Cláudia Beatriz de Castro Nascimento Ometto
- Faculdade Cenecista de Capivari - FACECAP
Introdução
Este trabalho é parte de uma pesquisa já
concluída, cujo objetivo foi entender os modos de mediação
da professora e os processos de elaboração e re-elaboração
da escrita pela criança, tendo em vista o desenvolvimento da dimensão
reflexiva do ato de escrever.
O referencial teórico no qual ancorei-me para a realização
deste trabalho foi a abordagem histórico-cultural do desenvolvimento
humano, tendo como interlocutores Vygotsky, Bakhtin e os trabalhos de
Geraldi, Góes, Smolka e Fontana, igualmente fundamentados nessa
perspectiva.
Tanto Vygotsky quanto Bakhtin, em suas proposições, destacam
a centralidade da linguagem e do outro na constituição de
nossa subjetividade e de nossa possibilidade de consciência e reflexividade.
Segundo ambos, vamos nos tornando quem somos no processo de apropriação
e de elaboração das formas culturais já consolidadas
no grupo social a que pertencemos, pela mediação do outro,
através da linguagem.
Em nossas relações com o outro, que são relações
sociais determinadas pelos lugares e papéis sociais nelas em jogo,
apreendemos o outro, ao mesmo tempo em que a ele nos expomos. Nessa relação,
porque consideramos, compreendemos e avaliamos os atos dos outros e porque
os outros emitem compreensões e juízos acerca de nossos
atos, tornamo-nos capazes de compreender e avaliar a nós mesmos.
Em função do referencial teórico assumido, para focalizar
a reflexividade não basta voltar-se para o sujeito e sim para a
dinâmica interativa em que ele vai se constituindo.
Como meu interesse era apreender o desenvolvimento da reflexividade nas
atividades escritas produzidas na escola, voltei-me para a dinâmica
interativa produzida entre professora-alunos, alunos-alunos, professora-alunos-textos,
alunos-alunos-textos.
Para tanto focalizei as interlocuções produzidas em suas
condições sociais imediatas e mais amplas de produção,
as palavras que eram ditas e escritas e a linguagem não verbal
que permeava a produção enunciativa; considerando cada enunciado
como um ato de fala singular e ao mesmo tempo histórico, em função
de sua vinculação à cadeia da comunicação
verbal.
Assim, a dinâmica interativa instaurada pela produção
e circulação de textos em sala de aula foi descrita em suas
condições sociais de produção e registrada
nos distintos enunciados compartilhados entre os sujeitos que dela participaram.
No trabalho que ora apresento volto-me para alguns dados da pesquisa e
os analiso sob um outro ângulo: o da refração do texto
pela criança. Refração essa mediada pela história
singular de suas relações sociais e pelo lugar por ela ocupado
nessas relações.
Para essa análise, destaco episódios produzidos na prática
do reconto e na produção dela decorrente.
O que nos conta o reconto?
Para descrever o processo vivido e o modo como os dados foram produzidos,
apresento a seguir uma síntese do trabalho desenvolvido em sala
de aula.
Organizei o processo de ensino da língua centrando-o em três
práticas - a leitura de textos, a produção textual
e a análise lingüística – de acordo com a proposta
desenvolvida por Geraldi no livro “O texto na sala de aula”
(1997). Segundo o autor, a proposta assenta-se em uma concepção
que “situa a linguagem como o lugar de constituição
de relações sociais, onde os falantes se tornam sujeitos”
(p. 41).
Nessa perspectiva, a leitura de textos é entendida como um “processo
de interlocução entre leitor/texto/autor. O aluno-leitor
não é passivo, mas o agente que busca significações”
(Geraldi e Fonseca, 1997:107). A produção textual, por sua
vez, considera os alunos como produtores de textos, e não como
produtores de redação, porque não é apenas
uma pessoa na função “professor-escola” que
os lê e também porque um texto não é apenas
sobre alguma coisa, mas também uma produção verbal
de alguém dirigida sempre a outrem.(p.106).
A análise lingüística refere-se aos aspectos estruturais
da língua escrita que devem ser apropriados pela criança,
aspectos que cabem ao professor trabalhar durante o ano letivo com as
crianças. Como assinala Geraldi (1997), o essencial nessa prática
é “a substituição do trabalho com metalinguagem
pelo trabalho produtivo de correção e autocorreção
de textos produzidos pelos próprios alunos” (p.79).
Nesse contexto, considerando que a linguagem é uma atividade constitutiva
e o trabalho lingüístico não é nem um eterno
recomeçar nem um eterno repetir (Geraldi, 1996), recorri ao reconto
como uma das principais estratégias para a produção
textual que estaríamos realizando logo no início do ano.
Além da familiaridade das crianças com essa prática
– pois já a haviam vivenciado no ano anterior -, foram importantes
para sua escolha, o argumento de Geraldi (1997), segundo o qual ao propormos
o reconto evitamos o acúmulo de dificuldades que se colocam para
a criança frente às exigências de criar e de escrever.
E o argumento de Lajolo (1988), segundo o qual, “é o processo
de significação atualizado no texto escrito, tomado como
ponto de partida, que pode deflagrar o processo de significação
do texto a ser criado” (p.59-60). Ou seja, o processo de significação
que deflagra um novo texto nasce do encontro com outras produções
escritas e da própria leitura que a criança faz da vida,
ou seja, ao produzir um novo texto a criança coloca-se como autor,
um autor que não está diante só do enunciado do texto
lido, mas diante também de todos os outros enunciados que foram
compondo a sua história de leitor e de leitura. São essas
experiências que alimentam o conjunto de idéias e de possibilidades
temáticas para ela. É nessa interlocução que
ela amplia as possibilidades do que tem a dizer e dos modos de fazê-lo.
Dessa perspectiva, é possível afirmar que um texto não
existe sozinho, ele faz parte de uma cadeia de enunciados. Como um enunciado
está sempre em relação com outros enunciados, todo
enunciado é pleno de vozes, é polifônico. São
os vários enunciados que falam em nós.
Acreditando que é nesse encontro com outras obras e na nossa aproximação
com elas que vamos nos nutrindo de possibilidades e de diferentes formas
de dizer o que temos a dizer, apostei na interlocução estabelecida
na sala de aula, nas discussões das experiências de vida
e na leitura da obra “Guilherme Augusto Araújo Fernandes”
(1995), de Mem Fox, para instaurar a produção textual pautada
na proposta do reconto.
Guilherme Augusto Araújo Fernandes era um menino pequeno, que morava
ao lado de um asilo de idosos, todos seus amigos. Mas a pessoa de quem
ele mais gostava era Dona Antônia, porque tinha quatro nomes como
ele. Certo dia, ao ouvir seus pais conversando, soube que ela perdera
a memória. O menino quis saber o que isso significava e perguntou
ao pai. Não satisfeito, foi perguntar aos outros do asilo. Ouve
diferentes respostas, pois cada idoso atribuía um sentido diferente
ao conceito. Nesse jogo de significados e sentidos que se produzem o menino
escolhe objetos relacionados aos sentidos que ele produz sobre o que vem
a ser memória, monta uma cesta e vai levá-la a Antônia.
Ao receber cada um dos presentes 'maravilhosos', a idosa vai tendo uma
lembrança de seu passado. Assim, Dona Antônia recupera a
memória ajudada por um menino “que nem era tão velho
assim” (Fox, 1995).
Escolhi essa história porque, como professora, eu deveria trabalhar
no decorrer do ano letivo algumas marcas lingüísticas específicas
da narrativa, tais como: um verbo no imperfeito introduzindo a abertura
da história; o uso de expressões como “daí,
então, depois, um belo dia”, introduzindo a ação
propriamente dita, seção essencialmente narrativa; e fórmulas
de fechamento da história (Perroni, 1992) e os recursos lingüísticos
para a criação da expectativa, do conflito e do encadeamento
de ações, em um jogo de causa/efeito. (Siqueira, 1992).
Da mesma forma que os significados das palavras vão sendo elaborados
ativamente pelos sujeitos nas muitas relações em que eles
se confrontam com palavras novas e com situações em que
os sentidos dessas palavras são explicitados, também uma
série de convenções relativas à escrita vão
sendo elaboradas pelas crianças em suas relações
com elas. Nós, professoras, destacamos as marcas lingüísticas
específicas, informamo-las acerca das formas de utilização
e de sua função na organização textual, sugerimos
que elas se utilizem desses marcadores, utilizando-os, mediadas por nossas
intervenções, as crianças ativamente elaboram esses
usos.
Concordando com Lajolo (Idem), acredito que é nessa condição
que a leitura propicia o escrever bem. Pois como afirma ela, não
é o fato de ler um bom texto o que habilita o aluno a produzir
um bom texto. “A relação entre o ler e escrever talvez
seja mais forte do que o julgam os adeptos da teoria da criatividade e
mais tênue do que o acreditavam os discípulos da formação
do estilo pela imitação dos bons autores” (Destaques
da autora).
Nesta mesma perspectiva, Bakhtin (2003:279), afirma que
as obras [...] dos diferentes gêneros [...] a despeito
de toda a diferença entre elas e as réplicas do diálogo,
também são, pela própria natureza, unidades da comunicação
discursiva: também estão nitidamente delimitadas pela alternância
dos sujeitos do discurso, cabendo observar que essas fronteiras, ao conservarem
a sua precisão externa, adquirem um caráter interno graças
ao fato de que o sujeito do discurso – neste caso o autor de uma
obra – ai revela a sua individualidade no estilo, na visão
de mundo, em todos os elementos da idéia de sua obra. Essa marca
da individualidade, jacente na obra, é o que cria princípios
interiores específicos que a separam de outras obras a ela vinculadas
no processo de comunicação discursiva de um dado campo cultural:
das obras dos predecessores nas quais o autor se baseia, de outras obras
da mesma corrente, das obras das correntes hostis combatidas pelo autor,
etc.
O argumento de Lajolo no que diz respeito à intertextualidade
contribuiu também para a escolha do reconto, na medida que me interessava,
como professora, mediar a apreensão das relações
de significação entre textos.
Como professora, considerei, naquele momento, que a leitura, vivida em
diferentes condições de produção, poderia
ser o eixo condutor de minhas mediações junto às
crianças.
Em um primeiro momento, ao lerem a obra por mim escolhida para iniciarmos
o processo de produção textual, as crianças estariam,
no papel de leitoras, construindo, com o autor, a significação
do texto por ele escrito. Em seguida, ao recontarem esse mesmo texto,
estariam vivenciando com ele uma outra dimensão da leitura, em
que o processo de significação atualizado no texto escrito
estaria mediando o processo de significação do texto a ser
criado.
Posteriormente, ao ser lido por outros alunos e pela professora, o texto
criado tornar-se-ia, ele próprio, objeto de leitura e de produção
ativa de sua significação. A leitura dessa versão
seria mediada, por sua vez, pela leitura do original, que deflagrou sua
produção. Nesse jogo, não só o encontro entre
textos estaria sendo possibilitado aos alunos, como também a explicitação
de relações entre eles, que poderiam pautar os comentários
e as sugestões de possíveis revisões.
Nessa condição de leitura, diferentemente do autor da obra
lida, que estava distante - não era conhecido por seus leitores
e já era portador de toda uma legitimidade conferida pela publicação
- os alunos estariam em contato com um texto produzido por alguém
próximo, inclusive em termos das posições sociais
ocupadas, a quem poderiam se manifestar de modo mais direto e informal,
com a certeza de que seus comentários chegariam, de fato, até
o autor.
Ao voltar para as mãos de seus autores, os textos comentados instaurariam
uma outra condição de leitura. Os autores estariam re-encontrando
seus próprios textos na condição de leitores e essa
leitura estaria sendo mediada pelo original lido, pelos comentários
e sugestões registrados por seus colegas na condição
de seus leitores e por suas intenções discursivas.
No encontro com os comentários dos próprios colegas, as
crianças estariam experimentando o sentimento de autoria, uma vez
que no comentário do leitor sobre o texto produzido, a relação
entre aquele que escreve e aquele que lê se materializa, instaurando
o sujeito de autoria. Nesse sentido, estamos de acordo com Vygotsky e
com Bakhtin, quando dizem que o outro instaura o lugar de autoria na medida
em que propicia àquele que escreve a experiência de se reconhecer
como autor.
Como autores, os alunos também seriam convidados a revisar seus
textos, tendo em conta as muitas referências de leitura acima destacadas.
Mais do que solicitar que a criança olhasse para o próprio
texto na intenção de melhorá-lo, minha intenção
era a de caracterizar o momento da revisão como um espaço
de interlocução entre o autor e o leitor de seu texto, em
que se explicitassem as diferentes compreensões, sempre possíveis,
de um mesmo enunciado, pois “o ser, refletido no signo, não
apenas nele se reflete, mas também se refrata” (Bakhtin,
2002:46).
Assim, no decorrer da produção textual, cada criança
experimentaria a dimensão comunicativa da linguagem através
do desdobramento de suas relações com os textos –
leitor, autor, comentarista e autor - revisando o próprio texto.
Parece simples dizer que no processo de produção de textos
trabalhei com a leitura, com a produção e com a análise
da produção textual das crianças, o que implicou
leitura e produção novamente. Isso tudo de fato aconteceu,
porém, somente no percurso fui percebendo toda a complexidade das
relações envolvidas no processo de construção
de textos, entendendo, com Lajolo (1988), que o texto apenas existe quando
há o encontro entre dois sujeitos: o que escreve e o que lê.
Em meu encontro com as produções das crianças, procurei
tomar os textos das crianças como espaço de produção
de sentidos, muito mais do que como espaço de trabalho sobre a
linguagem (Geraldi, 2001:52).
Na tentativa de compreender melhor as diferentes significações
de enunciados presentes nos textos produzidos pelas crianças, agora
no lugar de autoras, recorri a Bakhtin (2003) em O autor e a personagem,
ensaio incluído no volume Estética da criação
verbal. Para ele nenhuma significação é isolável,
ou seja, o autor é parte integrante do objeto estético.
É esse autor-criador quem dá forma ao conteúdo, porém,
não é passivo a ele, o autor responde axiologicamente aos
enunciados daqueles que o rodeiam.
Fui percebendo que na proposta do reconto, apesar de a história
“já estar contada” e do fato de que os alunos não
precisariam criar, bastaria escrever -, o lugar de autoria ocupado pelas
crianças instaurava um complexo processo de transposições
da vida para a arte. O reconto nunca é um mero reflexo do texto
lido, uma vez que há sempre uma compreensão ativa-responsiva
daquele que lê. Ao recontar o texto lido anteriormente, a criança,
do lugar de autor, “que é aquele que tem o dom da fala refratada”
(Faraco, 2005:40), traz os signos do enunciado lido para junto dos significados
e sentidos que já têm elaborados recortando e reorganizando
tanto aspectos formais, como de conteúdo.
“O autor acentua cada particularidade da sua personagem, cada traço
seu, cada acontecimento e cada ato de sua vida, os seus pensamentos e
sentimentos, da mesma forma como na vida nós respondemos axiologicamente
a cada manifestação daqueles que nos rodeiam” (Bakhtin,
2003:03).
A singularidade de meus pequenos autores...
Mais do que estar atenta às palavras escritas, foi importante estar
atenta também às palavras ditas por meus alunos, palavras
estas que mediavam a produção escrita. Ao iniciarmos a o
processo de produção textual, Ale dirigiu-se a mim e disse:
“Tia, como eu posso começar?” Eu disse a ele que poderia
começar da forma como estava escrito no livro: “Era uma vez
um menino chamado Guilherme Augusto Araújo Fernandes e ele nem
era tão velho assim. Sua casa era ao lado de um asilo de velhos
e ele conhecia todo mundo que vivia lá” (Fox, 1995:05).
Ao se deparar com minha resposta, Ale se posicionou: “Ah não,
era uma vez é muito infantil, eu quero começar de outro
jeito”. Após trocarmos algumas idéias ele se dirigiu
para sua carteira e começou a escrever. Bastante curiosa, aproximei-me
dele e pedi para ler: “Havia um garoto chamado Guilherme Augusto
Araújo Fernandes que morava do lado de um pequeno asilo de velhos
onde ele conhecia todos os senhores e senhoras”. No caso de Ale
é interessante ressaltar que para ele, se Guilherme Augusto conhecia
todos os idosos que moravam no asilo, este asilo só poderia ser
pequeno.
Fer, ao escrever seu texto, percebendo que ao final o menino consegue
ajudar a idosa a recuperar a memória, explicita, já de início,
sua esperteza: “Era uma vez um menino chamado Guilherme Augusto
Araújo Fernandes, esse menino era muito esperto, Guilherme Augusto
morava do lado de um asilo cheio de velinhos, os que ele mais conversava,
que ele era bem amigo, eram só seis [...]” (sic).
Bia assume a condição de ser criança e enuncia: “Existe
um menino que se chamava Guilherme Augusto Araújo Fernandes, ele
brincava, corria, pulava, fazia de tudo que podia. Morava do lado de um
azilo, e conhecia muita gente de lá” (sic).
Ainda, com relação ao início do texto, por termos
realizado uma campanha de produtos de higiene para um lar de idosos na
cidade de Piracicaba, as crianças compreendiam que neste tipo de
instituição vivem vários idosos. Nesse sentido Ja
se coloca frente ao texto da seguinte maneira: “Havia um menino
que se chamava Guilherme Augusto Araújo Fernandes, ele morava perto
de um asilo de velhinhos com pessoas muito queridas por ele. Tinham muitos
velinhos. Ele gostava em especial de 6” (sic). Ao explicitar que
ele gostava especialmente de seis idosos, a aluna dá a ver os seis
interlocutores com os quais ele se relaciona na busca da elaboração
do sentido da palavra memória.
Le, uma aluna que tinha o hábito de ler diariamente escreveu: “Havia
um menino que morava em uma casa au lado de um asilo de vários
idosos. À propósito este menino chama Guilherme Augusto
Araújo Fernandes” (sic). Neste caso, o que se evidencia é
o uso de um marcador lingüístico que a aluna, provavelmente,
apreendeu em outras leituras realizadas, ou seja, os enunciados estão
sempre se colocando em relação a outros enunciados.
Cabe destacar que a grande maioria dos textos das crianças apresentou
contrapalavras exatamente no momento da narrativa em que o pai conversa
com a mãe sobre o fato de Dona Antônia ter perdido a memória.
É a partir deste momento que Guilherme Augusto inicia a busca pelo
significado da palavra memória.
“Um dia, Guilherme Augusto escutou sua mãe
e seu pai conversando sobre Dona Antônia.
- Coitada da velhinha – disse sua mãe.
- Por que ela é coitada? – perguntou Guilherme Augusto.
- Porque ela perdeu a memória – respondeu o pai.
- Também, não é para menos – disse sua mãe.
– Afinal, ela já tem noventa e seis anos.
- O que é uma memória? – perguntou Guilherme Augusto.
Ele vivia fazendo perguntas.
- É algo de que você se lembre – respondeu o pai.
Mas Guilherme Augusto queria saber mais; então ele procurou [todos
os outros idosos do asilo para perguntar: ‘O que é memória?’]”
(Fox, 1995:08-09).
Neste momento do diálogo a mãe tece um comentário
sobre o fato de Dona Antônia já estar bem velha, talvez esse
enunciado tenha sugerido aos meus alunos que ao reescreverem o texto,
na condição de autores, pudessem, também eles, tecerem
comentários a respeito do significado da velhice que cada um deles
vem elaborando nas muitas relações que estabelecem dentro
e fora da escola.
Chamou-me também a atenção o fato de que muitas dessas
contrapalavras estavam relacionadas a um momento que retrata o cotidiano
de uma criança: a conversa familiar, talvez na sala ou no quarto;
a entrada da criança no diálogo dos pais e os objetos que
têm guardados em seu quarto entre outros.
Com relação a essa passagem do texto, encontramos no texto
de Thi, o sentido que ele elabora quanto à condição
de Dona Antônia, para ele, não há porque ter pena
de uma velha que perde a memória: “Um dia seus pais, ou melhor,
os pais de Guilherme Augusto A. Fernandes, ele estavam na sala conversando
que dona Antonia era uma coitada porque ela perdeu a memória e
seu pai respondia Que coitada nada uma velha dessas. So que Guilherme
ouviu a conversa. E Guilherme queria saber o que era memória e
seu pai respondeu assim que nem quando tem que lembra alguma coisa e não
se lembra” (sic).
Diferentemente de Thi, Ama solidariza-se com a condição
da idosa e procura, de imediato, ajudá-la: “Um dia ouviu
seus pais comentando que Dona Antônia tinha perdido sua memória,
mas pensou, pensou o que podia fazer para a memória de Dona Antônia
voltar a funcionar. E foi lá perguntar para o seus amigos o que
era memória” (sic).
Ale apresenta uma explicação para o fato de Dona Antônia
ter perdido a memória: “Pobre senhora ela já esta
justa na idade de quando essas coisas começam – respondeu
a mãe – ela já ta na 3ª idade” (sic), ou
seja, para ele, o velho já está na idade de perder a memória.
No caso de Hel, é importante ressaltar que a aluna aproximou-se
da professora e enunciou: “Tia Cláudia, eu me lembro da história,
mas vou contar com as minhas palavras, vou contar do meu jeito, ta?”:
“Um dia Guilherme chegou em casa e seus pais estavam falando sobre
a dona Antônia.
- Coitadinha da dona Antonia – disse seu Pai.
- Mais ela já tem 96 amos, já era de se esperar que...
- Coitada porquê? – perguntou Guilherme, cortando sua mãe.
- Porque ela perdeu a memória” (sic).
A forma como Hel introduziu Guilherme Augusto no diálogo dos pais
mostrou-se bastante significativa, visto que era desta forma que a aluna
portava-se em sala de aula, raramente aguardava sua vez de falar.
Na história lida, depois de ouvir as respostas dos idosos sobre
o que era memória para cada um deles, o menino seleciona alguns
objetos para levar para Dona Antônia.
“Então, Guilherme Augusto voltou para casa,
para procurar memórias para Dona Antônia, já que ela
havia perdido as suas.
Ele procurou uma antiga caixa de sapato cheia de conchas, guardadas há
muito tempo, e colocou-as com cuidado numa cesta.
Ele achou a marionete, que sempre fizera todo mundo rir, e colocou-a na
cesta também.
Ele lembrou-se, com tristeza, da medalha que seu avô lhe tinha dado
e colocou-a delicadamente ao lado das conchas.
Depois achou sua bola de futebol, que para ele valia ouro; por fim, entrou
no galinheiro e pegou um ovo fresquinho, ainda quente, debaixo da galinha”
(Fox, 1995:16-21).
Nessa passagem a autora do livro não explicita
os locais nos quais estão guardados os objetos que Guilherme Augusto
pega para compor a cesta que levará para Dona Antônia, exceto
o local de onde ele pega o ovo.
Esli se coloca frente ao texto da seguinte maneira: “Guilherme encontrou
um ovo de galinha e lembrou do que a Sra Silvano tinha dito. Em seu quarto
encontrou uma marionete antiga e lembrou do que a Sra Mandala tinha falado.
Achou também uma bola de futebol que para ele valia ouro e lembrou
do que o Sr. Possante tinha falado. Estava cheretando seu armário
e achou uma caixa de sapatos antiga cheia de conchas e lembrou o que o
Sr Cervantes tinha dito” (sic).
Talvez Esli não tenha explicitado o local onde Guilherme Augusto
pegou o ovo devido ao fato de a autora já tê-lo feito. Agora,
no lugar de autoria, a criança explicita aos seus leitores os locais
em que o menino encontrou os outros objetos, pois, talvez, como leitora,
ela tenha sentido a ausências dessas informações no
texto. Normalmente as crianças guardam seus brinquedos e objetos
pessoais em seus quartos, em seus armários. Especificamente na
passagem em que o menino encontra a caixa de conchas, Esli sugere que,
talvez, por estar guardada ali há muito tempo, o menino a tivesse
esquecido e só a tenha encontrado por estar xeretando no armário.
Conclusões
Certamente, muitos outros indícios de refração poderiam
ser encontrados nestas e em outras produções. Ao olhar para
os textos produzidos a partir desta leitura fui percebendo que as crianças
reproduziram passagens da narrativa, porém, combinaram alguns de
seus elementos com outros sentidos que produziram a partir dela. A palavra,
como signo ideológico, não se colocou neutra, ela penetrou
nas relações dos indivíduos refletindo e refratando
a realidade em transformação (Bakhtin, 2002). Nesse sentido,
as crianças transformaram, em parte, personagens, cenário
e ações.
A atenção ao que nossos alunos querem nos dizer com/em seus
textos, às palavras que nos são ditas por eles e que mediam
suas produções escritas, permiterm-nos perceber que, as
escolhas e a direção impressas pela professora às
atividades de leitura e de escrita, marcadas por intenções
relativas ao processo de ensino, ressignificam-se durante a atividade
- de leitura e produção de texto, mediadas pela dinâmica
intersubjetiva em que se materializam, evidenciando que “toda enunciação,
mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma
coisa e é construída como tal. Não passa de um elo
da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas
que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações
ativas da compreensão” (Bakhtin, 2002:98).
No movimento da comunicação verbal, eu, professora, e meus
alunos, praticamos a leitura e a escrita nos seus contextos de utilização,
elaborando significados e sentidos do/no texto, fazendo-nos leitores e
escrevinhadores, pois estes, como assinala Nilma Lacerda (2003:228), “não
nascem feitos [...] mas se formam com trabalho e determinação”.
Bibliografia
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São
Paulo, Hucitec, 2002.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Martins Fontes,
2003.
FARACO, Carlos Alberto. “Autor e autoria”. In: BRAIT, Beth
(Org). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
FONTANA, Roseli Ap. C. e CRUZ, N. Psicologia e trabalho pedagógico.
São Paulo: Atual, 1997.
FONTANA, Roseli Ap. Cação. Mediação Pedagógica
na Sala de Aula. 3.ª ed. Campinas, São Paulo: Autores Associados,
2000.
FOX, Mem. Guilherme Augusto Araújo Fernandes. Ed. Brinque-Book,
1995.
GERALDI, João Wanderley. Linguagem e ensino: exercícios
de militância e divulgação. Campinas, SP:
Mercado das Letras – ALB, 1996.
_________, João Wanderley, (org). O Texto na Sala de Aula. São
Paulo: Ática, 1997.
_________, João Wanderley e FONSECA, Maria Nilma G. “O circuito
do livro e a escola”. In: GERALDI, João Wanderley, (Org).
O Texto na Sala de Aula. São Paulo: Ática, 1997.
_________, João Wanderley. “O professor como leitor do texto
do aluno”. In: MARTINS, Maria Helena (Org) Questões de Linguagem.
6ª ed. São Paulo: Contexto, 2001.
_________, João Wanderley. “Palavras escritas, indícios
de palavras ditas”. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v.
3, Número Especial, p. 09-25, 2003.
_________, João Wanderley. Portos de Passagem. 4ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
GÓES, M.C.R. de. A criança e a escrita: explorando a dimensão
reflexiva do ato de escrever. In: SMOLKA, Ana Luiza B. & GÓES,
Maria Cecilia de (Org). A Linguagem e o Outro no Espaço Escolar
– Vygotsky e a construção do conhecimento. 5ª
ed. São Paulo: Papirus, 1997.
GÓES, M.C.R. DE e SMOLKA, A.L.B. A Criança e a Linguagem
Escrita: considerações sobre a produção de
textos. In: ALENCAR, E.S. de. Novas Contribuições da Psicología
aos Processos de Ensino e Aprendizagem. 2ª ed. São Paulo:
Cortez, 1993.
LACERDA, Nilma G. “Os Peixes de Schopenhauer: Leitura e Classe Pensante”.
In: VIELLA, Maria dos Anjos L. (Org) Tempo e espaços de formação.
Chapecó: Argos, 2003.
LAJOLO, M. O texto não é pretexto. In: Zilberman, R. (Org.)
Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre,
Mercado Aberto, 1988, p. 51-62.
PERRONI, Maria Cecília. Desenvolvimento do discurso narrativo.
São Paulo: Martins Fontes, 1992.
SIQUEIRA, João Sayeg. Organização textual da narrativa.
1ª ed. São Paulo: Selinunte, 1992.
SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A criança na fase inicial da escrita
– A alfabetização como processo discursivo. Ed. Cortez,
1988.
VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente. São Paulo:
Martins Fontes, 1989.
VIGOTSKI, L.S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes,
2003.