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  A ESCOLA COMO ESPAÇO/TEMPO DE ENSINAR E APRENDER: (IM)POSSIBILIDADES, DESAFIOS, DILEMAS, CONTRADIÇÕES E SABERES QUE DÃO COR E FORMA AO COTIDIANO DA ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS DAS CLASSES POPULARES.

Ivanda Alexandre Pereira– SME/FUMEC – Campinas

Questionar o cotidiano do qual sou parte integrante e sua relação com a sociedade em geral, bem como a minha constituição e a dos meus pares, tem sido a tônica da/na minha trajetória docente. A complexidade do processo pedagógico, marcado pela imprevisibilidade e heterogeneidade, me mobiliza a pensar sobre o meu próprio trabalho.
Talvez por isso, desde o início da minha formação, intuitivamente, eu constatasse que na escola, diante das incertezas e imprevisibilidades, um conhecimento prático é tecido cotidianamente, um conhecimento gerado na troca, na interlocução, no crescimento coletivo. Coletivamente, tentamos garantir a pluralidade de idéias e caminhos, o outro estabelece o confronto e a recriação de idéias. “Este movimento dá condições para que cada um se fortaleça como sujeito e, no coletivo, torne-se mais competente para formular alternativas viáveis de transformação do real.” (ESTEBAN e ZACCUR, p. 23, 2002)

PROBLEMATIZANDO O CONTEXTO DA PROFESSORA-PESQUISADORA
E não é apenas isso. A escola é um espaço heterogêneo que abriga uma diversidade de valores, cultura, ânimos, sentimentos, classes sociais e econômicas, entre outros. Nessa complexidade, como professora alfabetizadora, vivo e convivo com os dramas e dilemas de alunos/as e professoras, com o processo de alfabetizar letrando.
Pensando em superar esta dificuldade, na escola em que trabalho, temos um grupo de estudo que toma a prática pedagógica, como objeto de análise e reflexão aliada à teoria, em busca de compreensão e melhoria do ensino, no que diz respeito ao processo de se apropriar e saber fazer uso do ler e escrever.
A idéia da constituição deste grupo teve inicio quando cheguei na escola em que trabalho hoje (EMEF Humberto de Souza Mello-Campinas) em agosto de 2000, e me deparei com um ambiente de desesperança com o trabalho docente e a aprendizagem das crianças das classes populares. Esse conflito era vivido não só por minhas colegas, mas eu também me encontrava em crise com a minha identidade docente por conta da pesquisa do mestrado. Quando decidi me inscrever no programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da Unicamp no ano de 1999, no curso de mestrado, o foco da pesquisa que me propus fazer, seria olhar para a relação de ensino e argumentar a favor das aprendizagens de crianças das classes populares, mas no decorrer do processo de sistematização da pesquisa, ao lançar um olhar de compreensão para o meu esforço em ser professora em escolas públicas no município de Campinas, nos anos de 1999 e 2000, deparei-me, no início da observação do meu trabalho, com a imagem de uma professora que não se encaixava na imagem que eu pensara ter construído como profissional.
Isto me impulsionava a redimensionar o meu trabalho na tentativa de ver a minha intervenção modificada e reencontrar a identidade que parecia que eu não tinha ou que havia perdido, e, por conta disso, a pesquisa tomou outro caminho. Narrei minhas dificuldades, angústias e dores provocadas pela relação dicotômica entre o saber/fazer e fazer/saber, tanto como professora quanto como pesquisadora.
Mas deixemos a digressão e continuemos com a narrativa. Eu acreditava com convicção que a reflexão do cotidiano da nossa atuação aliada à teoria, nos daria possibilidades de enxergar a alfabetização como um processo e não um fim em si mesma na 1ª série do ensino fundamental, mas a idéia de constituição do grupo, só ganhou força em 2003. A angústia das professoras das segundas séries, no início de fevereiro daquele ano, era contagiante. Elas argumentavam que seus/suas alunos/as não estavam alfabetizados e não entendiam/aceitavam como é que crianças que não sabiam ler e escrever tinham sido aprovadas, e que não cabia a elas alfabetizar crianças numa 2ª série.
Como eu enxergava hipóteses de escrita das crianças, nas atividades que elas apresentavam para o grupo em reuniões de trabalho coletivo, fiz a proposta da constituição do grupo de estudo, novamente, e, começou a ganhar força. O grupo tinha o apoio e a adesão da Orientadora Pedagógica. Uma professora que estava afastada do trabalho e havia retornado, topou, pois estava com uma turma de terceira série com muitas dificuldades de leitura e produção de texto. Outra professora que tinha assumido uma classe de 1ª série, depois de muitos anos sem trabalhar com alfabetização, também topou, juntamente com um professor substituto que veio para a escola, naquele ano. A resistência estava justamente nas professoras que trabalhavam com as turmas das segundas séries.
Mesmo assim, iniciamos as discussões e reflexões em maio de 2003, com a adesão de uma das professoras das segundas séries, e de lá até hoje conseguimos dar alguns passos no sentido de enxergarmos as crianças das classes populares com mais esperanças e acreditar em possibilidades de superação dos desafios e das limitações existentes neste espaço/tempo de ensinar e aprender, mas ainda, não encontramos uma alternativa que desperte o “desejo” de aprender de algumas delas.
O choque entre a vontade de ensinar os alunos e as alunas a ler e escrever com competência – motivada pela responsabilidade política de romper com o círculo de pobreza e a falta de oportunidade que, às vezes, envolve as crianças com as quais trabalhamos, e a aparente “falta de vontade” de aprender, manifestada por algumas, tem provocado um conflito coletivo.
À medida que as reflexões foram acontecendo, fizemos a opção de observar também, as características socioculturais (comportamento, relacionamento, organização em sociedade...) do ser humano e refletir sobre elas, para compreender porque um número grande de crianças, com as quais trabalhamos, e a maioria é menino, demanda um tempo maior para serem alfabetizadas, e quem sabe, romper com o círculo da exclusão pelo menos neste espaço em que atuamos.
Observando o movimento das crianças, suas ações e reações, não só dentro da sala de aula, mas também nos horários de intervalo e aulas de educação física, percebemos que as crianças que têm mais dificuldades ou que requerem um tempo maior para aprender, são aquelas que apresentam “problemas” de relacionamento com seus pares diante de jogos que exigem cooperação entre elas e que têm muita dificuldade de se concentrar em uma atividade, ou assunto que a professora apresenta para a classe como um todo.
Essa dificuldade em lidar com o fracasso, é anterior ao seu ingresso na escola. Fora da escola, a criança conviveu/convive com algum tipo de violência, simbólica ou física, e isso motiva a descrença nela mesma.
Investigando junto às pessoas de seu convívio social, (mãe, avó, padrasto, tia, madrinha...), foi possível constatar na história de vida, que a criança conviveu com alguma experiência negativa: surras, castigos. Os adultos com os quais ela convive no seu dia-a-dia, alegam não saber mais o que fazerem para que, essas crianças, se adaptem às regras sociais construídas em outro lugar e que muitas vezes não se encaixam nos espaços de sua convivência.
Na escola, as manifestações das animosidades sociais aparecem de várias formas: conflitos dentro da sala de aula, nas aulas de educação física e nas horas do recreio (brigas, queixas de ameaças verbais ou “simbólicas, “desinteresse e resistência” em relação ao conhecimento historicamente construído, entre outros). Essa constatação nos demonstrou o quanto às crianças com as quais trabalhamos, necessitam serem mais atendidas afetivamente, além de fortalecer seus vínculos interpessoais e valorizar as demonstrações de afeto, cada vez menos freqüentes entre as pessoas.
Tem criança que o tempo em que ela passa na sala de aula, fica “catatonizada”, parece uma estátua, nem pisca, a não ser quando é “despertada” pela professora, e logo em seguida retorna ao seu “estado catatônico”, não respondendo às nossas provocações didáticas/pedagógicas.
O esboço do retrato das crianças que apresentam dificuldades em se apropriar do código ou que requerem maior tempo para se alfabetizarem com competência, é este, e parece que a organização da escola não atende mais a um número grande de crianças, que nos sinalizam a necessidade de as considerarmos como um todo. Afetividade, emoções, movimento e espaço físico se encontram num mesmo plano, e acredito na possibilidade de práticas que abordem idéias mais humanistas e que considerem essas questões no âmbito da sala de aula.
Com estas crianças, no processo de alfabetização a ruptura mais difícil de acontecer, é quando elas começam a associar fonema/grafema, relacionando escrita a referente e acreditando que basta apenas uma letra para cada som que elas falam. No momento em que percebem que o adulto ou colega mais capaz, não consegue ler o que elas escrevem, ou que a professora problematiza sua escrita, em conflito, se recusam terminantemente a escrever e demoram mais para se alfabetizarem, diferente daquelas que aceitam as provocações e desafios da professora e vão se apropriando do ler e escrever conforme as expectativas dos pais e da escola.

REEDUCAÇÃO DO OLHAR
O que fazer a partir daquilo que estávamos vendo, de modo que nossas crianças superassem o fracasso, se apropriassem e soubessem fazer uso do ler e escrever? Essa pergunta inquietava a todas nós, do grupo de estudo, e tem se tornado uma idéia fixa no sentido de encontrarmos respostas que nos ajudem a superar as limitações sentidas. Essa polêmica nos desafiava. Reconhecendo que teoria e prática compõem uma relação dialógica e dialética, nos movimentamos no sentido de dialogar com pesquisadores que nos ajudassem a compreender o compreender dos/das nossos/as alunos/as, uma vez que queríamos contribuir com a inclusão real e de fato.
Mas, a teoria, em grande medida, ao invés de contribuir com a nossa formação, com a revitalização da nossa prática, causa muitas vezes, a resistência, pois não nos reconhecemos no texto teórico, suas proposições se mostram insuficientes, e, em alguns casos, inúteis. Manzanares (2003), argumenta que “o bom professor é aquele que sabe provocar bem, na hora certa, de maneira adequada, e é capaz até de acelerar o ritmo da aprendizagem fazendo isso”. (Manzanares, 2003, p. 157, grifo meu).
Um argumento como este dificulta que o diálogo esboçado seja aprofundado pois, na escola estamos tentando, nos consideramos boas professoras, mas não conseguimos romper com a insegurança que algumas crianças apresentam diante do ler e escrever a partir do que elas já sabem, uma vez que elas já construíram o conceito de que o nosso sistema de escrita é ortográfico, e ela ainda não se apropriou completamente desse sistema.
Neste espaço/tempo de pensamento e de criação de conhecimentos múltiplos e complexos, tem profissional que gosta de ensinar, de ser professora, temos compromisso político, queremos que as crianças desfrutem de algo que para nós é valioso. Na tentativa de alcançar esse (des) propósito, lançamos mão, muitas vezes, de práticas diferenciadas numa mesma turma, pois aprendemos com as diferenças manifestas na sala de aula, que a criança trilha caminhos diferentes em busca da aprendizagem, e por que ainda tem criança que não aprende ou demanda um tempo maior para se apropriar com competência do ler e escrever? O que acontece que nós não estamos dando conta dos meninos? Quais são as questões sociais que as enredam?
Nós do grupo de estudo, reconhecemos que o currículo deveria ser diferente, mas o que fazer, se os professores das séries posteriores, da nossa escola, não pensam assim, e esperam que todos/as os/as alunos/as, cheguem na 5ª série e convivam em harmonia com o conhecimento escolar organizado no/pelo livro didático? Como elaborar um currículo e uma proposta pedagógica de modo que não se restrinja o conhecimento formal a ser trabalhado pelo aluno àquele diretamente relacionado à experiência cultural do educando, para que ele possa reagir com mais autonomia diante do conhecimento nas séries posteriores?
Nossas crianças que não aprendiam tinham déficit de atenção? Se tinham, como trabalhar com isso, reconhecendo que na maioria das vezes, o déficit de atenção, é de ordem social? Quais as relações entre memória e aprendizado? Quais as diferenças de raciocínio entre gêneros? Se o desenvolvimento do cérebro e seu funcionamento são função de fatores de ordem cultural e da organização social, do trabalho e das atividades de lazer (Lima, 2002), o que acontece com essas crianças em seu convívio social?
Como trabalhar com essas questões sem incorrer na “patologização” das dificuldades de aprendizagens? Como romper com o ciclo do “deixa a criança construir conhecimento, interagindo com o objeto, sem a mediação da professora?” Porque muitas vezes é possível perceber que bastava uma demonstração, para que a criança percebesse o que estava sendo solicitado.
Essas eram as questões, que nos inquietavam em um primeiro momento. Os problemas eram tantos e estavam emaranhados uns nos outros, perpassando questões que nem sequer supúnhamos existir. Decidimos iniciar o diálogo com Smolka (1996), em seu livro “A criança na fase inicial da escrita”. Primeiro, porque a conversa era sobre o processo de alfabetização, e segundo, o referencial teórico apresentado no livro, a abordagem histórico-cultural, parecia que iria nos ajudar a compreender a importância da mediação pedagógica no processo de ensinar e aprender.
Foi numa dessas conversas, que fiz a proposta de que as professoras que estivessem com as 1ªs. séries, éramos duas, acompanhassem sua turma até o final da 2ª série, dando continuidade ao processo de alfabetização, já que tínhamos constatado um alto índice de repetência na 1ª série em 2002 e as professoras da 2ª série argumentavam que não cabiam à elas alfabetizarem as crianças aprovadas e que não sabiam ler e escrever. A proposta foi aceita, mas não tínhamos colegas dispostas a assumirem as 1ªs. séries do ano seguinte. O que para mim não era um problema, eu esperava que as discussões ocorridas nos encontros fossem lhes oferecendo subsídios e elas adquirissem confiança para trabalharem com a alfabetização.
Foi o que aconteceu. Muito embora, uma das professoras que assumiu uma das turmas, não tenha feito por opção e sim porque queria trabalhar no período da manhã. Algumas professoras do grupo ficaram com receio, mas não pudemos impedir o fato. O receio se justificava mais pela questão de que ela fazia parte do grupo das professoras alfabetizadoras de 2002.
Enfim, o fato é que o índice de repetência caiu de cerca de 55% com a turma ingressante de 2002 e que foi para a 3ª série em 2004, para cerca de 30% com a turma ingressante em 2003 e que foi para a terceira série em 2005. Com a turma ingressante de 2004 e que estão na 2ª série, o índice caiu para cerca de 15%, mas como estamos no final do primeiro semestre, constatamos que uma das turmas apresenta um grande índice de crianças que não estão alfabetizadas, não sabem ler e escrever com competência.
Um outro ponto positivo nesta proposta é que não temos mais crianças com dez/onze anos ou mais nas 1ªs. séries. Àquelas que foram retidas são as crianças que ingressam no Ensino Fundamental com seis anos de idade e suas cabecinhas estão nas brincadeiras, nos brinquedos e na cama gostosa que deixaram em casa quando levantaram para vir para a escola.
Na nossa avaliação, e isso causou/causa um mal estar no grupo, o que essa proposta tem de negativo é que a relação entre a professora e algumas crianças se desgasta ao longo desses dois anos, prejudicando a aprendizagem dessas crianças. Enxergamos isso e ao mesmo tempo não conseguimos superar o problema, pois essas crianças têm muita dificuldade no relacionamento com a professora e seus pares. No final deste ano, decidiremos ou não pela continuidades desta proposta, tudo indica que a maioria vai decidir por sua extinção.


REFERENCIAL TEÓRICO

ESTEBAN, M. T. e ZACCUR, E. A pesquisa como eixo de formação docente. In. ESTEBAN, M. T. e ZACCUR, E. Professora-pesquisadora uma práxis em construção. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

MANZANARES, Vera. Ensinando a alegria de pensar. In. Grossi, E. P. Por que ainda há quem não aprende? - A teoria. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

SMOLKA, A. L. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo. São Paulo: Cortez: Campinas: Editora de Universidade Estadual de Campinas, 1996.

 

Anexo

 

2002

Série

Matrícula

Transferência expedida

Aprovados

Aprovados em conselho

Retidos

1ª A

31

01

20

01

10

1ª B

30

02

19

05

09

1ª C

15

02

08

-

05

Total

76

05

47

06

24

 

2003

Série

Matrícula

Transferência expedida

Aprovados

Aprovados em conselho

Retidos

1ª A

29

04

19

-

06

1ª B

29

03

22

05

04

Total  1ª série

58

07

41

05

10

2ª A

29

-

22

 

7

2ª B

28

-

20

04

8

Total 2ª série

57

 

42

04

15

 

2004

Série

Matrícula

Transferência expedida

Aprovados

Aprovados em conselho

Retidos

1ª A

33

04

25

 

04

1ª B

35

03

28

 

04

Total  1ª série

68

07

53

 

08

2ª A

28

03

19

04

04

2ª B

27

01

25

01

01

Total 2ª série

55

04

44

05

05

 
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