Resumo
O presente trabalho teve como foco de reflexão os problemas da
indisciplina dos alunos, no âmbito escolar, os quais se mostram
mais freqüentes e desafiadores nas últimas três décadas.
Foram pesquisados os registros escolares de quatro escolas públicas,
selecionadas entre as mais antigas de dois municípios de Minas
Gerais. Destes registros “saltaram as imagens” de professoras
amáveis, virtuosas e dedicadas e de alunos obedientes, educados
e estudiosos. Essas imagens foram, também, encontradas em muitos
textos literários que se transformaram em outra fonte rica de pesquisa.
A produção literária abriu a possibilidade de nela
encontrar informações sobre as concepções
e o papel social atribuído à educação e ao
professor através do tempo.
O presente trabalho teve como foco de reflexão
a questão da indisciplina dos alunos, no âmbito escolar,
os quais se mostram mais freqüentes e desafiadores nas últimas
três décadas. Buscando explicar as dificuldades que os professores
enfrentam frente a essa questão realizei uma pesquisa em livros
de registros de ocorrências de quatro Escolas públicas, para
verificar a evolução dos problemas de disciplina ao longo
do século XX.
Foram pesquisados os livros de “Termos de Visita do Inspetor Escolar”,
de “Atas de Reuniões”, de “Atas da Congregação”
e de “Ocorrências Disciplinares” de quatro escolas públicas
de Minas Gerais, escolhidas entre as mais antigas de dois municípios,
abrangendo o período de 1892 até o ano de 2002. Desses registros
escolares, até a década de 1960, “surgiram as imagens”
de professoras virtuosas e dedicadas e de alunos obedientes, educados
e estudiosos. E elas eram tão fortes que me senti instigada a procurar,
na literatura, o suporte para a construção das imagens daquelas
professoras boas, lindas e maravilhosas e daquele tempo onde os alunos
eram tão “disciplinados”. A produção
literária abriu-me a possibilidade de nela encontrar informações
sobre as concepções e o papel social atribuído à
educação e ao professor desde o final do século XIX.
A literatura tenta incitar, antes de tudo, a identificação,
criando uma proximidade entre o leitor e o passado e acaba por revelar
um processo de socialização das memórias, das narrações
e dos discursos. Ela busca estimular comportamentos e formas de pensamento
desejadas, propondo modelos e pondo em ação estratégias
discursivas, tais como a persuasão, a sedução, a
verossimilhança, a credibilidade e a autoridade das palavras. Ao
oferecer modelos de comportamento, a literatura participa do processo
histórico, político e social de definição
das identidades nacionais, sociais e individuais .
Assim, sabendo que o presente impõe uma representação
seletiva do passado, que não é jamais a do indivíduo
só, mas, a de um indivíduo pertencente a um determinado
contexto e, que carrega consigo todo um conjunto de valores e experiências
acumuladas entre o tempo da narrativa e a escritura da memória,
a exploração das informações, constantes nas
fontes documentais (atas de reuniões, termos de visitas do inspetor
escolar, atas da congregação), permite cumprir a tarefa
proposta de utilizar a trama literária como recurso estimulador
entre a história e a literatura.
A escolha de alguns dos escritores como Carlos Drumond de Andrade, Ziraldo
e Helena Morley não foi aleatória. Eles foram escolhidos
porque viveram as suas infâncias no interior de Minas Gerais, respectivamente
Itabira, Caratinga e Diamantina, cidades parecidas com aquelas nas quais
se realizava a pesquisa. Os outros escritores foram escolhidos devido
à pertinência de seus textos.
Nos textos analisados, as imagens de professoras e alunos trazem um tempo
passado, revivido e incorporado no presente de maneira ora romântica,
ora nostálgica, o que faz produzir uma atração por
aquele tempo como um tempo privilegiado, “um tempo mítico
do Paraíso”.
Não raro a professora é vista como a segunda mãe:
aquela que deu uma nova vida ao ensinar o bê-a-bá.
Carlos Drumond de Andrade descreve este nascimento:
Foi aí que nasci. Nasci na sala do 3º ano,
sendo professora D. Emerenciana Barbosa, que Deus tenha. Até então,
era analfabeto e despretensioso. Lembro-me: nesse dia de julho, o sol
que descia da serra era bravo e parado.
A aula era de Geografia, e a professora traçava no quadro-negro
nomes de países distantes.
As cidades vinham surgindo na ponte dos nomes, e Paris era uma torre ao
lado de uma ponte e de um rio, a Inglaterra não se enxergava bem
no nevoeiro, um esquimó, um condor surgiam misteriosamente
, trazendo países inteiros. Então, nasci.
De repente nasci, isto é, senti vontade de escrever. Nunca pensara
no que podia sair do papel e do lápis, a não ser bonecos
sem pescoço, com cinco riscos representando as mãos. Nesse
momento, porém, minha mão avançou para a carteira
à procura de um objeto, achou-o, apertou-o irresistivelmente, escreveu
alguma coisa parecida com a narração de uma viagem de Turmalinas
ao Pólo Norte.
C. D. de Andrade. Contos de Aprendiz. 9ª ed. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora Sabiá, 1973, p. 153-154.
Para Ziraldo, cartunista e escritor, são muitos os professores
inesquecíveis, todavia ele descreve uma:
Dona Glorinha, que entre outras coisas e contra a vontade das velhas professoras
do Grupo Escolar e de sua rabugenta diretora, retirou a palmatória
furadinha da parede de minha classe. Só mais tarde percebi a luta
de dona Glorinha. Que ela venceu. Descobrindo – bem mais tarde –
que sua presença em minha vida tinha sido fundamental para que
não a perdesse por aí. A vida, digo.
Engraçado, agora, remoendo essas lembranças, descubro que
tive uma professora maluquinha, sim. Foi a Dona Glorinha d’Ávila,
tão pequeninha, tão frágil, tão bonitinha...
Nova Escola. Setembro 1998. Pág. 58
Também, a poetisa Cora Coralina, aos 95 anos, homenageou a sua
primeira e única professora dizendo:
“Tudo o que sou devo a Silvina Ermelinda Xavier de Brito. Ela está
viva na minha memória pela sua paciência, sua didática
e sua pobreza. Tão pobre que eu quisera exalta-la em letras de
diamante.”
(Coletânea AMAE – 124)
No seu poema A Escola da Mestra Silvina, ela relembra a escola e os seus
colegas e termina dizendo:
E a Mestra?
Está no Céu.
Tem nas mãos um grande livro de ouro e ensina a soletrar aos anjos.
“Bença, Mestra”! Assim, Cora cumprimentava
Silvina Ermelinda Xavier de Brito. “Era todo o nome dela”.
Respeito, seriedade, ritual. A metáfora da segunda mãe.
A casa da escola ainda é a mesma. Quanta saudade quando passo ali!
Rua Direita, nº 13. Porta da rua pesada, escorada com a mesma pedra
da nossa infância.
(...)
Sempre que passo pela casa me parece ver a Mestra, nas rótulas.
Mentalmente beijo-lhe a mão. “Bença, Mestra”.
CORALINA, Cora. Poemas dos Becos de Goiás e Estórias mais.
9ª ed. São Paulo, Global, 1985. p.75-8
“Bença, mãe”. Este ritual ainda
está presente em algumas famílias mineiras. Ao se levantar,
ao sair de casa ou ao deitar: Bença, mãe”. “Bença,
pai”. “Bençoi, filho”. “Bençoi,
filha”.
Fico a imaginar esse ritual na “Escola da Mestra Silvina”:
Meninos numa fila... Meninas noutra fila.
“Tudo muito sério.
Não se brincava.”
_ “Bença, mestra”.
Luís Fernando Veríssimo, em uma de suas
crônicas, em que fala sobre a sua infância e suas relações
com as mulheres, lembra a professora como uma extensão de uma mãe,
mas uma mãe maior, “importante”.
Assim ele se expressa:
“Mas olhávamos as mulheres e acompanhávamos
as experiências como se elas fossem de outra espécie. Primeiro
com reverência: a professora era uma extensão da mãe,
mas uma mãe muito mais sabida e imponente.”
Nova Escola – Nov 1990, pág. 17 (Humor)
Maurício de Sousa, o pai da Turma da Mônica,
descreve os seus professores, nas décadas de 40 e 50 (1940-1950),
como pais e mães. Para ele,
“Os professores, da minha época eram pais
e mães na sala de aula, tinham muito carinho e cuidado com os alunos,
indo além do que era o papel deles. Era uma época de ouro.”
Jornal do MEC. AnoXV. Nº 17. Brasília-DF. Abril 2002
Como resposta a esse carinho, o aluno Maurício
de Sousa ilustrava com desenhos e caricaturas as lições
de casa e suas notas eram sempre dez.
Assim, para ele, foram seus professores os grandes incentivadores do desenhista
que se projetava para o futuro. A descrição que ele faz
de alguns de seus professores revelam a dedicação e o cuidado
que estes tinham para com os alunos que ultrapassavam os muros da escola.
Maria Nair de Castilho, professora de Português, levava jornais
para a sala de aula e era exigente com a leitura e a correção
da escrita; Jair Batalha criava viagens por meio da Geografia; o Paulo
não dava aula de História, mas fazia um show contando uma
história com começo, meio e fim; e o Romeu, professor de
Ciências, levava os alunos depois da escola para o laboratório
de sua casa para que eles fizessem experiências.
“Parece que esta era uma “época de ouro”. Uma
época em que os professores levavam os seus alunos para as suas
casas e continuavam as lições da escola, como se isto fosse
uma coisa natural e prazerosa.
Viriato Correia descreve a “Dona Nenén”, sua professora,
e me faz imaginá-la como uma bonequinha de porcelana ou uma princesinha
dos muitos contos de fada que povoaram a minha infância. Para ele
a professora é a imagem da irmã mais velha: aquela a quem
se devia respeitar e estimar.
Linda, doce, delicada, suavíssima. Eis a Dona Nenén:
Dona Nenén, a professora de minha classe, foi quem primeiro me
entrou no coração.
Vinte e quatro anos, pouco mais ou menos, leve, magrinha, pequenina, e
olhos pardos e grandes. Um riso bonito e tranqüilo clareando-lhe
o rosto.
Eu nunca tinha visto moça mais linda. E tão forte impressão
ela me causava com a sua beleza, que eu tirava constantemente os olhos
dos livros para ficar minutos esquecido a olhá-la.
Ela, porém, me advertia:
_ Não se distraia, menino, cuide de sua liçãozinha.
Era uma criatura doce, delicada, suavíssima. Assim, miudinha, misturada
ali conosco, podia-se pensar que fosse nossa irmã mais velha. Fazia-se
respeitar porque se fazia estimar.
Não ralhava nunca. Apenas nos olhava com aqueles olhos grandes
e serenos. Bastava aquilo para que nos sentíssemos arrependidos
e envergonhados.
Mas, quando a falta era grande, além do olhar, ela nos contava
uma história. Quase uma fábula ou um apólogo, com
um fundo moral que mostrava o erro cometido.
Viriato Correia, CAZUZA, São Paulo.Companhia Editora Naciona. 1984
Em Viriato Correia outra imagem: a da irmã mais velha. Aquela que
“ajuda” a criar os irmãos mais novos e que faz, às
vezes, o papel de mãe.
Paulo Freire em um artigo intitulado “Que Saudade da Professorinha”,
descreve a sua primeira professora, a “inesquecível Eunice
Vasconcelos”:
A primeira presença em meu aprendizado escolar que me causou impacto,
e causa até hoje, foi uma jovem professorinha. É claro que
eu uso esse termo, professorinha, com muito afeto(...)
Não se casou. Talvez isso tenha alguma relação com
a abnegação, a amorosidade que a gente tem pela docência
(...)
Hoje, a presença dela são saudades, são lembranças
vivas. Me faz ate lembrar daquela música antiga, do Ataulfo Alves:
“Ai, que saudade da professorinha, que me ensinou o bê-a-bá”.
Aqui também a professorinha, o afeto, a imagem carinhosa é
saudosamente lembrada.
“Não se casou”, diz Paulo Freire. A imagem do magistério
vocação e dom, ao qual se doa, totalmente, com abnegação
e dedicação.
E, assim, em prosa e em versos cria-se a memória da professora
que parece satisfazer as aspirações de completude e que
faz imaginar a existência de uma época excepcionalmente feliz.
Ai, que saudade da professorinha
Que me ensinou o bê-a-bá
Onde andará Mariazinha
Meu primeiro amor, onde andará?
O primeiro amor... Ataulfo Alves traz a imagem de uma outra professora.
Não mais a segunda mãe, mas o primeiro amor.
Em versos e na música o compositor e cantor Rubinho do Vale presta
a sua homenagem às professoras, no CD “ABC do Amor”:
A professora é uma grande atriz.
A sala de aula vira um teatro.
A platéia (alunos espertos e atentos) admira, ama, aplaude em silêncio.
Pergunta, questiona, exige mais, quer novidades.
E a grande atriz está sempre pronta, provoca a platéia,
chama para o debate.
E assim a professora prossegue com o seu lindo espetáculo: Educar.
Sinto saudades de Maria de Teó, de D. Júlia e de D. Raquel,
minhas primeiras professoras lá na roça. Longe daqui, no
Vale. Tempo bom.
Já faz é tempo. Parece agora.
Abraços mil para todas vocês professoras, lutadoras do Brasil.
Mais uma imagem: a professora é uma grande atriz. Segunda mãe,
irmã mais velha, atriz: imagens que são gravadas e que fazem
surgir o mito. O passado é revivido no presente como uma época
de ouro, uma época virtuosa, um tempo onde tudo era mais fácil,
mais bonito, melhor e ao qual se gostaria de voltar, como nos diz Ataulfo
Alves:
Eu daria tudo que tivesse
P’ra voltar aos dias de criança
Eu não sei p’ra que a gente cresce
Se não sai da gente essa lembrança.
A escola parece como uma escola melhor, mais tranqüila, mais feliz.
Essa é a imagem que nos vem através de tantos textos. O
passado se apresenta repleto de boas lembranças, também,
em relatos de aluna de curso pós-médio.
Elza de Moura, conhecida educadora de Minas Gerais, e ex-aluna da antiga
Escola de Aperfeiçoamento, fala de uma professora dessa escola,
aludindo a imagem da professora culta, segura, firme e inteligente. Sente-se
na sua descrição a admiração por aquela que
considera a sua “grande mestra”. Então, Elza de Moura,
já era também professora primária e no Curso de Aperfeiçoamento
“aluna-mestra”.
Marieta foi o tipo de mulher que nos impressionou pela
privilegiada inteligência e firmeza de convicção.
À primeira vista nos assustava, a nós alunas, que a julgávamos
distante e difícil. Isso foi o começo, mas o convívio
na escola e depois fora dela, levou-nos a uma aproximação
mais íntima. Naquele tempo dava-se muita importância à
socialização nas escolas. Hoje, fala-se muito em integração
escola-comunidade, mas é falsa essa integração.
De um lado, a escola isolada, lutando sozinha para não soçobrar;
e do outro, a comunidade alienada, usando a escola em seu benefício,
mas pouco ou nada fazendo por ela. A socialização, era um
modo de aproximar a escola da comunidade. A professora demonstrava isso,
expondo com segurança, demonstrando grande cultura. Nós,
as suas alunas, nunca a vimos titubear ou vacilar perante alguma pergunta
capciosa. Suas respostas eram claras e limpas, esclareciam qualquer dúvida...”
AMAE Educando – Nov.1984, pág.16
Mesmo as alunas de cursos de graduação guardam a lembrança
da professora como uma pessoa muito forte, cuja influência perpassa
toda a vida. É assim que Fanny Abramovich, ex-aluna da USP, fala
de sua professora Dona Mariinha – Maria José Garcia Werebe
– sua professora inesquecível:
Ela era uma pessoa audaciosa, sempre à procura
de novas fontes e possibilidades. Interessada em tudo, insaciável
na sua curiosidade, questionadora. Me fez uma pessoa perguntante e não
acatante. Me abriu as portas do até então desconhecido,
me fez caminhar por onde eu temia cair, me pôs no mundo como um
ser que atua. Lembro dela como uma mulher entre a tímida e a seca.
Não derramava afetividade. Mas marcou minha vida para sempre. Se
me tornei uma educadora, devo sobretudo a ela. Saudades das sacudidelas
impulsionantes. Obrigada.
Nova Escola. Maio, 1998. Pág. 58
Esta imagem de professora que impulsiona, que faz descobrir
os caminhos para o futuro, aparece nas lembranças de muitos ex-alunos
que são hoje pessoas que abraçaram o sucesso profissional
e que aparecem com freqüência nos meios de comunicação.
A imagem do “bom, amável e dedicado professor do passado”
é utilizada em anúncios e propagandas.
Parece-me, que filtradas pelo tempo, as lembranças vão sendo
purificadas e acabam por apresentar o passado como um período onde
tudo era “cor-de-rosa”. A alegoria de um tempo repleto de
boas lembranças, no qual, a imagem edificante do professor do passado
aparece repleta da sentimentalidade e faz surgir o “retrato”
do bom professor “redesenhando” o perfil de um professor,
agora, idealizado pela memória.
Contudo, imagens negativas de professores povoam um grande número
de textos literários, principalmente escritos no Império
e na primeira República .
A descrição de professores cruéis e autoritários,
bem como do ambiente austero e da disciplina severa, no final do séc.
XIX, povoam os escritos de alguns autores:
Uma barbaridade (...) o mestre dava muito coque, e batia de régua,
também.
Rosa, João Guimarães. Sagarana (pág. 243) .28ª
ed. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1984.
Helena Morley , assim descreve o colégio onde sua prima Luizinha
era aluna interna:
Estiveram contando a vida que levam no colégio e tive pena delas,
coitadinhas. De madrugada, com este frio todo, têm de se levantar,
ir para a missa e passar uma hora ajoelhada no chão duro. Quando
voltam da missa, tomam uma água de café com cuscuz e vão
para o estudo. A comida, dizem elas é insuportável. Banho
frio e Irmãs implicantes, impossíveis de agüentar.
Por sua vez, a literatura regional , neste mesmo período,
revela a “crença extraordinária no poder da educação
e da escola”. Nestes, o mestre recebe um tratamento especial e respeitoso.
É importante destacar que as lembranças dos castigos não
apagam, nas “províncias alijadas da civilização”
e no campo, o prestígio do professor que se iguala ao prestígio
do padre e do “doutor”. Isto pode ser comprovado nestes textos:
Era este um homem todo em proporções infinitesimais, baixinho,
magrinho, de carinha estreita e chupada, excessivamente calvo; usava óculos,
tinha pretensões de latinista, e dava bolos nos discípulos
pro dá cá aquela palha. Por isso era um dos mais creditados
na cidade.
Almeida, Manuel Antônio de. Memórias de Um Sargento de Milícias.
9ª ed. S. Paulo. Ática, 1979. pág. 38
“Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os
castigos, as lições árduas e longas, e pouco mais,
mui pouco, e mui leve. Só era pesada a palmatória, e ainda
assim... (...) Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras?
Lição de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos
do que quer a vida, que é das últimas letras; com a diferença
que tu, se me mestias medo, nunca me meteste zanga.”
Assis, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas.
16ª ed. S. Paulo. Ática, 1991 (Série Bom Livro). pág.
31.
A lembrança dos castigos não maculava a
imagem do professor, porque eles eram, então, condizentes com a
forma social de manifestação da autoridade. Assim, o uso
da palmatória, da vara de marmelo, ao lado de outras formas de
castigo, representava o direito legítimo do exercício da
profissão docente e, ao mesmo tempo, dava ao professor o “poder”
de colocar a sua autoridade em prática.
Há, portanto, um contraste entre a memória construída
que faz da escola do passado o “paraíso mítico da
educação” e a escola do presente como o local de violência
e indisciplina de “alunos que não querem nada”. (fala
de uma professora)
Para concluir destaco três questões: A primeira diz respeito
à análise dos dados que revela a baixa freqüência
dos alunos na “escola do passado”. Constata-se, por exemplo,
em uma das escolas, que no ano de 1924, 27% dos alunos matriculados não
freqüentavam a escola. Portanto, dos 578 alunos nela matriculados,
156 alunos não freqüentavam a escola. A matrícula dos
alunos da quarta série corresponde, naquele ano, a menos de 10%
da matrícula da primeira série.
A segunda, é a revelação encontrada nos registros
escolares sobre as formas de disciplinamento utilizadas para “conter
os alunos que não se enquadravam às normas” da escola.
Eles eram exemplarmente castigados e quando os castigos não surtiam
o efeito desejado, eles eram expulsos da escola. Dessa forma, livre dos
alunos “indisciplinados e desobedientes” as professoras podiam
exercer de maneira digna a missão que lhes era confiada.
A terceira questão é a que aponta para os dados oficiais
sobre a evolução da oferta de vagas nas escolas brasileiras:
em 1950, apenas 38% da população em idade escolar freqüentava
a escola. Na década de 1960, tem-se 45% das crianças freqüentando
a escola. Este índice chega na década de 1970 a 67%, na
década de 1980, atinge 75%, atingindo 84%, em 1990.
Observa-se, assim, que a matrícula cresceu significativamente a
partir da década de 1970, quando, então a classe popular
tem o seu acesso à escola garantido Os registros escolares sobre
a disciplina e indisciplina, bem como sobre os castigos, mostram claramente
as mudanças de comportamentos no interior da escola, a partir da
década de 1970.
Os estudos permitiram rever as idéias sobre o crescente número
de ocorrências de indisciplina na sala de aula a partir desta década
e evidenciam a necessidade de se refletir sobre essa nova configuração
da escola, bem como sobre a formação do professor. È
evidente que o professor, hoje, precisa levar em consideração
os problemas que afetam atualmente a sociedade e que, consequentemente,
são vividos no interior das escolas. Com professores bem formados
e preparados, possivelmente, os conflitos provocados pela indisciplina
dos alunos poderão ser resolvidos de maneira menos tensa.
Voltando a Carlos Drumond de Andrade:
Não há que desesperar do homem.
Temos ainda – arca de surpresas – os meninos,
E é proibido antecipar a sorte.
Degustam bem aventuradamente um naco de melancia, acomodam-se numa caixa
de biscoito, aderem ao Carnaval.
Seus olhos profundos indagam: - que fazes por mim?
Não sabemos responder – os meninos continuam,
Esperança de todos os dias e promessa de humanidade.
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