Luciane Vieira Palma - Faculdade de Educação
/ FE - Unicamp
Apontada por muitos escritores como um gênero literário
mestiço, híbrido, ocupando algum lugar entre o jornalismo
e a literatura, a crônica representa para mim uma forma menos estéril
e imparcial de apresentação dos resultados obtidos na minha
pesquisa de mestrado – “No Morumbi, entre meninos, meninas
e tambores: crônicas do cotidiano de uma ONG em São Paulo”.
Narrar os (des)caminhos que me levaram a esta opção, bem
como discutir os pressupostos teóricos no qual se baseia é
o objetivo desta comunicação.
Iniciei minha pesquisa de mestrado em 2003. Minha proposta era conhecer
e analisar o cotidiano dos trabalhos desenvolvidos por uma ONG (Organização
Não-Governamental), a Associação Meninos do Morumbi,
localizada na cidade de São Paulo/ SP para retirar possíveis
implicações da metodologia de trabalho adotada pela mesma
para a educação escolar, de modo que os êxitos por
ela obtidos em termos educacionais apontassem caminhos e/ ou alternativas
para a melhora da qualidade do ensino nas escolas.
A Associação Meninos do Morumbi (MM), foi fundada em 1996
por um professor de bateria, morador do bairro do Morumbi em São
Paulo/ SP, que no início ensinava garotos das imediações
deste mesmo bairro a tocar instrumentos de percussão. Nesta fase,
isto ocorria na garagem de sua casa, mas devido ao aumento do número
de interessados, passou a fazê-lo nas ruas. Hoje, a Associação
conta mais de três mil integrantes entre meninos e meninas e já
possui uma sede própria onde, além das tradicionais aulas
de percussão, também são oferecidas outras atividades
como dança, cavaquinho, jiu-jitsu, capoeira, fotografia, escultura,
áudio-digital, moda , teatro, informática e inglês.
Vale ressaltar que toda criança ou adolescente que queira fazer
parte da Associação Meninos do Morumbi deve obrigatoriamente
fazer aulas de percussão ou de dança. A obrigatoriedade
destas atividades se deve à formação da chamada “Banda-show”
que, pode-se dizer, é a razão de ser dos Meninos do Morumbi.
A inclusão de um integrante na “Banda-show”não
é automática. Primeiramente é necessário que
o pretendente se dedique às atividades obrigatórias e demonstre
evolução nos quesitos definidos e exigidos pelos professores
de cada curso - e também por seu maestro no que se refere especificamente
à percussão. Por não ter um número limite
de participantes, via de regra a ninguém é impedida a participação
na banda, desde que devidamente preparado.
A Associação conta com uma equipe dos mais diversos profissionais
responsáveis pelo andamento do projeto. Dentre estes há
psicólogos, professores, músicos, profissionais ligados
à área administrativa etc. Toda esta estrutura é
mantida financeiramente por importantes empresas do setor privado como
Pão de Açúcar, parceira do MM, e o apoio de outras
como Cultura Inglesa, Britsh Airways, Vitae, além da Secretaria
Municipal de Assistência Social de São Paulo, Unicef e Ministério
da Cultura.
Vale ressaltar que é possível a participação
de qualquer criança ou adolescente nas atividades da MM, independentemente
da sua condição sócio-econômica. A única
exigência que se faz é que o interessado esteja freqüentando
a escola no período oposto ao freqüentado na MM.
A maior parte dos freqüentadores é moradora dos bairros Campo
Limpo, Paraisópolis, Morumbi, Vila Sônia, Jardim Jaqueline,
Real Parque, Caxingui, e Municípios de Taboão da Serra e
Embu, na Grande São Paulo.
Embora esta associação não tenha, no processo de
sua criação, movimentos ou associações comunitárias
militantes por detrás, isso necessariamente não determina
o seu caráter emancipador tampouco seu caráter meramente
assistencial, uma vez que dentre estas duas vertentes que, segundo GOHN
(2000), são passíveis de serem encontradas sob a égide
de Terceiro Setor, há inúmeras combinações
possíveis em se tratando de uma realidade específica, podendo
ser explicitadas, porém, jamais esgotadas, na vivência cotidiana
no/ do projeto.
Sendo assim, em julho de 2003 iniciei o trabalho de observação
das aulas ministradas na Associação. Nesta que irei chamar
de primeira fase da pesquisa, eu entrava na sala com a autorização
prévia do professor e me sentava num canto onde pudesse observar
e anotar tudo quanto se passava nestas aulas que me chamasse atenção:
disposição dos alunos na sala, a relação professor-aluno,
aluno-professor e aluno-aluno, atividades oferecidas, forma como o professor
as conduzia, como era o comportamento dos alunos na sala etc. Além
disso, às vezes conversava com o professor no final da aula e com
um ou outro aluno que encontrasse no corredor ou no pátio. Mas
desde a minha chegada na Associação até a hora de
ir embora, tudo o que lá eu visse, registrava no meu caderno de
campo.
Estas observações tinham como foco de análise a forma
como estes cursos eram planejados e também seus conteúdos,
suas dinâmicas, assim como os critérios e forma utilizada
na avaliação.
Na verdade, estes focos observados nos atendimentos e cursos fazem parte
de uma complexa rede de relações que é muito mais
ampla, construída para além dos limites de suas intenções
específicas. Sua construção se dá nos diversos
e dinâmicos espaços e tempos da vida cotidiana, onde e quando,
segundo ALVES (2001), são muito mais difíceis de captar,
pois nunca estão dentro dos padrões pré-determinados.
Por isso, observá-los era ir além do que se via, do que
se ouvia, do que se sentia – desde cheiros até texturas –
passando (por que não?) pela própria intuição.
Procurei, então, nesta primeira fase, realizar anotações
que fossem muito além do que eu observava durante as aulas dos
cursos oferecidos na Associação, incluindo até situações
aparentemente simples vividas no dia-a-dia, como encontros num corredor,
na cantina, no portão da sede - situações estas que
muitas vezes são consideradas irrelevantes, mas que podem se tornar
imprescindíveis para a compreensão da lógica do cotidiano
da Associação.
A chamada pesquisa no/ do cotidiano em cujos pressupostos se baseou este
estudo, tem quatro aspectos que, segundo ALVES (op. cit) são necessários
na busca de uma cada vez maior e mais profunda compreensão da complexidade
que envolve o próprio cotidiano. Dentre eles, destaco um inicialmente:
“É preciso executar um mergulho com todos os sentidos no
que desejo estudar” (p.19, grifo da autora), algo que vai completamente
contra o paradigma moderno de ciência que presume/ exige o quanto
possível, um distanciamento do pesquisador do seu objeto de pesquisa.
E foi principalmente este aspecto que motivou, nesta fase do estudo, o
aparecimento de alguns pontos relativos à metodologia de trabalho
que me incomodaram.
Conquanto acreditasse que fosse possível pesquisar o cotidiano
estando inserida nele, como fazer isso num local onde eu era uma desconhecida,
uma peça colocada no meio de um jogo já iniciado? Várias
vezes, nos dias em que estive na sede da MM “produzindo” meus
dados, tive a sensação de lá ocupar aquilo que SOUZA
(2003) chama de “entrelugar das formas complexas, híbridas
e miscigenadas do próprio cotidiano” (p. 245): eu não
fazia parte daquele cotidiano e tinha a pretensão (?) de desvendá-lo,
sem, porém, ter sobre ele um olhar asséptico. Eu não
era/ queria/ podia ser uma pesquisadora convencional, porém me
sentia muitas vezes perambulando pela Associação: sem par,
sem vínculos, sem laços... Isso foi minimizado nas vezes
em que lá cheguei e alguém me cumprimentou com um beijo,
por exemplo, e, maximizado, quando pessoas já conhecidas passavam
por mim indiferentes , sem dizer sequer um “oi”.
Lembro-me de me sentir constrangida, envergonhada, invasora... Resquícios,
talvez, do meu modo cartesiano de ver e viver o pesquisador: aquele que
recolhe dados, analisa-os friamente e a distância, que tem olhos
exclusivos para o seu objeto de análise sem considerar o seu contexto
e a complexidade do todo em que está inserido. Esta que SOUZA (2003)
chama de “situação de cotidianeidade”, como
tal
parece indicar a existência de fronteiras no cotidiano,
uma rede de contextos em que muitas significações interagem,
abrindo possibilidades de entrelugares: deslocamentos que realizam estranhamentos,
como uma ponte que se desloca e nos leva a transitar por territórios
culturais diferentes, realizando uma estranha tessitura ao caminhar, ‘aqui
e lá, de todos os lados, (...) para lá e para cá,
para frente e para trás (Bhabha, 1998, p.19), num movimento de
ir e vir, no território do inter, nos invadindo e nos desnorteando,
provocando distanciamento do familiar, e exigindo novas significações
(p. 246, grifos da autora).
Enquanto organizava os dados produzidos nesta fase, minha
dificuldade de inserção no espaço do estudo se tornou
ainda mais presente, pois relendo-os, sentia o meu distanciamento daquele
cotidiano, e se tornava clara a qualidade do meu olhar sobre o mesmo:
um olhar externo e aparentemente superficial que se traduziu em textos
puramente descritivos, que não refletiam a dimensão da experiência
vivenciada tampouco a sua complexidade.
A partir destas constatações, um novo rumo teria que ser
dado à pesquisa, tendo como certo que esta primeira fase de muito
valeu para uma primeira aproximação, para um tateamento
daquela realidade, tão rica e complexa como qualquer outra e tendo
como certo também o que nos lembra PAIS (2003):
na aplicação de métodos qualitativos
os desenhos de investigação são emergentes e em cascata,
uma vez que se vão elaborando à medida que a investigação
avança. Os questionamentos são contínuos e as reformulações
constantes, em função da descoberta de novos dados e de
novas interpretações. Esta metodologia flexibiliza os procedimentos
de investigação, permitindo uma adequação
às múltiplas realidades que se vão descobrindo (p.144,
grifos do autor).
Sendo assim, a decisão tomada em conjunto com
a minha orientadora de pesquisa foi a seguinte: a partir de 2004, eu iria
passar a pesquisar o cotidiano da Associação Meninos do
Morumbi como uma integrante, ou seja, eu iria freqüentar os cursos
da MM como aluna. Isso contribuiria para a construção de
um outro canal de comunicação com alunos e professores e
uma outra forma de perceber aquela realidade: sentindo-a na pele, encarnando
um dos papéis mais importantes da Associação ou o
motivo de sua existência.
Tendo sido autorizada pela Associação a assim proceder,
dei início a essa nova fase da pesquisa.
Ao mesmo tempo em que me sentia eufórica por estar na eminência
de vivenciar uma nova forma de pesquisar, forma esta que me parecia muito
mais próxima dos pressupostos metodológicos que eu utilizava,
sentia-me meio constrangida por vivê-la. Afinal de contas, eu iria
fazer coisas que jamais tinha feito na vida como tocar um instrumento,
e juntamente com pessoas bem mais novas: será que eu conseguiria
um desempenho como na média aqueles jovens e crianças se
desempenhavam ou daria vexame? Será que eu teria dificuldades muito
sérias para aprender o que ensinavam nos cursos? Será que
eu atrapalharia o andamento das
Estas preocupações, embora não relacionadas diretamente
aos meus objetivos de pesquisa, podem dar a medida do que há de
mais humano na minha tentativa de mergulhar cada vez mais fundo no cotidiano
dos MM: os sentimentos, que alguém até poderia chamar ou
classificar como tolos ou mesmo infantis, porém como quaisquer
outros sentimentos, espontâneos. E eu os utilizei a meu favor para
me aproximar dos outros integrantes das turmas. No primeiro dia de aula
de percussão, por exemplo, fiquei conversando com alguns integrantes
sobre já saberem ou não tocar algum instrumento, se estavam
ansiosos para começar a aula, se estavam sentindo um “friozinho
na barriga”... E isso me ajudou a me descontrair e acho que também
a alguns deles.
Interessante notar como há uma dança de papéis nesta
situação: torno-me uma aluna dos MM para poder me aproximar
da sua realidade. Este papel me absorve tanto que tenho que lidar com
sentimentos típicos de alunos em início de curso, mas ao
mesmo tempo não devo perder a noção do meu verdadeiro
papel de pesquisadora em função do qual me tornei uma aluna.
Mais uma vez sou envolvida pelo hibridismo típico da complexidade
do cotidiano.
Freqüentei como aluna três cursos nos MM: percussão,
dança e fotografia.
Posso dizer que muitas coisas mudaram a partir do momento que passei a
ser esta aluna/ pesquisadora. Como previsto, fiquei muito mais próxima
das pessoas principalmente dos alunos, mas também de funcionários
e professores.
Além desta participação como integrante, tenho me
valido de outros instrumentos de investigação, como encontros,
trocas de idéias com a equipe da Associação (e também
com pessoas que freqüentam/ trabalham/ visitam a MM). Nestes momentos,
procuro captar suas posições, suas percepções,
suas práticas, seus referencias teóricos, formação,
experiências em educação e/ ou outras áreas,
apreciação que fazem do próprio trabalho no conjunto
das ações educacionais da Associação.
Da mesma forma, continuei conhecendo o que pensavam as crianças
e jovens da Associação, procurando saber o que os motivava
a freqüentarem os programas que a mesma lhes propicia e quais interferências
esses programas têm na vida escolar de cada um.
Também foi muito interessante acompanhar os contatos que a Associação
fez com as famílias dos integrantes, através do programa
“Família e seus contextos” , o que contribui para que
de certa forma seja fosse conhecido pensam os pais em relação
ao trabalho realizado na Associação.
Além disso, tenho criado momentos de entrevista formais com várias
pessoas da MM, entrevistas estas que gravadas em cassete.
Como se vê, minha proposta metodológica implicou em reunir
uma quantidade tão grande quanto diversificada de informações
ao longo da pesquisa e para organizá-las não poderia perder
de vista o fato de que o cotidiano é algo que se tece diariamente,
e que estas informações fazem parte de um conjunto de conhecimentos
interligados constante e infinitamente. Além disso, é imprescindível
que esta organização dos dados produzidos explicite que
aquilo que foi visto, sentido, destacado é fruto da minha percepção
e por isso carregado, como não poderia deixar de ser, da minha
forma de ver o mundo, de interpretar a realidade. Ou seja, é preciso
prezar para que a organização dos dados produzidos especifique
o lugar de onde fala o pesquisador. Este gesto, segundo NAJMANOVICH (2001),
não é um mero indicativo, nem uma regra
protocolar. Ao contrário, trata-se de uma afirmação:
ética, porque indica a decisão do falante de fazer-se responsável
por seu discurso; estética, já que reconhece a importância
do conteúdo, da forma e dos vínculos específicos
que esta cria; e política, porque pretende um lugar no
emaranhado de relações contemporâneas (p. 8).
Desta forma, retorno o início deste texto pois
considero oportuno ainda destacar mais um dos quatro aspectos levantados
por ALVES (op. cit.) em relação à pesquisa no/ do
cotidiano, sendo ele “narrar a vida e literaturizar a ciência”.
Isto, segundo a autora, se traduziria numa escrita que
não obedeça à linearidade de exposição,
mas que teça, ao ser feita, uma rede de
múltiplos, diferentes e diversos fios; que pergunte muito além
de dar respostas; que
duvide no próprio ato de afirmar, que diga e desdiga, que construa
uma outra
rede de comunicação, que indique talvez, uma escrita/ fala,
uma fala/ escrita ou uma fala/
escrita/ fala (p.29, grifos da autora).
Sendo assim, apresentarei os dados produzidos durante
a minha imersão no cotidiano da Associação Meninos
do Morumbi na forma de pequenas crônicas, todas baseadas em fatos
vivenciados neste cotidiano, porém (re)inventando-o. Esta “reinvenção”
me permitirá expressar minhas idéias de uma forma muito
mais envolvente e menos estéril e asséptica do que a mera
descrição permitiria. Da mesma forma, permitirá ao
leitor participar ativa, pessoal e inteiramente daquilo que ocorre na
Associação e que ao meu ver é passível de
análise. Sendo assim, nestas crônicas, virão à
tona as percepções que tive durante os episódios,
o que presumi e o que inferi sobre o fato narrado. Ainda segundo ALVES
(op.cit), “é preciso pois que eu incorpore a idéia
que ao narrar uma história, eu a faço e sou um narrador
praticante ao traçar/ trançar as redes dos múltiplos
relatos que chegaram/ chegam até mim, neles inserindo sempre, o
fio do meu modo de contar” (p.32, grifo da autora). Acredito que
esta é, se não a única, uma das poucas formas que
me permitirá conduzir o leitor para o interior da Associação
e fazê-lo entender pouco a pouco o que lá se vive e se faz
na busca de atingir os objetivos a que a própria Associação
se propõe.
Se o meu estudo estivesse pautado nos pressupostos da ciência moderna,
para demonstrar a validade dos dados produzidos, eu deveria utilizar nesta
tradução uma linguagem que configurasse a minha neutralidade
em relação ao conhecimento que estaria sendo produzido e,
a minha imparcialidade diante da realidade vivenciada. Para isso, deveria
me valer de um discurso impessoal e tentar descrever da forma mais clara
e objetiva possível, e por isso mesmo estéril, toda a minha
experiência.
Ocorre que este trabalho se pauta nos pressupostos pós-modernos
de ciência ou, como diria SANTOS (1995), no “Paradigma Emergente”.
Sendo assim,
a transgressão metodológica repercute-se
nos estilos e géneros literários que residem à escrita
científica. A ciência pós-moderna não segue
um estilo unidimensional, facilmente identificável; o seu estilo
é uma configuração de estilos construída segundo
o critério e a imaginação pessoal do cientista. A
tolerância discursiva é o outro lado da pluralidade metodológica
(p.49).
Diante disso, a opção por apresentar os dados na forma de
crônicas responde a vários anseios deste estudo.
Primeiramente, no que se refere à própria natureza da Crônica,
que é considerada por muitos escritores como um gênero mestiço,
híbrido pois ocuparia um espaço (por que não um “entrelugar”?)
entre o jornalismo e a literatura . Ou de uma forma mais poética,
atribuiria lirismo ao cotidiano.
Antes de um olhar lírico sobre o cotidiano dos MM, mas não
me furtando a ele, o que eu buscarei com as crônicas escritas a
partir da minha vivência na Associação, é comportar-me
como um cronista em relação a um jornalista. Este último
“tende a buscar a verdade sem deixar margens a interpretações
(...) [como pretende um pesquisador com tendências positivistas]
enquanto o cronista abandona a neutralidade e a impessoalidade”
ao narrar a vida.
Um outro fator que me estimula a escrever crônicas sobre minha vivência
na Associação é que estes pequenos textos poderão
ser encarados como uma alegoria ao próprio cotidiano que é,
por si só, fragmentado. Os fatos cotidianos não obedecem,
por assim dizer, a uma linearidade temporal, não obedecem a uma
sucessão lógica. Ao contrário, os fatos se entrecortam:
tudo se passa ao mesmo tempo e de alguma forma se relaciona a tudo, o
que dá margem a infinitas formas de se tecer este cotidiano.
Ao escrever uma crônica, estarei iluminando uma parte deste cotidiano,
um fragmento do mesmo, em contraposição ao obscurecimento
da totalidade do real, a qual jamais possuiremos. Segundo PAIS (op. cit)
“nesta forma de aproximação ao social, a realidade
apenas se insinua, não se entrega. Mas é assim mesmo que,
na perspectiva da sociologia do quotidiano, ela tem de ser imaginada,
descoberta, construída” (p. 27).
Além disso, embora as crônicas venham a tratar de uma situação
específica, vivenciada, os detalhes que a enriquecerão não
necessariamente terão ocorrido no mesmo espaço-tempo. São
detalhes oriundos de outras vivências, outras observações,
frutos de conversas e/ ou entrevistas.
PAIS (op.cit) nos ensina sobre o uso da literatura como fonte documental
que “com todos os seus artifícios, o texto literário
inventa a trama que encadeia os acontecimentos na vida cotidiana, não
apenas dando sentido à história, como produzindo também
uma historicidade: significativa,representativa”(p.155) A linguagem
literária é uma contraposição à linguagem
gélida, esvaziada, redutora em que se transformou a linguagem utilizada
nos textos científicos, uma linguagem, repito, que responde às
suas intenções de redução do real ao formal,
à reificação da realidade, ao engodo da manutenção
da distância e neutralidade do pesquisador em relação
ao seu objeto de pesquisa.
Para que o leitor possa conciliar a apreensão desse cotidiano,
a sua complexidade com o que pretendo atingir como objetivo deste estudo,
estas crônicas terão uma organização particular.
Serão compostas por fatos do cotidiano que de alguma forma respondam
às questões postas nesta pesquisa - podendo ser recolhidas
do diário de campo, das gravações das aulas, das
entrevistas – e discussões e referências teóricas
que permitam e/ ou de alguma forma contribuam para elucidá-lo.
Sendo assim, à margem de cada uma das crônicas, trançarei
comentários, discussões e posições teórico/
metodológicas que funcionarão como um ponto de encontro
entre mim e o leitor. Nesse ponto vão se cruzar o meu modo de explicar
e entender um dado com aquilo que o leitor pensar sobre ele, concordando,
discordando, ampliando a discussão.
Desta forma, não nos bastará um único referencial
para compreender este cotidiano e nem mesmo o que se aprendeu com a ciência
moderna, que divide para analisar. Será preciso multiplicar –
as teorias, os conceitos, os métodos - (aquilo que Alves (op. cit.)
chama de “beber em todas as fontes”) para dar conta, sempre
parcialmente, do que se apreende dos fatos conhecidos. Para PAIS (op.cit.),
ao contrário das tradições sociológicas
mais positivistas, que exigem um ‘quadro teórico de partida’
que por vezes, enquadra excessivamente o percurso da investigação,
em ambiente qualitativo a primazia deve colocar-se em torno das problemáticas
de investigação, embora construídas com sensibilidade
teórica, naturalmente. O esforço de teorização
mais criativo vem depois, em articulação directa com a pesquisa
de terreno (p. 146).
Em relação a esta questão, cabe
também ressaltar que este estudo se identifica com aquilo que PAIS
define como “lógica da descoberta”, que instiga o pesquisador
a ir muito além daquilo que suas hipóteses iniciais e o
seu quadro teórico a princípio lhe permitiriam, e por caminhos
que não seria capaz de prever. Rompe, portanto com a chamada “lógica
da demonstração”, que obriga o pesquisador a uma perseguição
tão rígida quanto obstinada das suas hipóteses iniciais,
dificultando, ou até mesmo impedindo, que se deixe sensibilizar
pela diversidade, riqueza e complexidade que envolve cada fenômeno.
Os estudos de Michel de Certeau, Edgar Morin, Boaventura de Sousa Santos
e José Machado Pais serão nossos companheiros, nossos faróis,
aqueles que nos permitirão dinamizar nossa percepção
do cotidiano em estudo. Além destes, outros autores certamente
surgirão durante o percurso deste estudo e a eles recorrerei sempre
que puderem emprestar à narrativa uma profundidade maior e um melhor
entendimento, nessa tentativa de descobrir, de ir além do que minhas
idéias são capazes de atingir, de antever, de especular.
A seguir, a título de ilustrar e de orientar o leitor sobre como
pretendo analisar o cotidiano em estudo, por meio da crônica, apresento
uma de minhas imersões nessa metodologia e saliento que a forma
como me propus a realizar os comentários - à margem de cada
crônica - é apenas uma possibilidade de analisar os dados
e por isso aguardo a manifestação dos que compõem
esta banca em relação à sua pertinência.
Minha intenção é atingir os objetivos deste trabalho,
sem contudo, tirar dos possíveis leitores a possibilidade de se
envolverem com o assunto tratado e ter- me apenas como mais um companheiro/
interlocutor.
Certamente o sentido que foi engendrado pelo texto não se esgota
no que eu pude beber do assunto até então.
Referências Bibliográficas
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das escolas na lógica das redes cotidianas. In: OLIVEIRA, Inês
B. de e ALVES, Nilda (Orgs.). Pesquisa no/ do cotidiano das escolas: sobre
rede de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
GOHN, Maria da Glória. Mídia, Terceiro Setor, MST: impactos
sobre o futuro das cidades e do campo.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar
o pensamento. Tradução por Eloá Jacobina. 5ª
ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001.
NAJMANOVICH, Denise. O sujeito encarnado: questões para pesquisa
no/ do cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
PAIS, José Machado. Vida cotidiana: Enigmas e revelações.
São Paulo: Cortez, 2003.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. (7ª.
ed.)
Porto:Afrontamento, 1995.
SOUZA, Maria Izabel Porto de. Fronteiras do cotidiano. In: GARCIA, Regina
Leite. Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A,
2003.