Voltar    
  EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: ANÁLISES DAS CONCEPÇÕES DE LÍNGUA(GEM) E DE LEITURA DOS PROFESSORES DE PORTUGUÊS

Alda Maria do Nascimento Osório (UFMS)
Maria de Fátima Xavier da Anunciação de Almeida (UNIDERP)

 

1. Introdução

Este artigo evidenciará as concepções de língua(gem) e de leitura dos professores de Português da Educação de Jovens e Adultos, do 2º segmento, do Ensino Fundamental da Rede Pública de Ensino de Campo Grande/MS. Ele é resultado de uma pesquisa realizada durante o Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em 2002-2004, junto aos referidos professores.
Diante dos resultados do estudo, pudemos analisar quais os significados os docentes de Português da Educação de Jovens e Adultos atribuem à língua(gem) e à leitura. Assim, apresentaremos esses significados, partindo das falas desses professores, relacionando-as às principais concepções de linguagem e de leitura que atualmente vem sendo denominada de vertente sócio-histórica.

2. Os sentidos atribuídos à linguagem e à língua

A linguagem, de modo geral, pode ser entendida como o modo de cada ser humano comunicar sua fala verbal ou escrita. Somente o homem fala, portanto é sujeito falante. “Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem”. (BAKHTIN, 2003, p. 261). Neste sentido, ela é a mola mestra de face social e história que acompanha o homem em todos os cantos de sua vida, assim como em todas áreas do conhecimento.
Enquanto a linguagem é a língua sendo articulada, falada, ou seja, a língua em ação, por meio de um sujeito falante, a língua é o meio pelo o qual o homem sócio-histórico fala. É neste sentido um instrumento da ação humana de utilizar-se da fala em interação com o meio social, nos contextos de seu uso. Neste sentido, “A língua, no seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à vida.” (BAKHTIN, 1988, p. 96). Ela é parte constituinte da linguagem humana. Língua e linguagem são diferentes, entretanto é um “casal” perfeito da ação de sujeitos sócio-históricos.
Assim, iniciamos a nossa interpretação sobre os depoimentos dos professores de Português da Educação de Jovens e Adultos, alvo desta pesquisa, no intuito de responder as inquietações iniciais deste estudo, indagando: quais os sentidos atribuídos à linguagem e à língua estão presentes nas falas desses professores?
No momento da entrevista, na parte das questões abertas, perguntamos aos professores de Português da EJA, o que para eles era língua e linguagem. Então, por meio das suas respostas a esta questão pode-se saber quais os sentidos atribuídos à língua e a linguagem por esses professores.
Para a professora A, linguagem é “[...] tudo o que envolve o ato de se expressar. É... tudo o que eles se expressam através dos sentimentos. [...] tudo, tudo o que expressa a vida deles é linguagem”.
Mediante a resposta da professora A, verificamos que linguagem para a mesma é tudo o que envolve o ato de expressar os sentimentos e a vida dos alunos da EJA. A fala da professora A tende para o pensamento filosófico-lingüístico do subjetivismo idealista, conceitua linguagem como “os vosslerianos”, uma vez que a função expressiva é posta em primeiro plano. Neste sentido, “[...] sua essência se resume à expressão individual do falante.” (BAKHTIN, 2003, p. 272). Apesar de acrescentar que é expressão de vida dos alunos, a linguagem sendo “expressão de vida”, contém, ainda um caráter histórico e ideológico, pois
[...] em toda enunciação, por mais insignificante que seja, renova-se sem cessar essa síntese dialética viva entre o psíquico e o ideológico, entre a vida interior e a vida exterior. [...] Sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais. É assim que o psiquismo e a ideologia se impregnam mutuamente no processo único e objetivo das relações sociais. (BAKHTIN, 1988, p. 66).
Deste modo, a linguagem não somente expressa os sentimentos do sujeito, mas como enunciação (fala) e como palavra, expressa a vida social e histórica do falante, carregada de forças ideológicas e sociais, por isso ela não é neutra, representa os conflitos entre classes sociais diferentes, bem como interesses conflitantes de grupos sociais distintos. A linguagem vivida no “palco” da realidade social demonstra os antagonismos presentes numa dada estrutura social, entre grupos humanos de diferentes níveis sociais.
Distintamente do pensamento da professora A, a professora B entende que linguagem é “[...] a parte principal do ser humano. Porque através da linguagem, da comunicação, você consegue tudo o que você quer”. (Professora B).
Quando a professora B afirma que a linguagem é a parte principal do ser humano, é possível notar que a linguagem relaciona-se a um elemento biológico, pertencente ao corpo humano. A professora B deixou de considerar, outros componentes imprescindíveis da linguagem: os elementos sociais, ideológicos e históricos. Como enfatiza Bakhtin (1988, p. 109, grifo do autor), “[...] a enunciação [ato de fala], não pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de natureza social.”
Entretanto, a professora B reafirma que sendo a parte principal do ser humano através da linguagem, da comunicação se consegue tudo o que quer. Surge, então, algumas interrogações: será que se consegue tudo o que se quer somente pelo uso da linguagem? A professora não está sendo ousada ou idealista em acreditar que a linguagem tem esse “poder mágico” de possibilitar “tudo” o que o indivíduo quer?
Conceituando a linguagem como o “poder mágico” de possibilitar “tudo” o que quisermos a professora B desconhece que a linguagem, sozinha, não tem poderes para modificar uma estrutura social. Aparece nesse conceito de linguagem a visão de que “[...] a educação [a linguagem é] um instrumento de equalização social, portanto de superação da marginalidade”. (SAVIANI, 1995, p. 15). Então, na fala da professora B, percebemos uma concepção idealista de linguagem, uma vez que ela considera que a linguagem sozinha pode como confirma a professora em outra fala: “[...] independentes das séries, da classe social, da idade e tudo mais [...] independendo da faixa de idade, vai haver uma melhora na linguagem dele que vai, com certeza, melhorar o padrão de vida deles, também”.
A apropriação da linguagem correta, se é que existe uma linguagem correta e sim uma linguagem mais prestigiada socialmente, não nos garante vida melhor socialmente, pode nos ajudar a ter uma vida melhor, mas isso não é regra geral, uma vez que “[...] a escola é determinada socialmente; a sociedade em que vivemos, fundada no modo de produção capitalista, é dividida em classes com interesses opostos; portanto a escola sofre determinação do conflito de interesses que caracteriza a sociedade.” (SAVIANI, 1995, p. 41).
A professora B, ainda, pensa que a linguagem pode libertar o aluno de sua condição social, mostrando que este conceito está dissociado de uma visão maior que envolve todo ato educativo, a questão de classe social e do poder. A linguagem por si só não pode transformar a condição social do sujeito (aluno), ela pode, caso o aluno estude profundamente e apreenda os modos de uma linguagem valorizada socialmente, levá-lo a condição de sujeito letrado, mas não garantem, absolutamente, a melhoria de padrão de vida de todos os alunos. Podemos dizer ainda, que a professora B tem o que Freire (2003, p. 158) “[...] um certo otimismo ingênuo”, por pensar que por meio da linguagem, do ensino, o aluno pode melhorar o padrão de vida.
Diferentemente das professoras A e B, a professora C tem a idéia de que a linguagem é:

[...] a forma do ser humano, [...] se comunicar, tanto através da fala como através da escrita. E que é essencial [...], é uma forma. É importante [...] é um processo bem interessante de estar trabalhando tal, muito rico. Tem muita coisa pra se trabalhar dentro da linguagem. [...] ela é essencial.

Na fala da professora C explicita-se a linguagem como um conceito dicionarizado, segundo o qual a linguagem é a capacidade humana de se comunicar tanto por meio da fala como da escrita. Entretanto, é importante compreender que os conceitos de linguagem vão mais além, necessita-se, entendê-la num contexto sócio-histórico. Como preceitua Franchi, (apud LARA e DANIEL, 2000, p. 86), a linguagem é:

[...] uma atividade humana, histórica e social. Nessa atividade se constituem:
- o conjunto estruturado e sistemático dos recursos expressivos da língua de uma comunidade;
- o sistema cultural, antropológico, de representação da realidade em que as expressões da língua podem ser interpretadas;
- os meios lingüísticos que permitem situar essas expressões no contexto real em que são produzidas. A linguagem é um trabalho construtivo, um processo coletivo de que resulta, em uma longa história, o sistema lingüístico e comunicativo utilizado em uma comunidade: uma língua, por exemplo, como o português.

Então, a linguagem não apenas é uma forma de comunicação, mas é um trabalho construtivo, coletivo, a qual possibilita que os sujeitos se constituam enquanto sujeitos numa dada realidade histórico-social.
Para a professora D, a linguagem possui outro sentido, como

[...] ter noções, entendimento do que você está escrevendo, falando. Tentando escrever e um pouco de criatividade. É trabalhar o pouco que você sabe ou o muito que você sabe no contexto, conseguindo ter clareza para o leitor, clareza para você mesmo. Criando textos cada vez mais bonitos, mais expressivos, informativos.

Assim, para a mesma professora a linguagem é entender o que se escreve e o que se fala. É tentar escrever, é ter criatividade. É criar textos bonitos, expressivos e informativos. Há neste conceito, o equacionamento do aspecto social e histórico da linguagem. “[...] a unicidade do meio social e a do contexto social imediato são condições absolutamente indispensáveis para que o complexo físico-psíquico-fisiológico [...] possa ser vinculado à língua, à fala, possa tornar-se um fato de linguagem”. (BAKHTIN, 1988, p. 71-72, grifo do autor).
Os significados atribuídos pelo professor E à linguagem aparecem como:

[...] é um assunto amplo, que pode ser linguagem verbal e não verbal. São signos, [...] a linguagem. [...] pode ser uma linguagem de autdoor, por exemplo, uma fotografia é uma linguagem. É um texto que é produzido. [...] ela é um conteúdo muito abrangente. São formas de comunicação no meio em que a gente vive.

Chama-nos a atenção o conceito do professor E que não difere muito dos conceitos iniciais das professoras C e D, quando mencionam os aspectos da linguagem como verbal e não-verbal, falada ou escrita. Para ele, a linguagem é um texto, possui um conteúdo abrangente. E finaliza dizendo que a linguagem “[...] são formas de comunicação no meio em que a gente vive.”
Esta significação da linguagem como “formas de comunicação” no meio social necessita ser ampliada, pois a linguagem além de ser uma forma de comunicação entre os indivíduos em um contexto social, é histórica, construtiva, por isso dinâmica, viva. Ela traz em seu bojo um componente ideológico. Como salienta Bakhtin (1988, p. 95). “[...] a forma lingüística [...] sempre se apresenta aos locutores no contexto de enunciações precisas, o que implica sempre um contexto ideológico preciso.”
Neste sentido, a linguagem enquanto enunciação, para Bakhtin (1988), tem um sentido ideológico e vivencial, por isso é sempre social e histórica, portanto, permeada de conflitos que demonstram os interesses de diferentes classes sociais.
As professoras F e G dão respostas semelhantes ao conceberem a linguagem como dialetos regionalizados, variações lingüísticas. Entretanto, a professora G traz outros significados à linguagem, que mostro mais adiante. Para a professora F, a linguagem é:

[...] a forma com que as pessoas falam, assim, nas diversas camadas da sociedade ou nas regiões. Por exemplo, o nordestino fala de uma maneira, a pessoa do Sul fala de outra, nós aqui na nossa região, falamos de outra. São essas diferenças lingüísticas que existem dentro de um mesmo país, dentro de um mesmo idioma.

E a professora G, entende a linguagem como:

[...] cada pessoa tem a sua linguagem [...]. Tipo, assim, o meio em que ele está inserido. Ele tem o seu tipo de linguagem. Então ele fala a língua que ele está. Tipo gaúcho que usa muito “tu” [...]. Na novela das oito, está tendo aquele garoto que tem o sotaque gaúcho. Eu acho também é uma forma de linguagem porque, não que ele fale errado, mas na parte de região. São os dialetos, é. Então, aí são vários tipos de linguagem, acredito. E essa aqui que eu falo daqui do nosso meio. É essa linguagem de sair da norma culta. A linguagem deles, os palavrões, as gírias. Não sei se eu estou certa.

Tanto a professora F quanto a professora G entendem a linguagem como o falar individual, ou regionalizado de um dialeto, ou que a linguagem se compara às variações lingüísticas. Entretanto, esse conceito de linguagem necessita ser complementado, pois a existência de variedades lingüísticas “[...] não se dá no vácuo, mas no contexto das relações sociais estabelecidas pela estrutura sociopolítica de cada comunidade. Na realidade lingüística em uso, que reflete a hierarquia dos grupos sociais.” (ALKMIM, 2003, p. 39).
O interessante da visão dessas professoras sobre a linguagem como o falar lingüístico cotidiano, faz-me inferir que as mesmas valorizam as variedades lingüísticas consideradas desprivilegiadas, uma vez que em nossa sociedade, normalmente há valorização de uma variedade lingüística padrão, a variedade dos grupos que detém o poder socialmente.
Ao perguntar para a professora H o que é linguagem, ela limitou a sua resposta, pois não conseguiu falar sobre tal tema, apenas concedeu-me uma pequena resposta escrita. Como aparece a seguir: “É colocar em prática o ler, o falar, o ouvir”.
Ao se referir à linguagem como a prática do ler, do falar e do ouvir, a mesma professora restringe-a, pois a linguagem como ação humana construtiva e coletiva, manifestação simbólica e sócio-histórica da língua falada ou escrita, ocorre numa sociedade situada historicamente, marcada pelas relações de poder e, portanto, explicita os conflitos ideológicos presentes na mesma sociedade.
Enfim, é nítido nas falas dos professores A, B, C, D, E, F, G e H conceitos de linguagem como um objeto distanciado da realidade social e histórica. No entanto, Linguagem e sociedade estão ligadas entre si de modo inquestionável. Mais do que isso, “[...] essa relação é a base da constituição do ser humano. A história da humanidade é a história de seres organizados em sociedades e detentores de um sistema de comunicação oral, ou seja, de uma língua.” (ALKMIM, 2003, p. 21).
Quando perguntamos às professoras A e B o que é língua, percebemos, pelos “silêncios manifestos” em suas falas, marcados pelas reticências, uma certa dificuldade em apresentar seus entendimentos sobre língua. Como é possível observar, os conceitos de língua são múltiplos, talvez, por isso, as professoras, também, silenciaram ao responder a pergunta realizada. A professora A assinala que língua é, “[...] ... é...,como eu posso falar para você... É...a..., como se fosse um idioma de uma nação. É o dialeto. [...] a língua é o modo de expressar de uma... de uma região, uma comunidade”.
Assim, para a professora A, língua é um idioma de uma nação. É o modo de expressar de uma comunidade. Um dos conceitos da lingüística apontados pelos autores Dubois, Giacomo, Guespin, Marcellesi, Mevel (1973), para diferenciar língua de linguagem, é que a língua é um objeto de comunicação, de signos vocais próprios de uma mesma comunidade. Tendo um sistema específico para a língua falada e escrita. Analisando a fala da professora A, vimos semelhança entre o que ela entende por língua e aqueles autores. O conceito de língua para a mesma professora é aquele dicionarizado, pois língua é um idioma de uma comunidade, de uma nação. Todavia, os sentidos de língua podem ser ampliados. Dentro de uma visão sócio-histórica, língua não é apenas o código, ou o idioma de falantes ou escreventes de uma mesma região. Ela não possui somente o significado do dicionário.
Para a professora B, língua é “[...] a parte determinante de alguma coisa [...] seja uma parte importante que você tem é que adaptar ela de acordo com, com seu momento [...]”.
Na verdade, na fala da professora B, não aparece um conceito explícito de língua. A mesma professora não tem um conceito de língua ainda definido. Ao demonstrar que ainda não tem clareza do que seja a língua, a mesma professora pode ter dificuldade para desenvolver uma prática pedagógica mais segura e eficiente, pois desconhecendo os conceitos de língua como vai planejar suas aulas quando tratar do conteúdo de Português? Isso se configura como um trabalho empírico, pois demonstra que, a sua ação pedagógica está dissociada de um amparo teórico-metodológico consciente.
Já os depoimentos dos professores C, D, E, F, G e H não estão marcados por essas pausas na linguagem, o que nos fazem realizar outras leituras deles.
A fala da professora D é semelhante à da professora A quando esta afirma que a língua é um idioma, “[...] é um pouco de mistura da linguagem com idioma, com a sua maneira de ver, a sua língua pátria. A maneira que você enxerga mesmo o seu falar. [...] é a união das letras, das palavras, das sílabas, dos fonemas, da sua língua materna”.
Aparece na fala da professora D, língua como mistura de um idioma com a maneira de falar, de enxergar o falar. Ainda, a língua é a união de letras, palavras, sílabas, fonemas da língua materna. Sendo a língua conforme este último significado presente na fala da mesma professora, a língua torna-se um amontoado de seqüências estáticas de letras, palavras, sílabas, fonemas sem nenhuma relação com o contexto social e histórico. Todavia é necessário entender que a língua encontra-se num

[...] processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal [...] somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar.
A língua, como sistema de formas que remetem a uma norma, não passa de uma abstração [...]. Esse sistema não pode servir de base para a compreensão e explicação dos fatos lingüísticos enquanto fatos vivos e em evolução. Ao contrário, ele nos distancia da realidade evolutiva e viva da língua e suas funções sociais [...].
[...] a língua é um fenômeno puramente histórico. (BAKHTIN, 1988, p. 108-109).

Deste modo, a língua como enunciação (ato da fala), de acordo com Bakhtin (1988), é social, dinâmica, pois é utilizada pelos falantes, praticantes de uma linguagem viva, possibilitando a constituição da consciência dos sujeitos, logo constitui sujeitos numa data realidade social e histórica, considerando, ainda, que “[...] toda a evolução da língua está ligada à evolução ideológica.” (BAKHTIN, 1988, p. 122). E, finalmente, o verdadeiro objetivo da língua, enquanto fenômeno social, é a “[...] interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.” (BAKHTIN, 1988, p. 123, grifo do autor).
Para a professora C, a língua é “A forma do ser humano tá se comunicando [...]. Também é uma forma onde a gente pode trabalhar muita coisa. Uma forma rica, essencial, também. Sem ela não teria como fazer nada”.
É possível observar na fala da professora C a língua como a forma para os sujeitos se comunicarem, podendo ser trabalhada. A língua é essencial, pois sem a mesma não se pode fazer nada. Realmente, por meio da língua os indivíduos se comunicam, mas, além disso, a língua serve para a interlocução entre sujeitos histórico-sociais. Ela é “[...] uma atividade que constitui os sujeitos e é constituída por eles ininterruptamente, tendo em vista necessariamente sua historicidade – isto é, sua relação com um contexto socioideológico, com suas condições de produção [...].” (MENDONÇA, 2001, p. 244).
Seguindo, em parte, um conceito de língua dicionarizado, o professor E, entende língua como:

[...] a língua falada e a língua escrita. [...] A língua, ela restringe, ela é uma pequena parte da linguagem. Seria uma pequena porcentagem dessa famosa linguagem. [...] a língua escrita é uma língua falada. Isto também se restringe a língua. [...] é um diminuir. Parece que a linguagem é mais geral. A língua é mais específica do meu ponto de vista.

Para o mesmo professor a língua é mais restrita à linguagem. No que está correto. O professor E afirma que a língua escrita é uma língua falada. Nesta afirmação o mesmo professor faz-nos lembrar dos conceitos de Bakhtin a esse respeito. Quando Bakhtin salienta que “O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento da comunicação verbal.” (BAKHTIN, 1988, p. 123). Não se pode esquecer que o ato da fala em forma de língua escrita está situado em um contexto sócio-histórico-ideológico.
A professora H responde semelhantemente ao professor E, quando este enfatiza que a língua é a escrita ou a falada, e escreve: “Manifestações da escrita e da fala. Manifestações de inúmeras mensagens (signos)”.
Notamos na fala da professora H a omissão da língua enquanto um sistema lingüístico inseparável de uma sociedade. Segundo Benveniste citado por Alkmim (2001, p. 26), “[...] a linguagem sempre se realiza dentro de uma língua, de uma estrutura lingüística definida e particular, inseparável de uma sociedade definida e particular”.
Observamos, também, uma semelhança no modo de conceituar a língua nas falas da professora F e da professora G. Para a primeira,

Língua é o padrão oficial. Por exemplo, o Brasil, Língua Portuguesa. Existe um padrão oficial que nós devemos seguir, gramaticalmente correto, que é nossa missão de ensinar e tal. Diferente da linguagem que seria a forma mais é, do dia-dia [...]. [...] espontânea de se falar. A língua é mais padronizada segundo as normas.

Para a segunda, “A língua [...] é a empregada na gramática, na norma culta, tipo a Língua Portuguesa [...]. Ela tem que ser usada dessa forma. Essa é a maneira correta. [...] cada país tem a sua língua”.
Tanto a professora F quanto a professora G entendem a língua como o padrão oficial e correto empregado no Brasil, ou seja, a língua oficial, a Língua Portuguesa. Uma norma culta que deve ser empregada por falantes brasileiros. Essa norma é a correta e deve ser ensinada na escola. Esses significados atribuídos à língua pelas professoras estão desvinculadas das atuais contribuições dos estudos lingüísticos, ou seja, dos estudos sociolingüísticos sobre a língua(gem). As professoras têm um conceito bastante convencional da língua. Aquele em que a língua é um sistema de formas abstrata, desconexa da realidade sócio-histórico-ideológica de um falante.

A língua, como sistema de formas que remetem a uma norma, não passa de uma abstração, que só pode ser demonstrada no plano teórico e prático do ponto de vista do deciframento de uma língua morta e do seu ensino. Esse sistema não pode servir de base para a compreensão e explicação dos fatos lingüísticos enquanto fatos vivos e em evolução. Ao contrário, ele nos distancia da realidade evolutiva e viva da língua e de suas funções sociais [...]. (BAKHTIN, 1988, p. 108).

As professoras F e G ao conceituarem a língua como forma gramatical correta em que os falantes têm que apreendê-la para expressarem-se corretamente, correm o risco de considerar a língua apenas como um código de normas abstratas, sem vínculo com o contexto sócio-histórico-ideológico. E, também, como enfatiza Alkmim (2001, p. 40):

A variedade padrão de uma comunidade – também chamada norma culta, ou língua culta – não é, como o senso comum faz crer, a língua por excelência, a língua original, posta em circulação, da qual os falantes se apropriam como podem ou são capazes. O que chamamos de variedade padrão é o resultado de uma atitude social ante a língua, que se traduz, de um lado, pela seleção de um dos modos de falar entre os vários existentes na comunidade e, de outro, pelo estabelecimento de um conjunto de normas que definem o modo “correto” de falar. Tradicionalmente, o melhor modo de falar e as regras do bom uso correspondem aos hábitos lingüísticos dos grupos dominantes.

Se os professores de Português da EJA não tiverem clareza das concepções de língua(gem), como eles poderão responder o “para quê” ensinar Língua Portuguesa? Como constata Geraldi (1984, p. 42, grifo do autor): “[...] no caso do ensino de língua portuguesa, uma resposta ao “para quê?”envolve tanto uma “concepção de linguagem” quanto uma postura relativamente à educação.”
Diante disso surge uma questão: por que será que os professores A, B, C, D, E, F, G e H ainda não se apropriaram de concepção de língua(gem) de acordo com as teorias lingüísticas contemporâneas, as quais dão ênfase à relação entre língua(gem) e sociedade para melhorarem suas práticas pedagógicas?
Analisando os quadros que apontaram o perfil de cada professor, assim como partindo de um referencial sócio-histórico de língua(gem), vamos tentar entender por que isso ocorre.
O acadêmico ao concluir um curso superior de Letras é capaz, no mínimo, de saber o que é linguagem. Entretanto, muitas vezes, o que é apreendido nos cursos de Letras pode não ter sido o suficiente para que esse futuro professor pudesse ter clareza da importância de saber o que é linguagem, o que é língua, e ter maior segurança, e, por conseguinte, desenvolver um trabalho com maior qualidade junto aos seus alunos. E ainda, pode ser que desconheça a multiplicidade de conceitos de linguagem e língua, bem como que os conceitos são provisórios, históricos, pois eles se transformam conforme a evolução do conhecimento científico.
Todo o processo de apropriação do conhecimento pelo qual passamos é um “continuum”, e também, são conhecimentos ou conceitos históricos sociais e ideológicos presentes nas ciências sociais, ou especificamente, dentro da Educação, Sociologia, Filosofia, Psicologia, Lingüística, que versam sobre a língua(gem), etc. Neste sentido, a apropriação de conhecimentos sobre a língua(gem) não é algo pronto, acabado, mas ocorre num processo dinâmico.
Enfim, verificamos que a formação obtida na graduação não garantiu a esses professores a apropriação das concepções de língua e linguagem sistematizados pela Lingüística, apesar das novas contribuições e dos estudos desta área. Demonstrando que a apropriação do conhecimento é um processo longo e complexo, permeado por vários fatores: sociais, econômicos, históricos, ideológicos, simbólicos e até imaginários, e por isso precisam ser analisados com bastante cuidado. Caberia uma outra pesquisa para analisar, mais detalhadamente, estes aspectos.

3. Os sentidos da leitura e as concepções teórico-metodológicas

A leitura como ato de ler é apenas um conceito dicionarizado, mas é preciso pensá-la num significado além do dicionário. Leitura como linguagem sendo praticada, vivida numa relação dialógica entre texto e leitor, envolve atribuição de significados, compreensão e interpretação. Ela não está dissociada de uma realidade social, histórica e ideológica, pois, quando o leitor lê um texto, ou dialoga com o texto, atribui-lhe sentidos múltiplos levando em conta o seu lugar social de sujeito-leitor, bem como os sentidos atribuídos ao lido, que na maioria das vezes expressam os antagonismos de uma sociedade dividida em classes sociais e o poder de um grupo social sobre outros grupos.
O ato de ler não envolve somente decodificar palavras vazias de sentidos, mas é a “leitura de mundo”. Ler não se encerra “[...] na leitura da palavra porque [...] acho que ela não se dá, em termos profundos, sem a leitura do mundo.” (FREIRE apud BARZOTTO, 1999, p. 21).
Leitura, ainda, é uma questão pedagógica, social e lingüística. É pedagógica, pois pode ser ensinada por meio da educação escolar. É social, pois ao ler o homem não está isolado dos determinantes sociais. É lingüística porque envolve a ação humana ao utilizar-se da linguagem.
Ao tematizar a leitura como um dos objetos deste estudo, pretendemos mostrar quais as concepções teórico-metodológicas que estão presentes nas falas dos professores de Português da EJA, sujeitos colaboradores deste estudo, relacionados à leitura, ao ensino de leitura.
Para pensar no ensino de leitura da EJA, o professor necessita amparar-se em conceitos teóricos voltados ao próprio ato de ensinar, bem como se basear em concepções de linguagem, que por sua vez, refletirão nos seus conceitos de leitura. Esta tese fica evidente quando Geraldi (1984, p. 80-81, grifo nosso), expõe sua idéia:

Como coadunar esta concepção de leitura com atividades de aula, sem cair no processo de simulação de leituras? Não me parece que a resposta seja simples. Se fosse assim, não haveria tantos encontros de professores, tantos textos que tematizam a própria leitura. Qualquer que seja a resposta, no entanto, estará lastreada numa concepção de linguagem, já que toda a metodologia de ensino articula uma opção política – que envolve uma teoria de compreensão e interpretação da realidade [...].

Concordamos com Geraldi, pois além do professor buscar amparar-se em uma concepção de linguagem, ao trabalhar com o ensino de leitura, necessita basear-se em concepções de educação e educação escolar, que logicamente, envolverá uma teoria de compreensão e interpretação da realidade.
Para encontrar algumas respostas às nossas indagações, perguntamos aos professores participantes da pesquisa o que era leitura e em quais teorias de leitura eles se baseavam para trabalhá-la junto aos seus alunos. As respostas as duas questões que fizemos aos professores nos possibilitou verificar quais os referenciais teórico-metodológicos de leitura estão presentes em suas falas.
A professora A concebe leitura como sendo “[...] tudo, tudo, até autdoor que a gente vê na rua [...], quando a criança tá aprendendo a ler a primeira coisa que ela gosta de [...] mostrar”.
Na resposta da professora A, aparece o seu desconhecimento sobre a amplitude dos conceitos de leitura, apesar dela reconhecer quando afirma que a leitura é “até de autdoor”, ou seja, a leitura não é somente da escrita em um livro, pode ser também a leitura de um autdoor. A leitura pode receber múltiplos sentidos, é atribuição de significados do leitor ao texto, é ainda, compreensão e interpretação do lido. Ao compreender e interpretar um texto, o leitor está sujeito às “[...] determinações de natureza histórica, social, lingüística, ideológica [...]” (ORLANDI, 1993, p. 12). Neste sentido, ao ler um texto, o leitor está condicionado aos modos de ler de seu tempo histórico e social, portando quando interpreta um texto, necessariamente, entra aí a ideologia posta em sua época histórica.
Ler é a leitura da “palavramundo”, pois o ato de ler não é simples decodificação do lido, mas é interpretar o próprio mundo através dos textos. A leitura não é um ato mecânico, mas significativo, por isso necessita estar contextualizada à realidade sócio-histórica dos sujeitos. Deste modo, o contexto significa, ao mesmo tempo, “[...] o contexto do escritor e do leitor [...].” (FREIRE apud BARZOTTO, 1999, p. 20). Leitura, ainda, numa realidade sócio-histórica é a própria linguagem sendo praticada e transformando a consciência do homem, portanto, o ato de ler mostra sujeitos reais se constituindo enquanto sujeitos.
Por desconhecer que há conceitos múltiplos de leitura, a professora A, também, mostra em sua fala não saber sobre as teorias de leitura, quando assinala que: “[...] olha se eu te falar que eu nem sabia que tinha teoria pra leitura! E olha que eu fiz a pesquisa de projeto da faculdade com a leitura.[...] eu nunca me apoiei em teoria pra leitura, não.[...] nunca me toquei, assim, pra teoria de leitura”.
A professora A em sua fala demonstra coragem e honestidade, pois admite nunca ter se apoiado em teoria para trabalhar com a leitura em sala de aula. Deste modo, fica explícito em sua resposta, o seu desconhecimento de teorias de leitura. Constatamos que não é culpa da professora A não saber teorias de leitura. Seu curso de graduação, bem como algumas capacitações as quais participou não foram suficientes para que a professora A pudesse ter clareza sobre as teorias de leitura.
Cabe salientar, agora, já que estamos abordando as teorias de leitura, a importância das concepções de educação escolar e de linguagem como pontos de ancoragem para as concepções de leitura. Esta relação entre concepções de educação escolar (ensino), linguagem e leitura não é algo simples, entretanto, entendemos que para ter uma prática pedagógica de qualidade o professor de língua materna necessita buscar relacionar esses conhecimentos.
Na perspectiva sócio-histórica o ensino é entendido como interação social, histórica, portanto, dialética entre o homem e a realidade social que ele vive. Assim, a linguagem é viva, dinâmica, não abstrata, transforma a consciência do sujeito, portanto constitui o sujeito. A linguagem é ação humana permeada pelos condicionantes sociais. Ela demonstra os conflitos existentes em uma sociedade dividida em classes sociais, neste sentido ela reflete e retrata a ideologia de determinados grupos sociais que estão no poder, portanto a linguagem não é neutra.
A leitura nesta tendência é dialógica, pois há um diálogo entre texto e leitor. O leitor é sujeito ativo, por isso atribui sentido ao lido, bem como é influenciado pelo lido. O ato de ler é, também, social, histórico e ideológico, uma vez que o sujeito ao ler, lê de um lugar social, por isso histórico, influenciado pela ideologia de seu tempo. E ainda, a leitura é a própria linguagem em ação, quando o sujeito lê o texto ou faz a leitura de mundo vai atribuindo-lhes significados, compreendendo e interpretando, constituindo-se em sujeito mais crítico e autônomo.
A professora A está amparando a sua prática pedagógica ao trabalhar com a leitura, e a linguagem, no empirismo, ou seja, somente em experiências cotidianas de sala de aula, sem a preocupação com o conhecimento teórico.
Para a professora B leitura é “[...] a coisa básica [...] porque através da leitura você abre horizontes. [...] quanto mais você lê, mas você aprende”.
Aparece na fala da professora B leitura como sendo “coisa básica”, abertura de horizontes e como aprendizagem. Ao ter a idéia de leitura como “coisa” a mesma professora dá a entender que a leitura, conduz a novas aprendizagens. A leitura pode ser fonte de novas aprendizagens, e numa perspectiva sócio-histórica, o ato de ler além de envolver a aprendizagem cognitiva, caracteriza-se pela “[...] relação racional entre o indivíduo e o mundo que o cerca.” (ZILBERMAN, 1999, p. 40).
Neste sentido, ao ler o sujeito não está distanciado de sua realidade sócio-histórica, tampouco, da objetividade (racionalidade) que envolve o ato de ler, mas não se pode esquecer do elemento subjetivo no ato de ler, quando o leitor atribui significados ao lido por meio de sua teoria de mundo. Teoria esta, que é construída a partir de suas relações sociais com outros sujeitos.
Perguntamos, também, à professora B em quais teorias ela se fundamenta para trabalhar com a leitura junto aos alunos da EJA. Conforme a professora, “Eu trabalho mesmo com textos. [...] são vários textos. É, não tem uma teoria, assim, sabe. [...] E com eles têm que ser muito na prática. Então, não tem como pegar uma teoria e jo..., e pôr para eles. Então, com eles têm que ser muito na prática mesmo”.
O depoimento da professora B converge com a fala da professora A, pois ambas, desconhecem a existência de teorias que apóiam a prática pedagógica voltada à leitura. Contudo, a professora B traz um novo dado, o qual não aparece na fala da professora A, em relação a ação docente e o conhecimento teórico ela afirma que: “É, não tem uma teoria, assim, sabe. Eu sou mais prática. E com eles têm que ser muito na prática. Então, não tem como pegar uma teoria [...] e pôr pra eles. Então, com eles têm que ser muito na prática mesmo”. (PROFESSORA B).
Deste modo, percebemos que a professora B desconhece o que é uma teoria, por conseguinte, não sabe como se apropriar dela para amparar sua prática docente. Pela fala da professora B observamos que a professora, também, trabalha apoiada no senso comum, empiricamente, desvinculando teoria e prática ao abordar a leitura em sala de aula.
Nos depoimentos da professora C e da professora G, a leitura aparece como essencial e possibilitadora de proporcionar o bem escrever. Para a professora C, a leitura é: “[...] necessária, porque sem a leitura não tem como o aluno escrever bem. Ele precisa tá lendo sempre pra poder escrever bem, pra poder desenvolver bem a linguagem. Pra ter uma perfeição maior na língua. Então, a leitura também, é muito essencial”.
Semelhantemente, para a professora G,

Leitura [...] é o essencial. [...] a partir do momento que o aluno tem a leitura, [...] ele não vai ter muita dificuldade. Eu falo que se ele lê, ele vai escrever bem.
Então, se você ler, você está a par para estar conversando qualquer assunto. Você é uma pessoa atualizada. [...] a leitura é fundamental.

Tanto a professora C quanto a professora G consideram a leitura como algo necessário para que o aluno escreva bem e, por conseguinte, desenvolva sua linguagem. Assim, as professoras citadas relacionam leitura à escrita, mas a leitura não está ligada apenas à escrita, a ler o escrito.“A leitura não é um ato que se dá apenas pelo domínio alfabético. Trata-se de uma ação dotada de profundo sentido social – participação, criação, construção.” (MELO, 1999, p. 77, grifo do autor). Assim, o ato de ler não é apenas a decodificação da palavra escrita, é “ler o mundo”, o que está além do escrito. E a leitura tem um sentido social, pois ao ler o leitor não está isolado da realidade social no qual vive, bem como há sentidos produzidos ao ler, que são construídos historicamente, marcados por uma ideologia.
Perguntando às professoras C e G sobre em quais teorias elas se baseiam para trabalhar com a leitura junto aos alunos da EJA, a professora C respondeu que: “[...] leio bastante PCN, diretrizes. Lá tem as formas que você deve trabalhar com cada faixa etária e também tem [...] as diretrizes, PCN voltados pra EJA”.
A resposta da professora C mostra que ela se restringe a ler os PCN e diretrizes da EJA. Não que essa prática esteja incorreta, mas a mesma professora poderia buscar outras leituras, outros autores que estudam a leitura sob os enfoques psicolingüísticos, sociolingüísticos, da Análise do Discurso, etc. Por isso, observa-se que a professora desconhece outras teorias de leitura postas nas áreas mencionadas anteriormente. Fica evidente que a professora C ainda, não tem clareza de uma teoria de leitura, pois a mesma não expôs as teorias que ela utiliza para trabalhar junto aos alunos da EJA. Com isso inferimos que a mesma professora também trabalha apoiada no empirismo, ou seja, sua prática é distanciada de uma teoria.
E a professora G, afirmou que:

Eu baseio muito no que eu aprendi na faculdade. Eu me baseio bastante. Até que quem formou agora tem uma visão muito diferente dos antigos, tá, em questão de ensino. Isso a gente estudou bastante. Mas é isso que eu acabei de falar. Essas coisas que eu vi, que eu fico é [...]. Na prática. É, tempo. [...] eu me baseio nesse ponto. A partir do momento que ele converse o mínimo, o básico. Saber conjugar as palavrinhas no plural e no singular. E que ele saiba desenvolver um bom texto. Eu acho que ele está muito bem preparado. Não precisa nem saber o que é sujeito, o que é predicado. Eu vejo por esse lado.

Aparece na fala da professora G, que ela se apóia para trabalhar em leituras e teorias que aprendeu na faculdade. Entretanto, ela não me informou quais teorias são essas.
Diferentemente da professora C e G, a professora D, atribui à leitura o seguinte significado:

Leitura é a pessoa, assim, viajar [...]. Daquela leitura, aquele livro ele se imaginar naquele local. Se for um lugar aberto, ele se imaginar naquele local. Ele fantasiar. Se for algo, algum tipo, ele se imaginar no lugar daquele personagem. Se for uma aventura, ele [...] também, imaginar e até criar, além disso. [...] eu acho que na leitura a pessoa tem que viajar mesmo [...]. [...] a pessoa parar, ficar tipo em transe, assim, só imaginando aquilo. Acho que além dela absorver muito mais, ela vai criar. Ela vai querer mais. Ela vai ter um ponto que ela vai, um assunto que ela vai achar mais interessante. E de repente ela vai até mudar como pessoa, na personalidade, no humor, no gênio com aquela leitura.

Na fala da professora D, a leitura aparece como o ato de viajar, de imaginar, de colocar-se no lugar dos personagens, entrar em transe. Para ela, a leitura muda a personalidade interior da pessoa. Entretanto, a leitura não deve ocorrer somente dessa forma, pois ela é realizada por um sujeito dentro de uma realidade sócio-histórica-ideológica. Neste sentido, Bakhtin (1988) considera que a linguagem transforma a consciência dos sujeitos, portanto constitui sujeitos sócio-históricos. Deste modo, uma classe social desprivilegiada pode ter a leitura como aquela prestigiada pelo grupo social dominante.
Quando perguntamos à professora D, em quais teorias se fundamentava para trabalhar com a leitura junto aos seus alunos da EJA, ela respondeu-nos: “É teorias, acho que informação. É senso crítico. Porque a pessoa não pode só lê e aceitar tudo o que ela está lendo. Ela tem também que concordar ou não. É um direito. É um livre arbítrio. Então, eu acho que é o, é o básico: informação e senso crítico”.
Para a professora D, teorias são informação e senso crítico. Certamente, que toda teoria é uma informação constituída de princípios e conceitos, pois a ciência que ela representa necessita de rigor, objetividade e de senso crítico. Entretanto, na fala da professora não ficou explícita a teoria em que ela se ampara para trabalhar com a leitura junto a seus alunos. Deste modo, posso inferir que a professora D, ainda, não tem clareza da importância de uma teoria para amparar a prática pedagógica ao trabalhar com a leitura.
O professor E amplia o conceito de leitura quando, fala que:

Leitura pra mim é tudo. [...] Por exemplo, você pode ler. [...]. Assistir uma novela e fazer uma leitura daquela novela, hoje. Então você vai ver intertexto de livros como “Makhbé” e “Lia”. [...] A leitura é isso: você interpretar o que está passando pra você. [...] é a leitura que o professor está passando para você. [...] não só a leitura do Cânone [...], a leitura do Shakespeare, mas a leitura para mim é muito abrangente, hoje. [...] pode ser a leitura de um filme. [...] a leitura pra mim é como a linguagem. Ela é muito abrangente.

Assim, leitura para o mesmo professor é tudo. É ler uma novela, um filme. É a intertextualidade entre um texto e outro. É interpretar. É ler a fala de um professor. Leitura não é apenas ler os livros clássicos. Ela é abrangente como a linguagem. A fala do professor E, apresenta conceitos bastante atualizados de leitura, pois a leitura como o professor concebe vai além da escrita, da decodificação das palavras. Inclui a interpretação dos mesmos, a intertextualidade, ou seja, a interlocução que ocorre entre os textos.
Neste sentido, reportamo-nos a Bakhtin (1988) quando, este autor, afirma que o diálogo é uma das formas mais importantes da interação verbal, a qual não se restringe à comunicação face a face, mas pode ser um ato de fala impresso num livro. Por isso, estendendo à leitura esse conceito de diálogo de Bakhtin, vejo que na leitura também ocorre esse diálogo, quando há intertextualidade de leituras, interpretações e idéias de um autor as quais se propagam postas em diversos livros, textos. E, mais, a leitura é sempre situada num contexto sócio-histórico-ideológico.
Segundo o professor E, as teorias que ele utiliza para amparar sua prática pedagógica junto aos alunos da EJA, são: “Olha, eu tenho. Eu comecei com Saussure, tem Ducrot. Enfim, eu não sei me basear, são muitos textos. Muitos autores. [...] eu tenho me baseado muito na questão da Semiótica, na leitura. [...] sem os alunos perceberem que eu estou trabalhando isso, não vou falar sobre isso com eles.”
Evidencia-se na fala do professor E, a dificuldade que é para ele entender o significado da teoria, pois são muitos textos, autores. Começou com Saussure e Ducrot. Afirma ter-se amparado nas teorias da Semiótica, mas não esclarece que teorias são estas. Isto nos permite inferir que o professor E, ainda não tem clareza em que teoria de leitura pode se basear para trabalhá-la. No referencial sócio-histórico, a leitura é contextualizada, não é somente a decodificação de letras, palavras, mas vai além, é pensar que a leitura se dá numa sociedade, portanto o leitor é um sujeito que possui uma condição de classe, portanto a leitura é “[...] uma prática social”. (BRITTO, apud SILVA, 2002, p. 14).
Para a professora F, leitura é “O meu objetivo quando trabalho com a leitura é fazer com que o meu aluno entenda aquilo dentro de um contexto. [...] ler não é só decifrar o que está escrito. [...] é interpretar, entender, saber o que ele significa, relacionar aquilo com um acontecimento passado”.
Há na fala da professora F um conceito interessante de leitura, um significado moderno, pois a leitura não é decifrar somente o que está escrito, extrapola o escrito. O leitor interpreta, entende para poder relacionar o lido com acontecimentos do passado. E, mais com acontecimentos do presente, do contexto sócio-histórico. Ao ler o leitor lê com seus conhecimentos prévios, portanto com seus valores, de um lugar social. Como confirma Silva (2002, p. 21), “[...] a leitura é uma prática social, por isso mesmo, condicionada historicamente pelos modos da organização e da produção da existência, pelos valores preponderantes e pelas dinâmicas da circulação da cultura.”
Sobre as teorias de leitura que amparam sua prática docente, a professora F assinala que:

Eu não sigo uma teoria, assim. Eu, vai do momento, do que que eu quero pra aquele meu trabalho. De que forma eu vou trabalhar aquela leitura. Seé, por exemplo, a gente tem vários objetivos: a compreensão, a contextualização, a entonação, diversas formas de se ler o mesmo texto. Então, vai depender do momento, mas uma teoria, assim.

Na fala da professora F, fica claro que a mesma não segue nenhuma teoria para trabalhar com a leitura junto aos jovens e adultos. Neste caso, também é possível inferir que a professora F, também, ampara a sua prática pedagógica no empirismo.
Ao ser questionada sobre qual teoria utiliza para aparar sua prática, a professora H, respondeu através da escrita que a teoria é: “Um mecanismo necessário para o estudo da língua, ou melhor, compreensão dos significados”.
No depoimento escrito da professora H, a leitura surge como um mecanismo para se estudar a língua. Leitura é compreender significados. Por conseguinte, a leitura necessita ser entendida como um mecanismo não somente de estudar a língua, mas um mecanismo sócio-histórico-ideológico. Além de ser compreensão de significados, a leitura propicia, como linguagem em interação ao meio social, ler não apenas os sentidos contidos na palavra, mas aqueles que extrapolam as palavras, os sentidos escondidos nas entrelinhas do texto. Desta forma, a leitura está ligada a uma história do leitor, de seu lugar social. Pode proporcionar ao leitor tornar-se mais crítico, portanto, autônomo.
Deste modo, “[...] pela leitura crítica o sujeito abala o mundo das certezas (principalmente as da classe dominante), elabora e dinamiza conflitos, organiza sínteses. Enfim, combate assiduamente qualquer tipo de conformismo, qualquer tipo de escravização às idéias referidas pelo texto.” (SILVA, 2002, p. 26). Por isso, a leitura carrega no seu cerne sentidos múltiplos, uma vez que pode servir de ocultação de ideologias para paralisar idéias contrárias à exploração de uma classe social sobre as outras classes mais privilegiadas.
Ao perguntarmos à professora H, sobre em quais teorias ela se ancora para trabalhar com a leitura junto a seus alunos da EJA, ela não nos respondeu. Talvez, a professora H não tinha o que nos escrever, logo, ainda não tinha pensado sobre uma relação entre teoria e prática docente, e mais, uma amparando a outra. Provavelmente, a professora H como os demais professores acima citados, não tenham, ainda, definição de qual ou em quais teorias poderiam amparar suas práticas docentes para trabalharem com a leitura junto aos educandos.

4. Algumas Considerações

Verificamos que a graduação em Letras não garantiu aos professores de Língua Portuguesa da EJA a apropriação de conhecimentos capazes de sanar essa lacuna em relação às concepções de lingua(gem) e de leitura como elementos sócio-históricos. Os eventos de capacitação dos quais eles participaram, nos últimos três anos, também, não lhes asseguraram novas concepções sobre esses temas.
Isso significa dizer que um investimento aleatório na formação profissional desses professores não lhes garantiu a apropriação de teorias da lingua(gem) e da leitura. A apropriação de conhecimentos sobre a língua(gem) e a leitura, por parte dos professores necessita ser contínua, gradativa, sistemática e da formação do hábito individual de leitura. Os conhecimentos sobre a leitura não se darão no vazio, necessitam basear-se nos conhecimentos de mundo desses professores, trazendo-lhes a possibilidade de refletirem sobre os mesmos e de maneira consciente irem escolhendo seus referenciais teóricos de língua(gem) e de leitura. Sendo que, esses referenciais não virão aos professores como um produto acabado, virão gradativamente, em um processo contínuo de apropriação do conhecimento.
Por conseguinte, os professores de Língua Portuguesa da EJA que participaram desta pesquisa, tanto quanto os demais professores, que atuam nos diferentes níveis e modalidades de ensino, precisam de uma educação contínua para ressignificar suas concepções de lingua(gem) e de leitura. A educação continuada segundo Pinto (1994, p. 35) “[...] é histórica não porque se executa no tempo, mas porque é um processo de formação do homem pra o novo na cultura, do trabalho, de sua autoconsciência.” Assim, a apropriação de novos conhecimentos, de concepções de linguagem e de leitura, ocorrem num processo contínuo e relacionam-se ao que cada sujeito pensa sobre eles considerando o momento sócio-histórico-cultural em que se encontram.

Referências

ALKMIM, Tânia. Sociolingüística. In: MUSSALIM, Fernanda e BENTES, Anna Christina (orgs.). Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras. V. 1., 3 ed., São Paulo: Editora Cortez, 2003.
BAKHTIN, Mikhail(VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. [Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira com colaboração de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz]. 4 ed. São Paulo: Hucitec Editora, 1988.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. [introdução e trad. Paulo Bezerra; prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov]. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção Biblioteca Universal).
DUBOIS, Jean; GIACOMO, Mathée; GUESPIN,Louis; MARCELLESI, Christiane e Jean Baptiste; MEVEL, Jean-Pierre. Dicionário de Lingüística. [Trad. Frederico Pessoa de Barros,Gesuína Domenica Ferretti, John Robert Schmitz, Leonor Scliar Cabral, Maria Elizabeth Leuba Salum e Valter Khedi]. São Paulo: Editora Cultrix, 1973.
FREIRE, Paulo. Da leitura do mundo à leitura da palavra. In: BARZOTTO, Valdir Heitor (Org.). Estado de leitura. Campinas, SP: Mercado de letras; Associação de Leitura do Brasil, 1999. (Coleção Leituras no Brasil).
______; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. [Trad. Adriana Lopez], revisão técnica Lólio Lourenço de Oliveira. 10 ed. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2003.
GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula: leitura e produção. 8 ed. Cascavel: ASSOESTE, 1984.
LARA, Gláucia Muniz Proença e DANIEL, Maria Emília Borges. Apostila de Língua Português: princípios básicos de leitura e produção de textos. Campo Grande/MS: UFMS/Centro de Ciências Humanas e Sociais/Curso de Letras, 2000.
MELO, José Marques de. Os meios de comunicação e massa e o hábito de leitura. In: BARZOTTO, Valdir Heitor (Org.). Estado de leitura. Campinas, SP: Mercado de letras: Associação de Leitura do Brasil, 1999. (Coleção Leituras no Brasil).
MENDONÇA, Marina Célia. Língua e Ensino: políticas de fechamento. In: MUSSALIM, Fernanda e BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à Lingüística: domínios e fronteiras. V. 1., 3 ed., São Paulo: Editora Cortez, 2001.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 2 ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade de Campinas, 1993. (Coleção passando a limpo).
PINTO, Álvaro Vieira. Sete lições sobre educação de adultos. 9 ed. São Paulo: Cortez, 1994.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 30 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 1995. (Coleção polêmicas do nosso tempo; v. 5).
SILVA, Ezequiel Theodoro da. Criticidade e Leitura: ensaios. 1ª reimpressão. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil (ALB), 2002. (Coleção Leituras do Brasil).

 
Voltar