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O
TRABALHO COM PROJETOS: UM DEFLAGRADOR NA CONSTRUÇÃO DO COLETIVO
NA ESCOLA
Tamara Abrão Pina - Escola de Educação
Infantil e Ensino Fundamental “Pedro e Rafael” -
UNICAMP – Faculdade de Educação/ GEPEC
O ponto de partida
É
muito significativo para mim, enquanto pedagoga e educadora, narrar neste
texto, esta experiência que vivenciei na condição
de coordenadora-pedagógica (juntamente com meus pares/parceiras/professoras),
de uma pequena escola de educação infantil e ensino fundamental,
da rede particular de Campinas.
O ponto de partida desta experiência: O ano era 2004. Meu primeiro
ano como pedagoga formada, meu primeiro emprego e uma grande responsabilidade
– ser coordenadora pedagógica de uma escola com cerca de
300 alunos.
Em meios a muitas responsabilidades, incertezas, angústias e tentativas,
neste início de carreira e profissão, um momento importante
na escola: a 1ª reunião pedagógica com todo o corpo
docente e funcionários. Um reunião que tinha como pauta
a definição e discussão das regras da rotina do cotidiano
da escola, apontamentos sobre o planejamento das professoras e a definição
de datas e eventos que seriam comemorados naquele ano. Em meio a conversas,
apresento a idéia de trabalharmos com projetos, e aí, no
final do ano, mostramos os projetos desenvolvidos numa feira cultural.
No momento em que a idéia se anuncia, silêncio, olhares,
só a minha voz ecoava no espaço da sala de aula em que nos
reuníamos.
Aos poucos, o silêncio começava dar lugar e voz a alguns
questionamentos: “Por que trabalhar com projetos?”, “Prefiro
continuar do jeito que está, cada um fazendo o seu trabalho!”,
“Um Feira Cultural aqui na escola? Como, se não temos nem
espaço físico para isto.”, “Adorei a idéia,
já vou pensar nas temáticas que posso desenvolver com minha
sala!”.
Naquele primeiro momento, as opiniões eram as mais variadas, as
professoras pareciam assustadas, ameaçadas... Após esta
discussão, a reunião se dispersou e não consegui
retomar o assunto, a decisão pelo sim ou pelo não, ficaria
para um outro momento.
Os dias foram passando, correndo, corridos e, os imprevistos, a rotina
e sua organização, os “incêndios”, foram
tomando conta de minhas ações. Um período muito difícil,
pois não conseguia fazer o que era, na minha opinião, a
minha função naquela escola, ou seja, olhar para como acontecia
o trabalho pedagógico em cada sala de aula, o trabalho de formação
tanto dos alunos quanto das professoras e juntas pensarmos em novas possibilidades,
novos fazeres, novos saberes...
Entretanto, como na escola um dia sempre é diferente do outro,
e estamos nestes dias, que se fazem diferentes cotidianamente, sempre
nos surpreendendo, surge um novo momento (um outra possibilidade!) para
discutirmos aquela minha primeira proposição de trabalharmos
com projetos. Chega o momento de elaboração do Plano Escolar
a ser encaminhado para a Delegacia de Ensino, sendo esta elaboração
uma de minhas funções. Mas em um dos itens do Plano, está
a avaliação dos Projetos do ano anterior que haviam sido
encaminhados. Assim, não era possível falar em avaliação
sem pensar no grupo, na opinião e avaliação coletiva,
do grupo como um todo e de cada um dos professores em específico.
Um outro aspecto que propiciou a unidade escolar “aceitar”
a realização desta avaliação coletiva, foi
o fato de eu, enquanto coordenadora pedagógica, não ter
presenciado e vivenciado as ações do ano anterior, assim
como poderia avaliar algo que não vivi? Esta situação
ao mesmo tempo que denunciava a fragilidade do coletivo daquela instituição,
anunciava a possibilidade de que este coletivo poderia, aos poucos, se
constituir e materializar.
Nos reunimos novamente, e pela primeira vez, sentia que estávamos
dialogando, estabelecendo trocas. As professoras falavam sobre como estavam
“acostumadas” a trabalhar (aqui uma denúncia/indício
da cristalização do trabalho docente que aos poucos começaria
a se diluir e se remover), o que gostariam de mudar, suas vontades e incertezas,
seus dilemas. Neste diálogo, que tinha muito mais cara e jeito
de conversa, do que reunião, um desabafo anunciado pela voz de
uma professora, mas que pelos olhares de todas as outras se mostrou como
consenso: o incômodo com a fragmentação e falta de
continuidade do trabalho pedagógico realizado em cada sala/série
com a série subseqüente, e a necessidade de haver um eixo
comum, objetivos comuns que pudessem mobilizar e movimentar a escola como
um todo.
Neste contexto de abertura, insisto novamente na idéia de um projeto
temático, que pudéssemos desenvolver durante o ano todo,
a partir dos interesses e necessidades de cada sala, mas que fosse essencialmente
um movimento de toda a escola em torno de objetivos comuns, compartilhados
por todos.
Assim, mesmo com algumas resistências, as professoras, em sua maioria,
aceitaram o desafio e começaram a fervilhar com idéias e
sugestões. A partir deste instante, o desejo nascido solitário,
individualmente, transformava-se em vontade e comprometimento, vontade
que coletivamente começa a contagiar a escola toda.
As referências
que fundamentaram o trabalho com projetos: o encontro com a palavra interdisciplinaridade
Nesta trajetória,
a escola constituía-se mais acolhedora. Começava a me sentir
menos solitária. O sentimento de grupo passava a se inscrever de
um modo bastante especial nas relações que estabelecíamos:
eu, as professoras, os alunos e até mesmo a direção,
sempre mais distante, envolvida em questões burocráticas
e administrativas.
A partir de então, a escola passou a assumir o trabalho com o projeto
temático como um dos eixos fundamentais de sua proposta pedagógica,
entendendo que este trabalho possibilitaria o desenvolvimento de práticas
interdisciplinares, permitindo aos nossos alunos a compreensão
de uma concepção única de conhecimento, completamente
passível de transformação.
Desta forma, juntamente com o desenvolvimento do projeto temático
“Uma viagem pelo Brasil: identidade, diversidade e cultura”
(ficando assim batizado por todo o grupo), nasce no contexto de nossa
escola, a necessidade de nos aprofundarmos, tanto teoricamente como em
nossas próprias ações, sobre o que seria desenvolver
práticas interdisciplinares no cotidiano da escola. Começamos
assim, a discutir a interdisciplinaridade nas reuniões pedagógicas
semanais do Ensino Fundamental.
Passamos a contar com as interlocuções de Fazenda (1991),
sendo de fundamental importância para a ampliação
de nossa compreensão sobre o assunto, além de fundamentar
de modo muito mais sólido e coerente as ações que
desejávamos realizar.
Segundo Fazenda (1991), um projeto interdisciplinar de trabalho ou ensino,
consegue captar a profundidade das relações conscientes
entre pessoas e entre pessoas e coisas. Por isso, é necessário
que o projeto não se oriente apenas para o produzir, mas que surja
espontaneamente, no suceder diário da vida, de um ato de vontade.
Neste sentido, este tipo de projeto “nunca poderá ser imposto,
mas deverá surgir de uma proposição, de um ato de
vontade frente a um projeto que procura conhecer melhor” (ibidem,
1991: 17).
E, com base nestes princípios, fomos desenvolvendo o nosso projeto,
organizando os objetivos e definindo algumas das estratégias que
seriam realizadas ao longo do ano, indo muito além, do produzir
simplesmente, se configurando como um ato de vontade, de cada professora
com seus alunos, e de todas as professoras conjuntamente. Um ato de vontade
que se firmava no cotidiano da escola.
Olguin (2003), também trouxe significativas contribuições
para a nossa compreensão, ao afirmar que o reconhecimento da educação
e do processo de ensino-aprendizagem diante de uma realidade complexa,
contemplando os diferentes temas e objetos estudados, exige de nós
educadores, a confrontação de olhares plurais compondo as
situações de aprendizagem. É neste sentido, que a
proposta de uma perspectiva interdisciplinar se apresenta através
de uma metodologia de trabalho que favoreça a discussão
em equipe e que garanta a reflexão conjunta entre os professores
responsáveis pelas diferentes áreas do conhecimento.
Estas reflexões contribuíram para a possibilidade de novos
olhares e fazeres na escola, trazendo o aluno, seus interesses e suas
experiências para o centro das discussões sobre as práticas
cotidianas de cada professora e o desenvolvimento do projeto temático.
Isto posto, passamos a considerar o saber da experiência, da vida
cotidiana, presente nas falas e atitudes de nossos alunos, entendendo
que é por meio do cotidiano que damos significado e sentido às
nossas vidas. Buscamos também, ampliar este conhecimento cotidiano
trazidos por nossos alunos e por nós mesmos, a partir do conhecimento
reconhecido e legitimado como científico, permitindo o enriquecimento
das relações que nós, sujeitos (professores, alunos,
coordenadores, diretores funcionários, pais, etc.) estabelecemos
com o outro e com o mundo, assumindo como sendo este o papel da escola
básica.
A fim de sustentar estas idéias, novamente nos apoiamos a luz das
interlocuções de Fazenda (1993, p.31), por meio da seguinte
citação:
“pela intensidade das trocas entre os especialistas e pela integração
das disciplinas num mesmo projeto de pesquisa. (...) Em termos de interdisciplinaridade
ter-se-ia uma relação de reciprocidade, de mutualidade,
ou, melhor dizendo, um regime de co-propriedade, de interação,
que irá possibilitar o diálogo entre os interessados. A
interdisciplinaridade depende então, basicamente, de mudança
de atitude perante o problema do conhecimento, da substituição
de uma concepção fragmentária pela unitária
do ser humano”
projeto “Uma
viagem pelo Brasil: identidade, diversidade e cultura” – um
deflagrador de possibilidades
De acordo com o exposto, podemos afirmar que é neste contexto de
idas e vindas, resistências, desejos, vontades, anseios e receios
que surgiu o projeto “Uma viagem pelo Brasil: identidade, diversidade
e cultura”, constituindo-se num deflagrador de múltiplas
possibilidades no fazer cotidiano da escola.
Após várias discussões e reuniões, decidimos
que o tema geral do projeto seria a identidade e a diversidade cultural
presente em nossa escola, em nosso país, sendo que cada turma trabalharia,
a partir desta temática geral, um sub-tema específico às
necessidades e interesses de cada sala.
Neste sentido o projeto organizou-se da seguinte maneira:

Com base
nesta organização e através do objetivo geral do
projeto que visava, ampliar o universo cultural e simbólico dos
alunos, por meio do contato e conhecimento da diversidade de culturas,
experiências, paisagens, modos de vida, e também a partir
de nossas próprias experiências, histórias de vida
e identidade, os objetivos específicos, seguindo cinco eixos temáticos,
ficaram definidos da seguinte maneira:
• Eixo
1 – “Quem sou eu”
Este eixo, desenvolvido nas turmas de 0 à 4 anos, teve por objetivo
iniciar o processo de compreensão da identidade de cada criança,
proporcionando-lhe o conhecimento de si mesma, sua história, suas
características, sua família, desenvolvendo deste modo,
sua autonomia e segurança diante no meio em que vive.
Temas trabalhados:
- Nome (o
nome e a história do nome de cada criança);
- Características pessoais (físicas e emocionais);
- Família (as pessoas da família, o espaço onde mora,
o espaço da criança, costumes, hábitos e valores);
- Amizade (quem são nossos amigos, onde mais gostamos de brincar,
passear);
- Cores ( as cores preferidas de cada criança)
- Alimentos (os alimentos que mais gostam, os alimentos mais saudáveis
e os menos saudáveis)
- Animais de estimação ( os animais que mais gostam)
• Eixo 2 – “Navegando nesta viagem: a água em
nossas vidas”
Este eixo, desenvolvido nas turmas de 5 anos, teve por objetivo compreender
a importância da água na vida de todos os seres vivos, tendo
contato com as diversas situações em que a água se
faz indispensável, atentando-se também para a presença
da água nos diversos lugares do nosso país.
Temas trabalhados:
- Hábitos
de higiene;
- O processo da chuva;
- A importância da água na vida de cada um de nós;
- A preservação da água;
- Paisagens aquáticas no Brasil;
- Animais aquáticos, fazendo um alerta para os animais em extinção.
Eixo 3 –
“Nas águas da literatura: a Arca de Noé, os Saltimbancos
e outras histórias”
Este eixo, desenvolvido com as crianças de 6 anos em turmas de
pré-escola, iniciando o trabalho de alfabetização,
teve por objetivo estudar o tema dos seres-vivos, através de obras
literárias, incentivando desta maneira, a fantasia, o gosto pela
leitura, além de estimular a curiosidade e criatividade das crianças.
Temas trabalhados:
Foi possível
estudar a temática dos seres vivos a partir das seguintes obras:
- Os Saltimbancos (Chico Buarque);
- A arca de Noé (Vinícius de Moraes);
- O Urso com música na barriga (Érico Veríssimo);
- O sítio do pica-pau amarelo (Monteiro Lobato);
- A escolinha do mar (Ruth Rocha).
- Leilão de Jardim (Cecília Meireles)
Através destas leituras, foram explorados os seguintes aspectos:
- Conhecer os autores das obras escolhidas e suas histórias de
vida;
- Aprofundar as histórias apresentadas pelas obras, relacionando
com os seres vivos, enfatizando: 1. Animais domésticos e animais
selvagens; 2. As regiões que habitam e suas características;
3. Os animais do campo e os animais da cidade; 4. As diferenças
entre o campo e a cidade.
Eixo 4 – “O Brasil e a diversidade de culturas”
Este eixo, desenvolvido nas turmas de 1ª séries, teve por
objetivo desenvolver com os alunos o conceito de diversidade cultural,
entendendo esta diversidade como um direito dos povos e indivíduos,
buscando assim, a valorização e respeito das diversas culturas
presentes no Brasil.
Temas trabalhados:
- O Brasil e a cultura indígena (tribos indígenas, regiões
onde vivem, o índio no passado e o índio hoje, costumes
e tradições);
- O Brasil e a cultura negra (a vinda dos negros para o Brasil, o negro
no passado e o negro hoje, costumes e tradições);
- O Brasil e a cultura européia (a vinda dos europeus para o Brasil,
regiões onde vivem, costumes e tradições);
- O Brasil e a cultura oriental (a vinda dos orientais para o Brasil,
regiões onde vivem, costumes e tradições);
- O Brasil um país de diversidade (a mistura de raças e
culturas, o modo como ocorreu este processo, a partir da história
de vida de cada um dos alunos)
Eixo 5 –
“A infância no Brasil: realidades diversas”
Este último eixo, desenvolvido com as turmas de 2ª séries
, teve por objetivo conhecer as diversas maneiras de ser criança
existentes em nosso país, tendo uma atenção especial
à exploração do trabalho infantil.
Temas trabalhados:
Com base no livro de história “Serafina e a criança
que trabalha”, foram explorados os seguintes aspectos:
- A rotina e realidade de cada criança da sala;
- A realidade das crianças de rua;
- A exploração do trabalho infantil nas diversas regiões
do país;
- As instituições comprometidas com a erradicação
do trabalho infantil.
Em busca
de considerações finais: o trabalho com projeto –
um deflagrador no coletivo da escola
Enfim, concluímos
o ano, e com ele muitas lições e aprendizagens emergiram
com um gostinho de realização e desafio cumprido, e com
grande mérito! A 1ª Feira Cultural da escola acontece, renovando
em todos, o sentimento de que é possível novas práticas,
criadoras e motivadoras, mesmo em se tratando de estruturas rígidas,
cristalizadas que passam uma imagem de impossibilidade de transformação.
Este projeto, desenvolvido a partir de temas geradores, perpassando todas
as séries, sendo investigados por alunos, professores e pais, ao
longo de todo o ano, trouxe um novo rumo à proposta e prática
pedagógicas que vinham sendo realizadas nesta unidade escolar.
Tendo como ponto de partida este primeiro projeto, novas possibilidades
foram se materializando e configurando o trabalho pedagógico cotidiano
das professoras, abrindo caminhos para uma prática integrada ,
contínua e sobretudo coletiva.
E a respeito desta outra possibilidade, a de trabalharmos coletivamente,
assumimos o nosso trabalho como interdisciplinar, pois concordando com
Assumpção (1991), por meio do trabalho com projetos (assim
como foi o nosso), pudemos brindar o encontro entre
“seres
– inter – num certo fazer – dade – a partir da
direcionalidade da consciência, pretendendo compreender o objeto
e com ele relacionar-se, comunicar-se. Assim interpretada, esta supõe
um momento que a antecede, qual seja a disposição da subjetividade,
atributo exclusivamente humano, de perceber-se e presentificar-se, realizando
nessa opção um encontro com-o-outro, a intersubjetividade”
(ibidem, 1991: 24).
E neste encontro com o outro, conseguimos transpor diversas barreiras
(de ordem material, pessoal, institucional), removendo-as pelo desejo
de criar, pela vontade de inovar, ir além coletivamente. Transformando
juntas, a insegurança, receio e desafio, no exercício de,
com o outro, pensarmos e construirmos novas/outras possibilidades do nosso
fazer cotidiano na escola.
Referências
Bibliográficas:
ASSUMPÇÃO,
I. “Interdisciplinaridade: uma tentativa de compreensão do
fenômeno”. In: FAZENDA, I. C. A. (org). Práticas interdisciplinares
na escola. São Paulo: Cortez, 1991.
FAZENDA, I. C. A. “Interdisciplinar idade: definição,
projeto, pesquisa”. In: FAZENDA, I. C. A. (org). Práticas
interdisciplinares na escola. São Paulo: Cortez, 1991.
______________. Interdisciplinaridade: um projeto em parceria. São
Paulo: Loyola, 1993.
OLGUIN, G. Interdisciplinaridade. Net. Disponível em www.campogeral.com.br.
Acesso em fev.2004. |
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