos a gente já
quer ostentar, quer viver, quer viajar, quer conhecer. Então esse
conhecimento transcende os muros da escola. Transcende o texto de legislação.
Para a gente entender legislação, tem que ter outros textos.
(...) acho que primeiro a gente tem que conhecer todos os professores,
tem que conhecer a lei e a partir dessa conquista, desse conhecimento
a gente traçar metas e fechá-la dentro de um Projeto Político
Pedagógico, que talvez isso dará o poder.
Para essa lei ser aplicada é preciso formar os professores e mudar
o currículo, pois ela deve contribuir para o combate ao racismo
também fora da escola.
Professora 2 – Acredito que o Artigo da 26A da LDB
para ser aplicado nas escolas está prejudicado em virtude do lapso
existente na formação docente, principalmente pela artificialidade
dos currículos e das divergências dos projetos e políticas
da área educacional. Apesar de achar importante para se combater
o racismo, eu ainda não apliquei esta temática em sala de
aula. O que procuro fazer é tentar adequar o tema nos meus conteúdos.
Acho que precisamos de um maior referencial teórico a fim de possibilitar
um amadurecimento e releitura de minha prática docente, capazes
de instigar e fomentar tais discussões progressivamente em toda
a sociedade. Precisamos da ampliação do conhecimento (realidade)
a partir da valorização dos relatos históricos e
estórias de indivíduos que conseguiram, apesar de todas
as discriminações sofridas ao longo da vida, forjarem-se
sujeitos de fato e de direito em nosso país.
Professor 3 – Acho importante essa legislação,
principalmente se levarmos em conta a origem social dos nossos alunos,
que pertencem a comunidades carentes e desassistidas pelo poder público.
Antes dessa lei as coisas eram piores, pois a escola praticamente se omitia
em relação as desigualdades raciais. E acho também
que a questão das desigualdades raciais no Brasil é uma
questão que se refere a uma desigualdade social somado a herança
da escravidão.
Mas eu tenho efetivado muito pouco essa nova lei, somente em momentos
isolados, quanto está relacionada ao conteúdo e não
de modo sistemático como pede a legislação.
É difícil aplicar essa nova Lei. Primeiro, porque devemos
estar mais informado e formado acerca do assunto, pois, no meu caso, trago
uma deficiência na formação inicial, uma vez que não
havia na UERJ, na grade curricular, uma disciplina específica,
em segundo lugar, seria necessário um esforço contínuo
dos próprios estabelecimentos de ensino em capacitar professores
para as novas legislações que propõem novos conteúdos.
O que se constata é que os docentes se apropriam
dos textos de legislação atrelando-os às suas práticas.
Há um esforço de didatização do texto para
que a transmissão e o ensino se efetuem. O que nos parece é
que a proposição do texto de legislação lida
por eles, não é suficiente se o mesmo não tece uma
prática pedagógica.
Larossa (1994) afirma que “nas atividades de auto-reflexão
crítica com os professores, o que se produz é toda uma identidade
prática em relação com a atividade profissional,
presente ou futura, em função de uma história pessoal
construída sob princípios de evolução e totalização.
É a subjetividade mesma (...) dos professores em formação
que se está construindo através da imposição
de certos padrões de autonarração”.
Mas não se limitam a esses aspectos. Indagados sobre os desafios
das novas diretrizes, pode-se afirmar que a experiência da leitura
desses textos provoca uma pluralidade de sentidos. Ou seja, os significados
na leitura são construídos a partir do que eles possuem
enquanto experiência vivenciada e concepção referente
ao tema das relações raciais.
Esses sentidos variados se revelam, por exemplo, quando a primeira professora
afirma que essa lei não dá poder de aplicação
ao professor, ou seja, ao professor somente é recomendado, na sua
opinião, a aplicação de um certo conteúdo
e não a incorporação da necessidade de pagar “anos
e anos de dívida histórica com os afrodescendentes”.
Ela expressa isso em outro exemplo quando diz que para a capoeira entrar
nas escolas, como aula, como conteúdo, são necessárias
as verbas públicas e, é neste sentido, afirma, que esta
lei como está, não terá poder de cumprimento.
A mesma professora vincula a discussão e efetivação
da nova legislação para as relações étnico-raciais
a formação docente e a construção coletiva
de um projeto político pedagógico da escola, de forma que
todos se integrem ao mesmo, levando em conta a nova realidade das diversas
vozes e leituras presentes na sociedade. Sua experiência enquanto
coordenadora pedagógica da escola conduz a uma proposta de ação
mais coletiva, tentando mediar a aplicação das novas diretrizes
curriculares a um projeto pedagógico da escola como um todo.
Numa outra perspectiva trabalha a segunda professora, evidenciando a questão
da formação docente e o sentido político dessa formação.
Diz ela: “(...) tenho necessidade de ler esses textos por uma questão
política. Pois nossa profissão não é simplesmente
educativa, mas essencialmente política”. E quando se refere
a questão racial: “Precisamos da ampliação
do conhecimento (realidade) a partir da valorização dos
relatos históricos e estórias de indivíduos que conseguiram,
apesar de todas as discriminações sofridas ao longo da vida,
forjarem-se sujeitos de fato e de direito em nosso país”.
Ou seja, apesar de encontrar dificuldades na aplicação dessas
novas diretrizes, identifica uma razão política para tentar
se aprofundar mais na perspectiva de aplicação da mesma.
Apesar de evidenciar a função política transformadora
da educação, observa-se que há uma ausência
de experiência com a temática racial, dificultando seu raio
de ação na prática de ensino: “Apesar de achar
importante para se combater o racismo, eu ainda não apliquei esta
temática (leia-se, as diretrizes) em sala de aula. O que procuro
fazer é tentar adequar o tema nos meus conteúdos”.
E aqui se revela aquilo que LAROSSA (1994) denomina de experiência
de si, ou seja, “as práticas discursivas que se produzem
em uma aula (...) não tem tanto a ver com o que o educador sabe,
com sua competência profissional, mas com o que ele é (...)
com o valor e o sentido que confere à sua prática, com sua
autoconsciência profissional”. Nessa linha de análise,
a professora, sabe que está em constante processo de formação
profissional, porém, por não ter uma experiência de
si nas questões raciais, tenta adequar, quando pode ou consegue,
as mesmas em seus conteúdos.
O terceiro professor chama atenção à realidade social
dos seus alunos: “Acho importante essa legislação,
principalmente se levarmos em conta as origens sociais dos nossos alunos,
que pertencem a comunidades carentes e abandonadas pelo poder público.
Antes dessa lei as coisas eram piores, pois a escola praticamente se omitia
em relação as desigualdades raciais”.O que aparece
nessa afirmação é uma preocupação com
a condição social de seus alunos. Entretanto, permanecem
algumas interrogações: por que ele restringe a importância
das novas diretrizes curriculares a “origem social dos alunos”?
Será que essa “origem social” está restrita
a alunos carentes, negros e pobres, como parece ser sua afirmação?
Mais adiante ele nos diz: “acho também que a questão
das desigualdades raciais no Brasil é uma questão que se
refere a uma desigualdade social somado a herança da escravidão”.
Ou seja, ele enfatiza predominantemente os aspectos sociais e econômicos
das desigualdades, analisando secundariamente, a questão da alteridade
específica que as diretrizes evidenciam. Provavelmente por ter
vivenciado uma formação onde estavam ausentes as questões
das diversidades étnicas, a experiência formativa contribui,
assim como a professora anterior, a uma certa ausência de iniciativas
mais consistentes na aplicação das diretrizes curriculares
para as relações étnico-raciais.
Perspectivas e (in) conclusão.
Os três docentes investigados questionam a aplicabilidade
da lei em três dimensões: a precária formação
docente quanto a questão racial, os currículos monoculturais
e as condições de acesso a leituras mais aprofundadas da
questão das relações étnico-raciais em educação.
Neste sentido, o que vem a tona, neste limitado estudo, para uma efetiva
implantação das diretrizes curriculares, são os desafios
de uma política de formação docente eficaz, que incida
sobre as lacunas da formação inicial; o aprofundamento teórico
e prático nas discussões curriculares e a ampliação
do acesso e o incentivo as leituras das questões raciais por parte
dos sistemas de ensino e das escolas.
Entretanto, como bem observou SILVA (1995), se o currículo pode
ser considerado uma narrativa e por outro lado LAROSSA (1994) nos diz
que a leitura é uma experiência aberta e não finalizada
que tenha capacidade de produzir novidade e singularidade, os testemunhos
dos docentes investigados diante das novas diretrizes curriculares, nos
informa uma narrativa curricular diversa do texto oficial e que produz
interpretações abertas, singulares e novas.
O texto propositivo das diretrizes, seu caráter intencional visando
uma certa “obediência”, é lido com sentidos diversos
e reinterpretado, nos revelando que a leitura dos textos pedagógicos
carrega consigo a marca das práticas de ensino e subjetividades
dos docentes. Novas narrativas são construídas sobre esses
textos. Subversões, diálogos, metamorfoses, recontextualizações
são efetivadas, enfim, poderíamos afirmar que leituras multiculturais
são implementadas.
As novas diretrizes curriculares para a educação das relações
étnico-raciais que objetivam construir uma nova leitura do papel
da educação básica para combater o racismo, a princípio,
vêm conquistando adesão dos docentes, entretanto, o texto
da lei é problematizado e reinterpretado a partir de quem vive
as contradições e desafios das relações raciais
excludentes e estereotipadas dentro de sala de aula e nas escolas.
O texto das diretrizes no contexto escolar, que exige uma obrigatoriedade
por parte do leitor, tenta produzir uma univocidade de sentido, entretanto,
o retorno, ou seja, uma certa prestação de contas desse
sentido, não se efetiva, pois os processos, no ato da leitura,
que envolvem a construção e atribuição de
sentidos desses textos são plurais, subjetivos e vinculados a contextos
diversos daqueles que produziram o sentido intencional do texto oficial,
ou como diz a primeira professora: “(...) primeiro a gente tem que
conhecer todos os professores, conhecer a lei e a partir dessa conquista,
desse conhecimento, a gente traçar metas (...)”.
Enfim, a partir dessas análises, tornar-se evidente que mudanças
nos currículos e na formação docente, devem levar
em conta também a diversidade das formas de leitura que os textos
pedagógicos produzem. E nas análises e descrições
das narrativas dos professores, vemos que as leituras que realizam, devem
ser vista, também como espaços e momentos de formação
e experiência de si, já que o “consumo” das leituras
das diretrizes curriculares para a educação das relações
étnico-raciais não são realizadas de forma passiva.