Alda Maria do Nascimento Osório (UFMS)
Maria de Fátima Xavier da Anunciação de Almeida (UNIDERP)
1. Introdução
Este artigo evidenciará as concepções
de língua(gem) e de leitura dos professores de Português
da Educação de Jovens e Adultos, do 2º segmento, do
Ensino Fundamental da Rede Pública de Ensino de Campo Grande/MS.
Ele é resultado de uma pesquisa realizada durante o Mestrado em
Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS), em 2002-2004, junto aos referidos professores.
Diante dos resultados do estudo, pudemos analisar quais os significados
os docentes de Português da Educação de Jovens e Adultos
atribuem à língua(gem) e à leitura. Assim, apresentaremos
esses significados, partindo das falas desses professores, relacionando-as
às principais concepções de linguagem e de leitura
que atualmente vem sendo denominada de vertente sócio-histórica.
2. Os sentidos atribuídos à linguagem e
à língua
A linguagem, de modo geral, pode ser entendida como o
modo de cada ser humano comunicar sua fala verbal ou escrita. Somente
o homem fala, portanto é sujeito falante. “Todos os diversos
campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem”.
(BAKHTIN, 2003, p. 261). Neste sentido, ela é a mola mestra de
face social e história que acompanha o homem em todos os cantos
de sua vida, assim como em todas áreas do conhecimento.
Enquanto a linguagem é a língua sendo articulada, falada,
ou seja, a língua em ação, por meio de um sujeito
falante, a língua é o meio pelo o qual o homem sócio-histórico
fala. É neste sentido um instrumento da ação humana
de utilizar-se da fala em interação com o meio social, nos
contextos de seu uso. Neste sentido, “A língua, no seu uso
prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico
ou relativo à vida.” (BAKHTIN, 1988, p. 96). Ela é
parte constituinte da linguagem humana. Língua e linguagem são
diferentes, entretanto é um “casal” perfeito da ação
de sujeitos sócio-históricos.
Assim, iniciamos a nossa interpretação sobre os depoimentos
dos professores de Português da Educação de Jovens
e Adultos, alvo desta pesquisa, no intuito de responder as inquietações
iniciais deste estudo, indagando: quais os sentidos atribuídos
à linguagem e à língua estão presentes nas
falas desses professores?
No momento da entrevista, na parte das questões abertas, perguntamos
aos professores de Português da EJA, o que para eles era língua
e linguagem. Então, por meio das suas respostas a esta questão
pode-se saber quais os sentidos atribuídos à língua
e a linguagem por esses professores.
Para a professora A, linguagem é “[...] tudo o que envolve
o ato de se expressar. É... tudo o que eles se expressam através
dos sentimentos. [...] tudo, tudo o que expressa a vida deles é
linguagem”.
Mediante a resposta da professora A, verificamos que linguagem para a
mesma é tudo o que envolve o ato de expressar os sentimentos e
a vida dos alunos da EJA. A fala da professora A tende para o pensamento
filosófico-lingüístico do subjetivismo idealista, conceitua
linguagem como “os vosslerianos”, uma vez que a função
expressiva é posta em primeiro plano. Neste sentido, “[...]
sua essência se resume à expressão individual do falante.”
(BAKHTIN, 2003, p. 272). Apesar de acrescentar que é expressão
de vida dos alunos, a linguagem sendo “expressão de vida”,
contém, ainda um caráter histórico e ideológico,
pois
[...] em toda enunciação, por mais insignificante que seja,
renova-se sem cessar essa síntese dialética viva entre o
psíquico e o ideológico, entre a vida interior e a vida
exterior. [...] Sabemos que cada palavra se apresenta como uma arena em
miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação
contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão,
como o produto da interação viva das forças sociais.
É assim que o psiquismo e a ideologia se impregnam mutuamente no
processo único e objetivo das relações sociais. (BAKHTIN,
1988, p. 66).
Deste modo, a linguagem não somente expressa os sentimentos do
sujeito, mas como enunciação (fala) e como palavra, expressa
a vida social e histórica do falante, carregada de forças
ideológicas e sociais, por isso ela não é neutra,
representa os conflitos entre classes sociais diferentes, bem como interesses
conflitantes de grupos sociais distintos. A linguagem vivida no “palco”
da realidade social demonstra os antagonismos presentes numa dada estrutura
social, entre grupos humanos de diferentes níveis sociais.
Distintamente do pensamento da professora A, a professora B entende que
linguagem é “[...] a parte principal do ser humano. Porque
através da linguagem, da comunicação, você
consegue tudo o que você quer”. (Professora B).
Quando a professora B afirma que a linguagem é a parte principal
do ser humano, é possível notar que a linguagem relaciona-se
a um elemento biológico, pertencente ao corpo humano. A professora
B deixou de considerar, outros componentes imprescindíveis da linguagem:
os elementos sociais, ideológicos e históricos. Como enfatiza
Bakhtin (1988, p. 109, grifo do autor), “[...] a enunciação
[ato de fala], não pode de forma alguma ser considerado como individual
no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das
condições psicofisiológicas do sujeito falante. A
enunciação é de natureza social.”
Entretanto, a professora B reafirma que sendo a parte principal do ser
humano através da linguagem, da comunicação se consegue
tudo o que quer. Surge, então, algumas interrogações:
será que se consegue tudo o que se quer somente pelo uso da linguagem?
A professora não está sendo ousada ou idealista em acreditar
que a linguagem tem esse “poder mágico” de possibilitar
“tudo” o que o indivíduo quer?
Conceituando a linguagem como o “poder mágico” de possibilitar
“tudo” o que quisermos a professora B desconhece que a linguagem,
sozinha, não tem poderes para modificar uma estrutura social. Aparece
nesse conceito de linguagem a visão de que “[...] a educação
[a linguagem é] um instrumento de equalização social,
portanto de superação da marginalidade”. (SAVIANI,
1995, p. 15). Então, na fala da professora B, percebemos uma concepção
idealista de linguagem, uma vez que ela considera que a linguagem sozinha
pode como confirma a professora em outra fala: “[...] independentes
das séries, da classe social, da idade e tudo mais [...] independendo
da faixa de idade, vai haver uma melhora na linguagem dele que vai, com
certeza, melhorar o padrão de vida deles, também”.
A apropriação da linguagem correta, se é que existe
uma linguagem correta e sim uma linguagem mais prestigiada socialmente,
não nos garante vida melhor socialmente, pode nos ajudar a ter
uma vida melhor, mas isso não é regra geral, uma vez que
“[...] a escola é determinada socialmente; a sociedade em
que vivemos, fundada no modo de produção capitalista, é
dividida em classes com interesses opostos; portanto a escola sofre determinação
do conflito de interesses que caracteriza a sociedade.” (SAVIANI,
1995, p. 41).
A professora B, ainda, pensa que a linguagem pode libertar o aluno de
sua condição social, mostrando que este conceito está
dissociado de uma visão maior que envolve todo ato educativo, a
questão de classe social e do poder. A linguagem por si só
não pode transformar a condição social do sujeito
(aluno), ela pode, caso o aluno estude profundamente e apreenda os modos
de uma linguagem valorizada socialmente, levá-lo a condição
de sujeito letrado, mas não garantem, absolutamente, a melhoria
de padrão de vida de todos os alunos. Podemos dizer ainda, que
a professora B tem o que Freire (2003, p. 158) “[...] um certo otimismo
ingênuo”, por pensar que por meio da linguagem, do ensino,
o aluno pode melhorar o padrão de vida.
Diferentemente das professoras A e B, a professora C tem a idéia
de que a linguagem é:
[...] a forma do ser humano, [...] se comunicar, tanto
através da fala como através da escrita. E que é
essencial [...], é uma forma. É importante [...] é
um processo bem interessante de estar trabalhando tal, muito rico. Tem
muita coisa pra se trabalhar dentro da linguagem. [...] ela é essencial.
Na fala da professora C explicita-se a linguagem como
um conceito dicionarizado, segundo o qual a linguagem é a capacidade
humana de se comunicar tanto por meio da fala como da escrita. Entretanto,
é importante compreender que os conceitos de linguagem vão
mais além, necessita-se, entendê-la num contexto sócio-histórico.
Como preceitua Franchi, (apud LARA e DANIEL, 2000, p. 86), a linguagem
é:
[...] uma atividade humana, histórica e social.
Nessa atividade se constituem:
- o conjunto estruturado e sistemático dos recursos expressivos
da língua de uma comunidade;
- o sistema cultural, antropológico, de representação
da realidade em que as expressões da língua podem ser interpretadas;
- os meios lingüísticos que permitem situar essas expressões
no contexto real em que são produzidas. A linguagem é um
trabalho construtivo, um processo coletivo de que resulta, em uma longa
história, o sistema lingüístico e comunicativo utilizado
em uma comunidade: uma língua, por exemplo, como o português.
Então, a linguagem não apenas é uma
forma de comunicação, mas é um trabalho construtivo,
coletivo, a qual possibilita que os sujeitos se constituam enquanto sujeitos
numa dada realidade histórico-social.
Para a professora D, a linguagem possui outro sentido, como
[...] ter noções, entendimento do que você
está escrevendo, falando. Tentando escrever e um pouco de criatividade.
É trabalhar o pouco que você sabe ou o muito que você
sabe no contexto, conseguindo ter clareza para o leitor, clareza para
você mesmo. Criando textos cada vez mais bonitos, mais expressivos,
informativos.
Assim, para a mesma professora a linguagem é entender
o que se escreve e o que se fala. É tentar escrever, é ter
criatividade. É criar textos bonitos, expressivos e informativos.
Há neste conceito, o equacionamento do aspecto social e histórico
da linguagem. “[...] a unicidade do meio social e a do contexto
social imediato são condições absolutamente indispensáveis
para que o complexo físico-psíquico-fisiológico [...]
possa ser vinculado à língua, à fala, possa tornar-se
um fato de linguagem”. (BAKHTIN, 1988, p. 71-72, grifo do autor).
Os significados atribuídos pelo professor E à linguagem
aparecem como:
[...] é um assunto amplo, que pode ser linguagem
verbal e não verbal. São signos, [...] a linguagem. [...]
pode ser uma linguagem de autdoor, por exemplo, uma fotografia é
uma linguagem. É um texto que é produzido. [...] ela é
um conteúdo muito abrangente. São formas de comunicação
no meio em que a gente vive.
Chama-nos a atenção o conceito do professor
E que não difere muito dos conceitos iniciais das professoras C
e D, quando mencionam os aspectos da linguagem como verbal e não-verbal,
falada ou escrita. Para ele, a linguagem é um texto, possui um
conteúdo abrangente. E finaliza dizendo que a linguagem “[...]
são formas de comunicação no meio em que a gente
vive.”
Esta significação da linguagem como “formas de comunicação”
no meio social necessita ser ampliada, pois a linguagem além de
ser uma forma de comunicação entre os indivíduos
em um contexto social, é histórica, construtiva, por isso
dinâmica, viva. Ela traz em seu bojo um componente ideológico.
Como salienta Bakhtin (1988, p. 95). “[...] a forma lingüística
[...] sempre se apresenta aos locutores no contexto de enunciações
precisas, o que implica sempre um contexto ideológico preciso.”
Neste sentido, a linguagem enquanto enunciação, para Bakhtin
(1988), tem um sentido ideológico e vivencial, por isso é
sempre social e histórica, portanto, permeada de conflitos que
demonstram os interesses de diferentes classes sociais.
As professoras F e G dão respostas semelhantes ao conceberem a
linguagem como dialetos regionalizados, variações lingüísticas.
Entretanto, a professora G traz outros significados à linguagem,
que mostro mais adiante. Para a professora F, a linguagem é:
[...] a forma com que as pessoas falam, assim, nas diversas
camadas da sociedade ou nas regiões. Por exemplo, o nordestino
fala de uma maneira, a pessoa do Sul fala de outra, nós aqui na
nossa região, falamos de outra. São essas diferenças
lingüísticas que existem dentro de um mesmo país, dentro
de um mesmo idioma.
E a professora G, entende a linguagem como:
[...] cada pessoa tem a sua linguagem [...]. Tipo, assim,
o meio em que ele está inserido. Ele tem o seu tipo de linguagem.
Então ele fala a língua que ele está. Tipo gaúcho
que usa muito “tu” [...]. Na novela das oito, está
tendo aquele garoto que tem o sotaque gaúcho. Eu acho também
é uma forma de linguagem porque, não que ele fale errado,
mas na parte de região. São os dialetos, é. Então,
aí são vários tipos de linguagem, acredito. E essa
aqui que eu falo daqui do nosso meio. É essa linguagem de sair
da norma culta. A linguagem deles, os palavrões, as gírias.
Não sei se eu estou certa.
Tanto a professora F quanto a professora G entendem a
linguagem como o falar individual, ou regionalizado de um dialeto, ou
que a linguagem se compara às variações lingüísticas.
Entretanto, esse conceito de linguagem necessita ser complementado, pois
a existência de variedades lingüísticas “[...]
não se dá no vácuo, mas no contexto das relações
sociais estabelecidas pela estrutura sociopolítica de cada comunidade.
Na realidade lingüística em uso, que reflete a hierarquia
dos grupos sociais.” (ALKMIM, 2003, p. 39).
O interessante da visão dessas professoras sobre a linguagem como
o falar lingüístico cotidiano, faz-me inferir que as mesmas
valorizam as variedades lingüísticas consideradas desprivilegiadas,
uma vez que em nossa sociedade, normalmente há valorização
de uma variedade lingüística padrão, a variedade dos
grupos que detém o poder socialmente.
Ao perguntar para a professora H o que é linguagem, ela limitou
a sua resposta, pois não conseguiu falar sobre tal tema, apenas
concedeu-me uma pequena resposta escrita. Como aparece a seguir: “É
colocar em prática o ler, o falar, o ouvir”.
Ao se referir à linguagem como a prática do ler, do falar
e do ouvir, a mesma professora restringe-a, pois a linguagem como ação
humana construtiva e coletiva, manifestação simbólica
e sócio-histórica da língua falada ou escrita, ocorre
numa sociedade situada historicamente, marcada pelas relações
de poder e, portanto, explicita os conflitos ideológicos presentes
na mesma sociedade.
Enfim, é nítido nas falas dos professores A, B, C, D, E,
F, G e H conceitos de linguagem como um objeto distanciado da realidade
social e histórica. No entanto, Linguagem e sociedade estão
ligadas entre si de modo inquestionável. Mais do que isso, “[...]
essa relação é a base da constituição
do ser humano. A história da humanidade é a história
de seres organizados em sociedades e detentores de um sistema de comunicação
oral, ou seja, de uma língua.” (ALKMIM, 2003, p. 21).
Quando perguntamos às professoras A e B o que é língua,
percebemos, pelos “silêncios manifestos” em suas falas,
marcados pelas reticências, uma certa dificuldade em apresentar
seus entendimentos sobre língua. Como é possível
observar, os conceitos de língua são múltiplos, talvez,
por isso, as professoras, também, silenciaram ao responder a pergunta
realizada. A professora A assinala que língua é, “[...]
... é...,como eu posso falar para você... É...a...,
como se fosse um idioma de uma nação. É o dialeto.
[...] a língua é o modo de expressar de uma... de uma região,
uma comunidade”.
Assim, para a professora A, língua é um idioma de uma nação.
É o modo de expressar de uma comunidade. Um dos conceitos da lingüística
apontados pelos autores Dubois, Giacomo, Guespin, Marcellesi, Mevel (1973),
para diferenciar língua de linguagem, é que a língua
é um objeto de comunicação, de signos vocais próprios
de uma mesma comunidade. Tendo um sistema específico para a língua
falada e escrita. Analisando a fala da professora A, vimos semelhança
entre o que ela entende por língua e aqueles autores. O conceito
de língua para a mesma professora é aquele dicionarizado,
pois língua é um idioma de uma comunidade, de uma nação.
Todavia, os sentidos de língua podem ser ampliados. Dentro de uma
visão sócio-histórica, língua não é
apenas o código, ou o idioma de falantes ou escreventes de uma
mesma região. Ela não possui somente o significado do dicionário.
Para a professora B, língua é “[...] a parte determinante
de alguma coisa [...] seja uma parte importante que você tem é
que adaptar ela de acordo com, com seu momento [...]”.
Na verdade, na fala da professora B, não aparece um conceito explícito
de língua. A mesma professora não tem um conceito de língua
ainda definido. Ao demonstrar que ainda não tem clareza do que
seja a língua, a mesma professora pode ter dificuldade para desenvolver
uma prática pedagógica mais segura e eficiente, pois desconhecendo
os conceitos de língua como vai planejar suas aulas quando tratar
do conteúdo de Português? Isso se configura como um trabalho
empírico, pois demonstra que, a sua ação pedagógica
está dissociada de um amparo teórico-metodológico
consciente.
Já os depoimentos dos professores C, D, E, F, G e H não
estão marcados por essas pausas na linguagem, o que nos fazem realizar
outras leituras deles.
A fala da professora D é semelhante à da professora A quando
esta afirma que a língua é um idioma, “[...] é
um pouco de mistura da linguagem com idioma, com a sua maneira de ver,
a sua língua pátria. A maneira que você enxerga mesmo
o seu falar. [...] é a união das letras, das palavras, das
sílabas, dos fonemas, da sua língua materna”.
Aparece na fala da professora D, língua como mistura de um idioma
com a maneira de falar, de enxergar o falar. Ainda, a língua é
a união de letras, palavras, sílabas, fonemas da língua
materna. Sendo a língua conforme este último significado
presente na fala da mesma professora, a língua torna-se um amontoado
de seqüências estáticas de letras, palavras, sílabas,
fonemas sem nenhuma relação com o contexto social e histórico.
Todavia é necessário entender que a língua encontra-se
num
[...] processo evolutivo contínuo. Os indivíduos
não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram
na corrente da comunicação verbal [...] somente quando mergulham
nessa corrente é que sua consciência desperta e começa
a operar.
A língua, como sistema de formas que remetem a uma norma, não
passa de uma abstração [...]. Esse sistema não pode
servir de base para a compreensão e explicação dos
fatos lingüísticos enquanto fatos vivos e em evolução.
Ao contrário, ele nos distancia da realidade evolutiva e viva da
língua e suas funções sociais [...].
[...] a língua é um fenômeno puramente histórico.
(BAKHTIN, 1988, p. 108-109).
Deste modo, a língua como enunciação
(ato da fala), de acordo com Bakhtin (1988), é social, dinâmica,
pois é utilizada pelos falantes, praticantes de uma linguagem viva,
possibilitando a constituição da consciência dos sujeitos,
logo constitui sujeitos numa data realidade social e histórica,
considerando, ainda, que “[...] toda a evolução da
língua está ligada à evolução ideológica.”
(BAKHTIN, 1988, p. 122). E, finalmente, o verdadeiro objetivo da língua,
enquanto fenômeno social, é a “[...] interação
verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações.
A interação verbal constitui assim a realidade fundamental
da língua.” (BAKHTIN, 1988, p. 123, grifo do autor).
Para a professora C, a língua é “A forma do ser humano
tá se comunicando [...]. Também é uma forma onde
a gente pode trabalhar muita coisa. Uma forma rica, essencial, também.
Sem ela não teria como fazer nada”.
É possível observar na fala da professora C a língua
como a forma para os sujeitos se comunicarem, podendo ser trabalhada.
A língua é essencial, pois sem a mesma não se pode
fazer nada. Realmente, por meio da língua os indivíduos
se comunicam, mas, além disso, a língua serve para a interlocução
entre sujeitos histórico-sociais. Ela é “[...] uma
atividade que constitui os sujeitos e é constituída por
eles ininterruptamente, tendo em vista necessariamente sua historicidade
– isto é, sua relação com um contexto socioideológico,
com suas condições de produção [...].”
(MENDONÇA, 2001, p. 244).
Seguindo, em parte, um conceito de língua dicionarizado, o professor
E, entende língua como:
[...] a língua falada e a língua escrita.
[...] A língua, ela restringe, ela é uma pequena parte da
linguagem. Seria uma pequena porcentagem dessa famosa linguagem. [...]
a língua escrita é uma língua falada. Isto também
se restringe a língua. [...] é um diminuir. Parece que a
linguagem é mais geral. A língua é mais específica
do meu ponto de vista.
Para o mesmo professor a língua é mais restrita
à linguagem. No que está correto. O professor E afirma que
a língua escrita é uma língua falada. Nesta afirmação
o mesmo professor faz-nos lembrar dos conceitos de Bakhtin a esse respeito.
Quando Bakhtin salienta que “O livro, isto é, o ato de fala
impresso, constitui igualmente um elemento da comunicação
verbal.” (BAKHTIN, 1988, p. 123). Não se pode esquecer que
o ato da fala em forma de língua escrita está situado em
um contexto sócio-histórico-ideológico.
A professora H responde semelhantemente ao professor E, quando este enfatiza
que a língua é a escrita ou a falada, e escreve: “Manifestações
da escrita e da fala. Manifestações de inúmeras mensagens
(signos)”.
Notamos na fala da professora H a omissão da língua enquanto
um sistema lingüístico inseparável de uma sociedade.
Segundo Benveniste citado por Alkmim (2001, p. 26), “[...] a linguagem
sempre se realiza dentro de uma língua, de uma estrutura lingüística
definida e particular, inseparável de uma sociedade definida e
particular”.
Observamos, também, uma semelhança no modo de conceituar
a língua nas falas da professora F e da professora G. Para a primeira,
Língua é o padrão oficial. Por exemplo,
o Brasil, Língua Portuguesa. Existe um padrão oficial que
nós devemos seguir, gramaticalmente correto, que é nossa
missão de ensinar e tal. Diferente da linguagem que seria a forma
mais é, do dia-dia [...]. [...] espontânea de se falar. A
língua é mais padronizada segundo as normas.
Para a segunda, “A língua [...] é
a empregada na gramática, na norma culta, tipo a Língua
Portuguesa [...]. Ela tem que ser usada dessa forma. Essa é a maneira
correta. [...] cada país tem a sua língua”.
Tanto a professora F quanto a professora G entendem a língua como
o padrão oficial e correto empregado no Brasil, ou seja, a língua
oficial, a Língua Portuguesa. Uma norma culta que deve ser empregada
por falantes brasileiros. Essa norma é a correta e deve ser ensinada
na escola. Esses significados atribuídos à língua
pelas professoras estão desvinculadas das atuais contribuições
dos estudos lingüísticos, ou seja, dos estudos sociolingüísticos
sobre a língua(gem). As professoras têm um conceito bastante
convencional da língua. Aquele em que a língua é
um sistema de formas abstrata, desconexa da realidade sócio-histórico-ideológica
de um falante.
A língua, como sistema de formas que remetem a
uma norma, não passa de uma abstração, que só
pode ser demonstrada no plano teórico e prático do ponto
de vista do deciframento de uma língua morta e do seu ensino. Esse
sistema não pode servir de base para a compreensão e explicação
dos fatos lingüísticos enquanto fatos vivos e em evolução.
Ao contrário, ele nos distancia da realidade evolutiva e viva da
língua e de suas funções sociais [...]. (BAKHTIN,
1988, p. 108).
As professoras F e G ao conceituarem a língua como
forma gramatical correta em que os falantes têm que apreendê-la
para expressarem-se corretamente, correm o risco de considerar a língua
apenas como um código de normas abstratas, sem vínculo com
o contexto sócio-histórico-ideológico. E, também,
como enfatiza Alkmim (2001, p. 40):
A variedade padrão de uma comunidade – também
chamada norma culta, ou língua culta – não é,
como o senso comum faz crer, a língua por excelência, a língua
original, posta em circulação, da qual os falantes se apropriam
como podem ou são capazes. O que chamamos de variedade padrão
é o resultado de uma atitude social ante a língua, que se
traduz, de um lado, pela seleção de um dos modos de falar
entre os vários existentes na comunidade e, de outro, pelo estabelecimento
de um conjunto de normas que definem o modo “correto” de falar.
Tradicionalmente, o melhor modo de falar e as regras do bom uso correspondem
aos hábitos lingüísticos dos grupos dominantes.
Se os professores de Português da EJA não
tiverem clareza das concepções de língua(gem), como
eles poderão responder o “para quê” ensinar Língua
Portuguesa? Como constata Geraldi (1984, p. 42, grifo do autor): “[...]
no caso do ensino de língua portuguesa, uma resposta ao “para
quê?”envolve tanto uma “concepção de linguagem”
quanto uma postura relativamente à educação.”
Diante disso surge uma questão: por que será que os professores
A, B, C, D, E, F, G e H ainda não se apropriaram de concepção
de língua(gem) de acordo com as teorias lingüísticas
contemporâneas, as quais dão ênfase à relação
entre língua(gem) e sociedade para melhorarem suas práticas
pedagógicas?
Analisando os quadros que apontaram o perfil de cada professor, assim
como partindo de um referencial sócio-histórico de língua(gem),
vamos tentar entender por que isso ocorre.
O acadêmico ao concluir um curso superior de Letras é capaz,
no mínimo, de saber o que é linguagem. Entretanto, muitas
vezes, o que é apreendido nos cursos de Letras pode não
ter sido o suficiente para que esse futuro professor pudesse ter clareza
da importância de saber o que é linguagem, o que é
língua, e ter maior segurança, e, por conseguinte, desenvolver
um trabalho com maior qualidade junto aos seus alunos. E ainda, pode ser
que desconheça a multiplicidade de conceitos de linguagem e língua,
bem como que os conceitos são provisórios, históricos,
pois eles se transformam conforme a evolução do conhecimento
científico.
Todo o processo de apropriação do conhecimento pelo qual
passamos é um “continuum”, e também, são
conhecimentos ou conceitos históricos sociais e ideológicos
presentes nas ciências sociais, ou especificamente, dentro da Educação,
Sociologia, Filosofia, Psicologia, Lingüística, que versam
sobre a língua(gem), etc. Neste sentido, a apropriação
de conhecimentos sobre a língua(gem) não é algo pronto,
acabado, mas ocorre num processo dinâmico.
Enfim, verificamos que a formação obtida na graduação
não garantiu a esses professores a apropriação das
concepções de língua e linguagem sistematizados pela
Lingüística, apesar das novas contribuições
e dos estudos desta área. Demonstrando que a apropriação
do conhecimento é um processo longo e complexo, permeado por vários
fatores: sociais, econômicos, históricos, ideológicos,
simbólicos e até imaginários, e por isso precisam
ser analisados com bastante cuidado. Caberia uma outra pesquisa para analisar,
mais detalhadamente, estes aspectos.
3. Os sentidos da leitura e as concepções
teórico-metodológicas
A leitura como ato de ler é apenas um conceito
dicionarizado, mas é preciso pensá-la num significado além
do dicionário. Leitura como linguagem sendo praticada, vivida numa
relação dialógica entre texto e leitor, envolve atribuição
de significados, compreensão e interpretação. Ela
não está dissociada de uma realidade social, histórica
e ideológica, pois, quando o leitor lê um texto, ou dialoga
com o texto, atribui-lhe sentidos múltiplos levando em conta o
seu lugar social de sujeito-leitor, bem como os sentidos atribuídos
ao lido, que na maioria das vezes expressam os antagonismos de uma sociedade
dividida em classes sociais e o poder de um grupo social sobre outros
grupos.
O ato de ler não envolve somente decodificar palavras vazias de
sentidos, mas é a “leitura de mundo”. Ler não
se encerra “[...] na leitura da palavra porque [...] acho que ela
não se dá, em termos profundos, sem a leitura do mundo.”
(FREIRE apud BARZOTTO, 1999, p. 21).
Leitura, ainda, é uma questão pedagógica, social
e lingüística. É pedagógica, pois pode ser ensinada
por meio da educação escolar. É social, pois ao ler
o homem não está isolado dos determinantes sociais. É
lingüística porque envolve a ação humana ao
utilizar-se da linguagem.
Ao tematizar a leitura como um dos objetos deste estudo, pretendemos mostrar
quais as concepções teórico-metodológicas
que estão presentes nas falas dos professores de Português
da EJA, sujeitos colaboradores deste estudo, relacionados à leitura,
ao ensino de leitura.
Para pensar no ensino de leitura da EJA, o professor necessita amparar-se
em conceitos teóricos voltados ao próprio ato de ensinar,
bem como se basear em concepções de linguagem, que por sua
vez, refletirão nos seus conceitos de leitura. Esta tese fica evidente
quando Geraldi (1984, p. 80-81, grifo nosso), expõe sua idéia:
Como coadunar esta concepção de leitura
com atividades de aula, sem cair no processo de simulação
de leituras? Não me parece que a resposta seja simples. Se fosse
assim, não haveria tantos encontros de professores, tantos textos
que tematizam a própria leitura. Qualquer que seja a resposta,
no entanto, estará lastreada numa concepção de linguagem,
já que toda a metodologia de ensino articula uma opção
política – que envolve uma teoria de compreensão e
interpretação da realidade [...].
Concordamos com Geraldi, pois além do professor
buscar amparar-se em uma concepção de linguagem, ao trabalhar
com o ensino de leitura, necessita basear-se em concepções
de educação e educação escolar, que logicamente,
envolverá uma teoria de compreensão e interpretação
da realidade.
Para encontrar algumas respostas às nossas indagações,
perguntamos aos professores participantes da pesquisa o que era leitura
e em quais teorias de leitura eles se baseavam para trabalhá-la
junto aos seus alunos. As respostas as duas questões que fizemos
aos professores nos possibilitou verificar quais os referenciais teórico-metodológicos
de leitura estão presentes em suas falas.
A professora A concebe leitura como sendo “[...] tudo, tudo, até
autdoor que a gente vê na rua [...], quando a criança tá
aprendendo a ler a primeira coisa que ela gosta de [...] mostrar”.
Na resposta da professora A, aparece o seu desconhecimento sobre a amplitude
dos conceitos de leitura, apesar dela reconhecer quando afirma que a leitura
é “até de autdoor”, ou seja, a leitura não
é somente da escrita em um livro, pode ser também a leitura
de um autdoor. A leitura pode receber múltiplos sentidos, é
atribuição de significados do leitor ao texto, é
ainda, compreensão e interpretação do lido. Ao compreender
e interpretar um texto, o leitor está sujeito às “[...]
determinações de natureza histórica, social, lingüística,
ideológica [...]” (ORLANDI, 1993, p. 12). Neste sentido,
ao ler um texto, o leitor está condicionado aos modos de ler de
seu tempo histórico e social, portando quando interpreta um texto,
necessariamente, entra aí a ideologia posta em sua época
histórica.
Ler é a leitura da “palavramundo”, pois o ato de ler
não é simples decodificação do lido, mas é
interpretar o próprio mundo através dos textos. A leitura
não é um ato mecânico, mas significativo, por isso
necessita estar contextualizada à realidade sócio-histórica
dos sujeitos. Deste modo, o contexto significa, ao mesmo tempo, “[...]
o contexto do escritor e do leitor [...].” (FREIRE apud BARZOTTO,
1999, p. 20). Leitura, ainda, numa realidade sócio-histórica
é a própria linguagem sendo praticada e transformando a
consciência do homem, portanto, o ato de ler mostra sujeitos reais
se constituindo enquanto sujeitos.
Por desconhecer que há conceitos múltiplos de leitura, a
professora A, também, mostra em sua fala não saber sobre
as teorias de leitura, quando assinala que: “[...] olha se eu te
falar que eu nem sabia que tinha teoria pra leitura! E olha que eu fiz
a pesquisa de projeto da faculdade com a leitura.[...] eu nunca me apoiei
em teoria pra leitura, não.[...] nunca me toquei, assim, pra teoria
de leitura”.
A professora A em sua fala demonstra coragem e honestidade, pois admite
nunca ter se apoiado em teoria para trabalhar com a leitura em sala de
aula. Deste modo, fica explícito em sua resposta, o seu desconhecimento
de teorias de leitura. Constatamos que não é culpa da professora
A não saber teorias de leitura. Seu curso de graduação,
bem como algumas capacitações as quais participou não
foram suficientes para que a professora A pudesse ter clareza sobre as
teorias de leitura.
Cabe salientar, agora, já que estamos abordando as teorias de leitura,
a importância das concepções de educação
escolar e de linguagem como pontos de ancoragem para as concepções
de leitura. Esta relação entre concepções
de educação escolar (ensino), linguagem e leitura não
é algo simples, entretanto, entendemos que para ter uma prática
pedagógica de qualidade o professor de língua materna necessita
buscar relacionar esses conhecimentos.
Na perspectiva sócio-histórica o ensino é entendido
como interação social, histórica, portanto, dialética
entre o homem e a realidade social que ele vive. Assim, a linguagem é
viva, dinâmica, não abstrata, transforma a consciência
do sujeito, portanto constitui o sujeito. A linguagem é ação
humana permeada pelos condicionantes sociais. Ela demonstra os conflitos
existentes em uma sociedade dividida em classes sociais, neste sentido
ela reflete e retrata a ideologia de determinados grupos sociais que estão
no poder, portanto a linguagem não é neutra.
A leitura nesta tendência é dialógica, pois há
um diálogo entre texto e leitor. O leitor é sujeito ativo,
por isso atribui sentido ao lido, bem como é influenciado pelo
lido. O ato de ler é, também, social, histórico e
ideológico, uma vez que o sujeito ao ler, lê de um lugar
social, por isso histórico, influenciado pela ideologia de seu
tempo. E ainda, a leitura é a própria linguagem em ação,
quando o sujeito lê o texto ou faz a leitura de mundo vai atribuindo-lhes
significados, compreendendo e interpretando, constituindo-se em sujeito
mais crítico e autônomo.
A professora A está amparando a sua prática pedagógica
ao trabalhar com a leitura, e a linguagem, no empirismo, ou seja, somente
em experiências cotidianas de sala de aula, sem a preocupação
com o conhecimento teórico.
Para a professora B leitura é “[...] a coisa básica
[...] porque através da leitura você abre horizontes. [...]
quanto mais você lê, mas você aprende”.
Aparece na fala da professora B leitura como sendo “coisa básica”,
abertura de horizontes e como aprendizagem. Ao ter a idéia de leitura
como “coisa” a mesma professora dá a entender que a
leitura, conduz a novas aprendizagens. A leitura pode ser fonte de novas
aprendizagens, e numa perspectiva sócio-histórica, o ato
de ler além de envolver a aprendizagem cognitiva, caracteriza-se
pela “[...] relação racional entre o indivíduo
e o mundo que o cerca.” (ZILBERMAN, 1999, p. 40).
Neste sentido, ao ler o sujeito não está distanciado de
sua realidade sócio-histórica, tampouco, da objetividade
(racionalidade) que envolve o ato de ler, mas não se pode esquecer
do elemento subjetivo no ato de ler, quando o leitor atribui significados
ao lido por meio de sua teoria de mundo. Teoria esta, que é construída
a partir de suas relações sociais com outros sujeitos.
Perguntamos, também, à professora B em quais teorias ela
se fundamenta para trabalhar com a leitura junto aos alunos da EJA. Conforme
a professora, “Eu trabalho mesmo com textos. [...] são vários
textos. É, não tem uma teoria, assim, sabe. [...] E com
eles têm que ser muito na prática. Então, não
tem como pegar uma teoria e jo..., e pôr para eles. Então,
com eles têm que ser muito na prática mesmo”.
O depoimento da professora B converge com a fala da professora A, pois
ambas, desconhecem a existência de teorias que apóiam a prática
pedagógica voltada à leitura. Contudo, a professora B traz
um novo dado, o qual não aparece na fala da professora A, em relação
a ação docente e o conhecimento teórico ela afirma
que: “É, não tem uma teoria, assim, sabe. Eu sou mais
prática. E com eles têm que ser muito na prática.
Então, não tem como pegar uma teoria [...] e pôr pra
eles. Então, com eles têm que ser muito na prática
mesmo”. (PROFESSORA B).
Deste modo, percebemos que a professora B desconhece o que é uma
teoria, por conseguinte, não sabe como se apropriar dela para amparar
sua prática docente. Pela fala da professora B observamos que a
professora, também, trabalha apoiada no senso comum, empiricamente,
desvinculando teoria e prática ao abordar a leitura em sala de
aula.
Nos depoimentos da professora C e da professora G, a leitura aparece como
essencial e possibilitadora de proporcionar o bem escrever. Para a professora
C, a leitura é: “[...] necessária, porque sem a leitura
não tem como o aluno escrever bem. Ele precisa tá lendo
sempre pra poder escrever bem, pra poder desenvolver bem a linguagem.
Pra ter uma perfeição maior na língua. Então,
a leitura também, é muito essencial”.
Semelhantemente, para a professora G,
Leitura [...] é o essencial. [...] a partir do
momento que o aluno tem a leitura, [...] ele não vai ter muita
dificuldade. Eu falo que se ele lê, ele vai escrever bem.
Então, se você ler, você está a par para estar
conversando qualquer assunto. Você é uma pessoa atualizada.
[...] a leitura é fundamental.
Tanto a professora C quanto a professora G consideram
a leitura como algo necessário para que o aluno escreva bem e,
por conseguinte, desenvolva sua linguagem. Assim, as professoras citadas
relacionam leitura à escrita, mas a leitura não está
ligada apenas à escrita, a ler o escrito.“A leitura não
é um ato que se dá apenas pelo domínio alfabético.
Trata-se de uma ação dotada de profundo sentido social –
participação, criação, construção.”
(MELO, 1999, p. 77, grifo do autor). Assim, o ato de ler não é
apenas a decodificação da palavra escrita, é “ler
o mundo”, o que está além do escrito. E a leitura
tem um sentido social, pois ao ler o leitor não está isolado
da realidade social no qual vive, bem como há sentidos produzidos
ao ler, que são construídos historicamente, marcados por
uma ideologia.
Perguntando às professoras C e G sobre em quais teorias elas se
baseiam para trabalhar com a leitura junto aos alunos da EJA, a professora
C respondeu que: “[...] leio bastante PCN, diretrizes. Lá
tem as formas que você deve trabalhar com cada faixa etária
e também tem [...] as diretrizes, PCN voltados pra EJA”.
A resposta da professora C mostra que ela se restringe a ler os PCN e
diretrizes da EJA. Não que essa prática esteja incorreta,
mas a mesma professora poderia buscar outras leituras, outros autores
que estudam a leitura sob os enfoques psicolingüísticos, sociolingüísticos,
da Análise do Discurso, etc. Por isso, observa-se que a professora
desconhece outras teorias de leitura postas nas áreas mencionadas
anteriormente. Fica evidente que a professora C ainda, não tem
clareza de uma teoria de leitura, pois a mesma não expôs
as teorias que ela utiliza para trabalhar junto aos alunos da EJA. Com
isso inferimos que a mesma professora também trabalha apoiada no
empirismo, ou seja, sua prática é distanciada de uma teoria.
E a professora G, afirmou que:
Eu baseio muito no que eu aprendi na faculdade. Eu me
baseio bastante. Até que quem formou agora tem uma visão
muito diferente dos antigos, tá, em questão de ensino. Isso
a gente estudou bastante. Mas é isso que eu acabei de falar. Essas
coisas que eu vi, que eu fico é [...]. Na prática. É,
tempo. [...] eu me baseio nesse ponto. A partir do momento que ele converse
o mínimo, o básico. Saber conjugar as palavrinhas no plural
e no singular. E que ele saiba desenvolver um bom texto. Eu acho que ele
está muito bem preparado. Não precisa nem saber o que é
sujeito, o que é predicado. Eu vejo por esse lado.
Aparece na fala da professora G, que ela se apóia
para trabalhar em leituras e teorias que aprendeu na faculdade. Entretanto,
ela não me informou quais teorias são essas.
Diferentemente da professora C e G, a professora D, atribui à leitura
o seguinte significado:
Leitura é a pessoa, assim, viajar [...]. Daquela
leitura, aquele livro ele se imaginar naquele local. Se for um lugar aberto,
ele se imaginar naquele local. Ele fantasiar. Se for algo, algum tipo,
ele se imaginar no lugar daquele personagem. Se for uma aventura, ele
[...] também, imaginar e até criar, além disso. [...]
eu acho que na leitura a pessoa tem que viajar mesmo [...]. [...] a pessoa
parar, ficar tipo em transe, assim, só imaginando aquilo. Acho
que além dela absorver muito mais, ela vai criar. Ela vai querer
mais. Ela vai ter um ponto que ela vai, um assunto que ela vai achar mais
interessante. E de repente ela vai até mudar como pessoa, na personalidade,
no humor, no gênio com aquela leitura.
Na fala da professora D, a leitura aparece como o ato
de viajar, de imaginar, de colocar-se no lugar dos personagens, entrar
em transe. Para ela, a leitura muda a personalidade interior da pessoa.
Entretanto, a leitura não deve ocorrer somente dessa forma, pois
ela é realizada por um sujeito dentro de uma realidade sócio-histórica-ideológica.
Neste sentido, Bakhtin (1988) considera que a linguagem transforma a consciência
dos sujeitos, portanto constitui sujeitos sócio-históricos.
Deste modo, uma classe social desprivilegiada pode ter a leitura como
aquela prestigiada pelo grupo social dominante.
Quando perguntamos à professora D, em quais teorias se fundamentava
para trabalhar com a leitura junto aos seus alunos da EJA, ela respondeu-nos:
“É teorias, acho que informação. É senso
crítico. Porque a pessoa não pode só lê e aceitar
tudo o que ela está lendo. Ela tem também que concordar
ou não. É um direito. É um livre arbítrio.
Então, eu acho que é o, é o básico: informação
e senso crítico”.
Para a professora D, teorias são informação e senso
crítico. Certamente, que toda teoria é uma informação
constituída de princípios e conceitos, pois a ciência
que ela representa necessita de rigor, objetividade e de senso crítico.
Entretanto, na fala da professora não ficou explícita a
teoria em que ela se ampara para trabalhar com a leitura junto a seus
alunos. Deste modo, posso inferir que a professora D, ainda, não
tem clareza da importância de uma teoria para amparar a prática
pedagógica ao trabalhar com a leitura.
O professor E amplia o conceito de leitura quando, fala que:
Leitura pra mim é tudo. [...] Por exemplo, você
pode ler. [...]. Assistir uma novela e fazer uma leitura daquela novela,
hoje. Então você vai ver intertexto de livros como “Makhbé”
e “Lia”. [...] A leitura é isso: você interpretar
o que está passando pra você. [...] é a leitura que
o professor está passando para você. [...] não só
a leitura do Cânone [...], a leitura do Shakespeare, mas a leitura
para mim é muito abrangente, hoje. [...] pode ser a leitura de
um filme. [...] a leitura pra mim é como a linguagem. Ela é
muito abrangente.
Assim, leitura para o mesmo professor é tudo. É
ler uma novela, um filme. É a intertextualidade entre um texto
e outro. É interpretar. É ler a fala de um professor. Leitura
não é apenas ler os livros clássicos. Ela é
abrangente como a linguagem. A fala do professor E, apresenta conceitos
bastante atualizados de leitura, pois a leitura como o professor concebe
vai além da escrita, da decodificação das palavras.
Inclui a interpretação dos mesmos, a intertextualidade,
ou seja, a interlocução que ocorre entre os textos.
Neste sentido, reportamo-nos a Bakhtin (1988) quando, este autor, afirma
que o diálogo é uma das formas mais importantes da interação
verbal, a qual não se restringe à comunicação
face a face, mas pode ser um ato de fala impresso num livro. Por isso,
estendendo à leitura esse conceito de diálogo de Bakhtin,
vejo que na leitura também ocorre esse diálogo, quando há
intertextualidade de leituras, interpretações e idéias
de um autor as quais se propagam postas em diversos livros, textos. E,
mais, a leitura é sempre situada num contexto sócio-histórico-ideológico.
Segundo o professor E, as teorias que ele utiliza para amparar sua prática
pedagógica junto aos alunos da EJA, são: “Olha, eu
tenho. Eu comecei com Saussure, tem Ducrot. Enfim, eu não sei me
basear, são muitos textos. Muitos autores. [...] eu tenho me baseado
muito na questão da Semiótica, na leitura. [...] sem os
alunos perceberem que eu estou trabalhando isso, não vou falar
sobre isso com eles.”
Evidencia-se na fala do professor E, a dificuldade que é para ele
entender o significado da teoria, pois são muitos textos, autores.
Começou com Saussure e Ducrot. Afirma ter-se amparado nas teorias
da Semiótica, mas não esclarece que teorias são estas.
Isto nos permite inferir que o professor E, ainda não tem clareza
em que teoria de leitura pode se basear para trabalhá-la. No referencial
sócio-histórico, a leitura é contextualizada, não
é somente a decodificação de letras, palavras, mas
vai além, é pensar que a leitura se dá numa sociedade,
portanto o leitor é um sujeito que possui uma condição
de classe, portanto a leitura é “[...] uma prática
social”. (BRITTO, apud SILVA, 2002, p. 14).
Para a professora F, leitura é “O meu objetivo quando trabalho
com a leitura é fazer com que o meu aluno entenda aquilo dentro
de um contexto. [...] ler não é só decifrar o que
está escrito. [...] é interpretar, entender, saber o que
ele significa, relacionar aquilo com um acontecimento passado”.
Há na fala da professora F um conceito interessante de leitura,
um significado moderno, pois a leitura não é decifrar somente
o que está escrito, extrapola o escrito. O leitor interpreta, entende
para poder relacionar o lido com acontecimentos do passado. E, mais com
acontecimentos do presente, do contexto sócio-histórico.
Ao ler o leitor lê com seus conhecimentos prévios, portanto
com seus valores, de um lugar social. Como confirma Silva (2002, p. 21),
“[...] a leitura é uma prática social, por isso mesmo,
condicionada historicamente pelos modos da organização e
da produção da existência, pelos valores preponderantes
e pelas dinâmicas da circulação da cultura.”
Sobre as teorias de leitura que amparam sua prática docente, a
professora F assinala que:
Eu não sigo uma teoria, assim. Eu, vai do momento,
do que que eu quero pra aquele meu trabalho. De que forma eu vou trabalhar
aquela leitura. Seé, por exemplo, a gente tem vários objetivos:
a compreensão, a contextualização, a entonação,
diversas formas de se ler o mesmo texto. Então, vai depender do
momento, mas uma teoria, assim.
Na fala da professora F, fica claro que a mesma não
segue nenhuma teoria para trabalhar com a leitura junto aos jovens e adultos.
Neste caso, também é possível inferir que a professora
F, também, ampara a sua prática pedagógica no empirismo.
Ao ser questionada sobre qual teoria utiliza para aparar sua prática,
a professora H, respondeu através da escrita que a teoria é:
“Um mecanismo necessário para o estudo da língua,
ou melhor, compreensão dos significados”.
No depoimento escrito da professora H, a leitura surge como um mecanismo
para se estudar a língua. Leitura é compreender significados.
Por conseguinte, a leitura necessita ser entendida como um mecanismo não
somente de estudar a língua, mas um mecanismo sócio-histórico-ideológico.
Além de ser compreensão de significados, a leitura propicia,
como linguagem em interação ao meio social, ler não
apenas os sentidos contidos na palavra, mas aqueles que extrapolam as
palavras, os sentidos escondidos nas entrelinhas do texto. Desta forma,
a leitura está ligada a uma história do leitor, de seu lugar
social. Pode proporcionar ao leitor tornar-se mais crítico, portanto,
autônomo.
Deste modo, “[...] pela leitura crítica o sujeito abala o
mundo das certezas (principalmente as da classe dominante), elabora e
dinamiza conflitos, organiza sínteses. Enfim, combate assiduamente
qualquer tipo de conformismo, qualquer tipo de escravização
às idéias referidas pelo texto.” (SILVA, 2002, p.
26). Por isso, a leitura carrega no seu cerne sentidos múltiplos,
uma vez que pode servir de ocultação de ideologias para
paralisar idéias contrárias à exploração
de uma classe social sobre as outras classes mais privilegiadas.
Ao perguntarmos à professora H, sobre em quais teorias ela se ancora
para trabalhar com a leitura junto a seus alunos da EJA, ela não
nos respondeu. Talvez, a professora H não tinha o que nos escrever,
logo, ainda não tinha pensado sobre uma relação entre
teoria e prática docente, e mais, uma amparando a outra. Provavelmente,
a professora H como os demais professores acima citados, não tenham,
ainda, definição de qual ou em quais teorias poderiam amparar
suas práticas docentes para trabalharem com a leitura junto aos
educandos.
4. Algumas Considerações
Verificamos que a graduação em Letras não
garantiu aos professores de Língua Portuguesa da EJA a apropriação
de conhecimentos capazes de sanar essa lacuna em relação
às concepções de lingua(gem) e de leitura como elementos
sócio-históricos. Os eventos de capacitação
dos quais eles participaram, nos últimos três anos, também,
não lhes asseguraram novas concepções sobre esses
temas.
Isso significa dizer que um investimento aleatório na formação
profissional desses professores não lhes garantiu a apropriação
de teorias da lingua(gem) e da leitura. A apropriação de
conhecimentos sobre a língua(gem) e a leitura, por parte dos professores
necessita ser contínua, gradativa, sistemática e da formação
do hábito individual de leitura. Os conhecimentos sobre a leitura
não se darão no vazio, necessitam basear-se nos conhecimentos
de mundo desses professores, trazendo-lhes a possibilidade de refletirem
sobre os mesmos e de maneira consciente irem escolhendo seus referenciais
teóricos de língua(gem) e de leitura. Sendo que, esses referenciais
não virão aos professores como um produto acabado, virão
gradativamente, em um processo contínuo de apropriação
do conhecimento.
Por conseguinte, os professores de Língua Portuguesa da EJA que
participaram desta pesquisa, tanto quanto os demais professores, que atuam
nos diferentes níveis e modalidades de ensino, precisam de uma
educação contínua para ressignificar suas concepções
de lingua(gem) e de leitura. A educação continuada segundo
Pinto (1994, p. 35) “[...] é histórica não
porque se executa no tempo, mas porque é um processo de formação
do homem pra o novo na cultura, do trabalho, de sua autoconsciência.”
Assim, a apropriação de novos conhecimentos, de concepções
de linguagem e de leitura, ocorrem num processo contínuo e relacionam-se
ao que cada sujeito pensa sobre eles considerando o momento sócio-histórico-cultural
em que se encontram.
Referências
ALKMIM, Tânia. Sociolingüística. In:
MUSSALIM, Fernanda e BENTES, Anna Christina (orgs.). Introdução
à Lingüística: domínios e fronteiras. V. 1.,
3 ed., São Paulo: Editora Cortez, 2003.
BAKHTIN, Mikhail(VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. [Trad.
Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira com colaboração de
Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz]. 4 ed.
São Paulo: Hucitec Editora, 1988.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. [introdução
e trad. Paulo Bezerra; prefácio à edição francesa
Tzvetan Todorov]. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção
Biblioteca Universal).
DUBOIS, Jean; GIACOMO, Mathée; GUESPIN,Louis; MARCELLESI, Christiane
e Jean Baptiste; MEVEL, Jean-Pierre. Dicionário de Lingüística.
[Trad. Frederico Pessoa de Barros,Gesuína Domenica Ferretti, John
Robert Schmitz, Leonor Scliar Cabral, Maria Elizabeth Leuba Salum e Valter
Khedi]. São Paulo: Editora Cultrix, 1973.
FREIRE, Paulo. Da leitura do mundo à leitura da palavra. In: BARZOTTO,
Valdir Heitor (Org.). Estado de leitura. Campinas, SP: Mercado de letras;
Associação de Leitura do Brasil, 1999. (Coleção
Leituras no Brasil).
______; SHOR, Ira. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. [Trad. Adriana
Lopez], revisão técnica Lólio Lourenço de
Oliveira. 10 ed. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 2003.
GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula: leitura
e produção. 8 ed. Cascavel: ASSOESTE, 1984.
LARA, Gláucia Muniz Proença e DANIEL, Maria Emília
Borges. Apostila de Língua Português: princípios básicos
de leitura e produção de textos. Campo Grande/MS: UFMS/Centro
de Ciências Humanas e Sociais/Curso de Letras, 2000.
MELO, José Marques de. Os meios de comunicação e
massa e o hábito de leitura. In: BARZOTTO, Valdir Heitor (Org.).
Estado de leitura. Campinas, SP: Mercado de letras: Associação
de Leitura do Brasil, 1999. (Coleção Leituras no Brasil).
MENDONÇA, Marina Célia. Língua e Ensino: políticas
de fechamento. In: MUSSALIM, Fernanda e BENTES, Anna Christina (Orgs.).
Introdução à Lingüística: domínios
e fronteiras. V. 1., 3 ed., São Paulo: Editora Cortez, 2001.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 2 ed. São Paulo: Cortez;
Campinas, SP: Editora da Universidade de Campinas, 1993. (Coleção
passando a limpo).
PINTO, Álvaro Vieira. Sete lições sobre educação
de adultos. 9 ed. São Paulo: Cortez, 1994.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 30 ed. Campinas, SP: Autores Associados,
1995. (Coleção polêmicas do nosso tempo; v. 5).
SILVA, Ezequiel Theodoro da. Criticidade e Leitura: ensaios. 1ª reimpressão.
Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do
Brasil (ALB), 2002. (Coleção Leituras do Brasil).